A ROMANTIZAÇÃO DOS CUIDADOS PALIATIVOS: IMPACTOS NA PRÁTICA CLÍNICA E PERCEPÇÕES SOCIAIS

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.14757969


Angela Pinto dos Santos1


RESUMO
Os cuidados paliativos são frequentemente romantizados como uma prática heroica e compassiva, destacando apenas seu lado humanitário e ignorando os desafios e complexidades enfrentados pelos profissionais de saúde. Este artigo busca explorar os impactos da romantização dos cuidados paliativos na prática clínica, nas percepções sociais e nas expectativas dos pacientes e suas famílias. Além disso, discute como essa visão idealizada pode mascarar a necessidade de recursos adequados, apoio emocional aos profissionais e a preparação para lidar com a morte e o sofrimento de forma equilibrada. Concluímos que, embora os cuidados paliativos desempenhem um papel crucial na melhoria da qualidade de vida dos pacientes, é fundamental adotar uma visão mais realista e abrangente dessa prática, para garantir que as necessidades reais dos profissionais e dos pacientes sejam plenamente atendidas.
Palavras-chave: cuidados paliativos, romantização, prática clínica, saúde pública, sofrimento, expectativas sociais.

ABSTRACT
Palliative care is often romanticized as a heroic and compassionate practice, highlighting only its humanitarian side and ignoring the challenges and complexities faced by healthcare professionals. This article seeks to explore the impacts of the romanticization of palliative care on clinical practice, social perceptions and expectations of patients and their families. Furthermore, it discusses how this idealized vision can mask the need for adequate resources, emotional support for professionals and preparation to deal with death and suffering in a balanced way. We conclude that, although palliative care plays a crucial role in improving patients' quality of life, it is essential to adopt a more realistic and comprehensive view of this practice, to ensure that the real needs of professionals and patients are fully met.
Keywords: palliative care, romanticization, clinical practice, public health, suffering, social expectations.

1. Introdução

Os cuidados paliativos têm ganhado crescente reconhecimento como uma abordagem essencial para promover a qualidade de vida de pacientes que enfrentam doenças ameaçadoras à vida, bem como para suas famílias. Essa prática, fundamentada em princípios como dignidade, alívio do sofrimento e apoio integral, muitas vezes é descrita como um “manto de compaixão” que cobre as fragilidades humanas nos momentos mais difíceis. Contudo, à medida que os cuidados paliativos se tornam mais visíveis, também emerge uma tendência de romantização dessa prática, frequentemente retratada de maneira idealizada, quase utópica, tanto na mídia quanto em discursos acadêmicos e sociais.

Essa visão romantizada, embora carregada de intenções positivas, pode ter implicações significativas para a prática clínica e para a sociedade. Ela pode gerar expectativas irreais sobre o alcance dos cuidados paliativos, tanto por parte de pacientes e suas famílias quanto dos próprios profissionais de saúde. Além disso, pode mascarar os desafios enfrentados no dia a dia, como limitações estruturais, emocionais e éticas que atravessam essa prática. Ao idealizar os cuidados paliativos, corre-se o risco de negligenciar aspectos fundamentais, como a formação adequada dos profissionais, o investimento em recursos materiais e humanos, e o enfrentamento das complexidades do sofrimento humano.

Este artigo propõe uma análise crítica da romantização dos cuidados paliativos, utilizando uma revisão da literatura e uma reflexão teórica para compreender os impactos dessa perspectiva idealizada. Buscamos explorar como essa visão pode influenciar a percepção social da morte e do morrer, moldar a formação e a prática de profissionais de saúde e afetar as expectativas de pacientes e familiares. Ao questionar a romantização, pretendemos oferecer subsídios para uma abordagem mais realista, sensível e sustentável dos cuidados paliativos, que valorize sua profundidade e impacto sem ignorar suas limitações e desafios.

Metodologia

Para investigar os impactos da romantização dos cuidados paliativos na prática clínica e nas percepções sociais, esta pesquisa adota uma abordagem qualitativa com análise de publicações acadêmicas relevantes no período de 2020 a 2024. Este período foi selecionado para refletir as mudanças e tendências mais atuais nas representações e práticas dos cuidados paliativos, considerando as influências recentes de debates sociais e avanços nas políticas de saúde pública e no próprio campo dos cuidados paliativos. A metodologia qualitativa de análise de conteúdo foi escolhida para captar as nuances e os significados atribuídos aos cuidados paliativos, conforme descritos em artigos científicos e revisões da literatura.

A coleta de dados foi realizada por meio de uma revisão sistemática de literatura, com foco em artigos acadêmicos publicados entre 2020 e 2024, disponíveis em bases de dados como PubMed, Scopus, Web of Science e Google Scholar. As palavras-chave utilizadas incluíram “romantização, prática clínica, saúde pública, sofrimento, expectativas sociais e cuidados paliativos”. Além disso, os artigos foram selecionados com base em critérios de inclusão, como: publicação em periódicos revisados por pares, disponibilidade de texto completo em português e inglês; relevância explícita para a discussão sobre a idealização ou romantização dos cuidados paliativos e suas implicações clínicas e sociais. Foram excluídos artigos que não abordassem o tema da romantização de forma direta, como aqueles que tratam de cuidados paliativos sem foco nas percepções sociais ou representações idealizadas. A análise de dados foi realizada seguindo os princípios da análise de conteúdo temática.

As limitações deste estudo incluem a dependência de artigos previamente publicados, o que pode refletir vieses das pesquisas originais. Além disso, a revisão foi limitada ao período de 2020 a 2024, o que exclui estudos anteriores, embora relevantes, sobre romantização dos cuidados paliativos. Outra limitação é que a pesquisa se baseou em artigos disponíveis em português e inglês, o que pode limitar a representação de percepções culturais em outros idiomas.

A abordagem metodológica adotada permitiu uma análise detalhada das representações da romantização dos cuidados paliativos, promovendo uma compreensão dos possíveis impactos clínicos e sociais dessa idealização na prática de cuidados de fim de vida.

Aspectos Éticos

Como se trata de uma análise documental de artigos publicados, este estudo não exigiu aprovação do comitê de ética, pois não envolveu coleta de dados diretamente com participantes. No entanto, foram seguidos os princípios éticos da pesquisa científica, respeitando os direitos autorais dos artigos analisados e citando adequadamente todas as fontes utilizadas.

Revisão de Literatura

Os cuidados paliativos visam proporcionar alívio do sofrimento e melhora na qualidade de vida de pacientes com doenças graves e incuráveis. Ao longo dos anos, essa prática tem sido amplamente associada a atributos como empatia, compaixão e sensibilidade, muitas vezes sendo apresentada de maneira romantizada na mídia, em discursos públicos e até mesmo entre profissionais de saúde. Essa idealização, embora traga um foco positivo sobre os cuidados paliativos, também pode obscurecer os desafios cotidianos enfrentados pelas equipes de saúde e criar expectativas desajustadas sobre a natureza e os resultados desses cuidados.

A romantização dos cuidados paliativos refere-se a uma idealização que tende a destacar exclusivamente aspectos positivos, como a compaixão, a dignidade e o alívio, minimizando as dificuldades práticas e emocionais dessa modalidade de cuidado. Esse fenômeno pode impactar a forma como a sociedade percebe os cuidados paliativos e, consequentemente, influenciar a prática clínica. Ao projetar uma imagem "idealizada," a romantização frequentemente obscurece os desafios enfrentados por pacientes, familiares e profissionais de saúde, criando expectativas nem sempre realistas e, por vezes, promovendo concepções que dificultam o entendimento completo sobre o cuidado de fim de vida (CLARK et al., 2021; GOMES et al., 2022).

Na prática clínica, a romantização dos cuidados paliativos pode ter um impacto significativo nos profissionais de saúde. Segundo Pereira e Sousa (2023), os profissionais frequentemente sentem a pressão de atender expectativas idealizadas, o que pode intensificar o desgaste emocional e levar ao aumento de sintomas de burnout. A pesquisa de Silva e Andrade (2022) também destaca que, ao exaltar a "beleza" e a "humanidade" dos cuidados paliativos, a romantização pode ignorar as situações de sofrimento intenso, angústia e exaustão vivenciadas pelos profissionais, que enfrentam dilemas éticos e a carga emocional de lidar com pacientes em fim de vida.

A romantização dos cuidados paliativos frequentemente apresenta essa prática como um ato de profunda compaixão e altruísmo, no qual os profissionais de saúde são retratados como figuras heroicas, dedicadas e incansáveis na missão de aliviar o sofrimento. Conforme discutido por Silva et al. (2023), essa visão idealizada muitas vezes ignora os desafios enfrentados pelos profissionais, como o desgaste emocional e as limitações estruturais do sistema de saúde. Além disso, Torres e Costa (2022) destacam que a representação midiática de cuidados paliativos em filmes, programas de TV e livros tende a simplificar a complexidade da prática, omitindo os conflitos éticos e as dificuldades emocionais vivenciadas pelos cuidadores no dia a dia. Essas narrativas reforçam a imagem de que os cuidados paliativos são uma prática isenta de conflitos, desafios ou dificuldades, tanto para os pacientes quanto para os profissionais envolvidos. No entanto, essa romantização pode gerar efeitos prejudiciais, como a negligência de aspectos técnicos, emocionais e práticos que compõem essa forma de cuidado. Conforme apontado por Silva et al. (2023), a idealização dos cuidados paliativos pode obscurecer os desafios enfrentados pelos profissionais, como a sobrecarga emocional e os dilemas éticos. Além disso, Torres e Costa (2022) destacam que, ao minimizar essas dificuldades, a sociedade acaba por comprometer a oferta de suporte adequado aos profissionais da área, o que é fundamental para a sustentabilidade desse tipo de cuidado. Segundo Almeida et al. (2021), é essencial que as políticas públicas reconheçam e abordem essas questões, promovendo uma abordagem mais realista e estruturada para os cuidados paliativos.

Além disso, essa romantização pode dificultar a formação e a prática dos profissionais, que são induzidos a acreditar em um modelo de cuidado que minimiza o sofrimento real envolvido. Segundo Clark et al. (2021), essa idealização torna-se um obstáculo à preparação dos profissionais para lidar com a complexidade emocional dos cuidados paliativos. Essa visão romantizada pode reduzir a percepção dos profissionais sobre as demandas reais da prática, resultando em um descompasso entre a formação teórica e a prática cotidiana.

A percepção de que os cuidados paliativos são uma "experiência transformadora" e humanizadora para todos os envolvidos pode afetar negativamente as expectativas dos familiares e dos próprios pacientes. Estudo realizado por Martins et al. (2023) identificou que familiares de pacientes em cuidados paliativos, ao serem expostos a uma visão romantizada, tendem a idealizar o processo, esperando experiências de paz e conforto que nem sempre correspondem à realidade. Esse descompasso pode gerar frustração e até sentimento de culpa, especialmente quando os cuidados paliativos não resultam na tranquilidade esperada para o paciente ou quando ocorrem situações de sofrimento intenso.

A idealização dos cuidados paliativos também pode inibir discussões honestas sobre o prognóstico e as limitações do tratamento. De acordo com Gomes et al. (2022), a romantização pode fazer com que familiares e pacientes esperem uma abordagem que minimiza a dor e o sofrimento, enquanto a realidade muitas vezes envolve situações complexas e dolorosas. Esse tipo de expectativa pode interferir nas tomadas de decisão e nas discussões sobre a real finalidade dos cuidados paliativos, impactando negativamente o processo de luto e aceitação (CLARK et al., 2021).

A romantização dos cuidados paliativos também influencia as percepções sociais sobre a morte e o fim de vida, afetando a maneira como a sociedade lida com temas relacionados ao morrer. A pesquisa de Oliveira e Santos (2023) destaca que, em contextos midiáticos, como filmes, livros e reportagens, os cuidados paliativos são muitas vezes apresentados de forma idealizada, enfatizando a compaixão e a dignidade, mas omitindo o sofrimento e as limitações associadas. Esses retratos podem contribuir para a disseminação de uma visão simplificada do que significa cuidar de pacientes em fim de vida, reforçando estereótipos que dificultam a compreensão das verdadeiras complexidades envolvidas (PEREIRA & SOUSA, 2023).

Além disso, a romantização dos cuidados paliativos pode levar à concepção de que esses cuidados são apropriados apenas para uma “morte ideal, ” dificultando o acesso e a aceitação dos cuidados paliativos por aqueles que não se encaixam nesse modelo idealizado (GOMES et al., 2022). Essa perspectiva cultural torna-se uma barreira para o desenvolvimento de políticas públicas mais inclusivas e realistas sobre cuidados de fim de vida, perpetuando desigualdades no acesso ao cuidado adequado e exacerbando o estigma em torno da morte e do morrer.

Além disso, a romantização também pode criar uma expectativa de que os cuidados paliativos sempre resultam em "boas mortes" ou em resoluções pacíficas de conflitos familiares, o que nem sempre é verdade. Segundo Silva et al. (2023), essa visão idealizada pode gerar frustração e sentimentos de inadequação para os profissionais e familiares, especialmente quando os resultados esperados não são atingidos. Torres e Costa (2022) ressaltam que a pressão para alcançar desfechos ideais pode agravar o sofrimento emocional dos envolvidos. Já Pereira e Santos (2021) discutem que é essencial promover uma compreensão mais realista sobre os cuidados paliativos, reconhecendo a complexidade das situações enfrentadas e a impossibilidade de controlar todos os fatores envolvidos no final de vida.

A prática de cuidados paliativos exige habilidades técnicas, empatia e resiliência emocional. Segundo Silva et al. (2023), o manejo adequado dos sintomas e a comunicação de más notícias são competências fundamentais que muitas vezes são ofuscadas pela romantização da prática, dificultando o reconhecimento do trabalho técnico envolvido. Além disso, Torres e Costa (2022) destacam que a idealização excessiva pode reforçar a ideia equivocada de que profissionais que enfrentam dificuldades emocionais estão "falhando", quando, na verdade, essas questões são parte inerente do cuidado paliativo. Almeida e Rocha (2021) apontam que é essencial valorizar tanto as competências técnicas quanto a saúde emocional dos profissionais, promovendo uma abordagem mais equilibrada e realista.

A romantização também pode dificultar a comunicação realista com os pacientes e suas famílias. Segundo Silva et al. (2023), a expectativa de um processo "perfeito" nos cuidados paliativos, com alívio total do sofrimento, pode levar à percepção de que dificuldades como a falta de resposta ao tratamento ou a resistência de familiares são fracassos, ignorando a complexidade do fim da vida. Torres e Costa (2022) destacam que a comunicação aberta e honesta é essencial para alinhar expectativas e lidar com os desafios inerentes ao cuidado paliativo. Além disso, Oliveira e Mendes (2020) ressaltam que a idealização do processo pode criar barreiras para a aceitação das limitações impostas pela própria condição do paciente, prejudicando a experiência de todos os envolvidos.

A percepção da sociedade em relação aos cuidados paliativos também é afetada pela romantização. Segundo Silva et al. (2023), essa idealização pode levar a uma compreensão limitada do público sobre o que realmente envolve essa assistência, contribuindo para expectativas irreais. Torres e Costa (2022) ressaltam que muitos pacientes e familiares chegam aos cuidados paliativos acreditando que haverá uma "cura" emocional ou uma resolução pacífica para todas as questões, o que nem sempre é viável. Além disso, Almeida e Pereira (2021) destacam que a falta de preparo da sociedade para lidar com o processo de morrer dificulta a aceitação da realidade e dos desafios inerentes ao fim da vida, comprometendo o apoio necessário para pacientes e suas famílias.

Além disso, a romantização pode dificultar o debate público e político sobre as reais necessidades dos cuidados paliativos. Silva et al. (2023) afirmam que uma visão simplificada e idealizada dos cuidados paliativos pode prejudicar a criação de políticas públicas eficazes, como a alocação adequada de recursos e a formação de profissionais especializados. Torres e Costa (2022) destacam que, para a expansão desses serviços, é necessário integrar os cuidados paliativos nos diferentes níveis de atenção à saúde, o que exige uma abordagem realista e fundamentada em dados concretos. Almeida e Souza (2021) enfatizam que a compreensão equivocada da sociedade sobre a complexidade dos cuidados paliativos pode levar à subestimação da necessidade de políticas públicas robustas, dificultando a implementação de soluções adequadas.

Entre 2020 e 2024, diversos autores e obras contribuíram para a romantização dos cuidados paliativos, apresentando-os de maneira idealizada e, por vezes, desconsiderando os desafios enfrentados por profissionais e pacientes. No cinema, o cineasta franco-grego Costa-Gavras, aos 91 anos, apresentou em 2024 o filme "El último suspiro" no Festival de San Sebastián. A obra, adaptação do livro homônimo de Régis Debray coescrito com o médico Claude Grange, aborda como a sociedade enfrenta a morte, especialmente em situações de doença de final de vida. Costa-Gavras reflete sua visão de uma morte digna e valente, expressando seu desejo de que, se sua agonia se prolongar, lhe seja administrada uma injeção para pôr fim à sua vida. O filme mistura humor com a séria temática da eutanásia e dos cuidados paliativos, destacando a importância de proporcionar aos pacientes em final de vida um ambiente onde possam enfrentar a morte com dignidade e preparar-se para o fim.

Na literatura, obras como "La habitación de al lado (2007)", "Los destellos (2014)" e "Polvo serán (2011)" exploram temas relacionados à doença em final de vida e à morte assistida, refletindo uma sociedade cada vez mais envelhecida e solitária. Essas narrativas destacam o papel crucial dos cuidadores e da empatia, promovendo uma visão sensível e humanizada dos cuidados paliativos. No entanto, ao enfatizar histórias emocionantes e transformadoras, essas obras podem contribuir para uma visão idealizada da prática, desconsiderando desafios como a sobrecarga emocional dos profissionais e os dilemas éticos frequentemente enfrentados.

Arantes (2016), em seu livro “A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver”, aborda os cuidados paliativos com uma sensibilidade única, destacando a importância de humanizar o processo de morrer e promover uma perspectiva mais leve e reflexiva sobre a morte. Sua obra tem o mérito de desmistificar muitos preconceitos relacionados ao fim da vida, apresentando-o como uma oportunidade para crescimento, reconciliação e significado. No entanto, essa narrativa, ao mesmo tempo que ilumina a beleza e a profundidade dos cuidados paliativos, também contribui para sua romantização.

Ao enfatizar histórias emocionantes e transformadoras, Arantes (2016) muitas vezes retrata os profissionais de saúde como figuras excepcionais, profundamente compassivas e quase sobre-humanas em sua dedicação. Essa visão, embora inspiradora, pode obscurecer os desafios reais enfrentados na prática clínica. Aspectos como a sobrecarga emocional, os dilemas éticos, as limitações estruturais e os impactos psicológicos nos profissionais tendem a ser suavizados ou pouco explorados no texto, criando uma imagem idealizada da prática.

Além disso, a abordagem poética e positiva do livro pode levar leitores, especialmente leigos, a desenvolverem expectativas irreais sobre os cuidados paliativos. Pacientes, familiares e até profissionais em formação podem esperar um processo de cuidado sempre harmonioso e pleno de sentido, o que nem sempre corresponde à realidade. Embora “A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver” seja uma obra essencial para ampliar a compreensão e o valor dos cuidados paliativos, é necessário um olhar crítico para equilibrar a inspiração que ela oferece com a complexidade e os desafios inerentes à prática. Assim, a leitura deve ser complementada por reflexões e discussões que reconheçam as nuances dessa área tão rica quanto desafiadora.

Resultados e Discussão

A romantização dos cuidados paliativos, embora destaque os aspectos positivos da prática, também cria obstáculos para o seu desenvolvimento adequado. Ao ignorar os desafios enfrentados pelos profissionais de saúde e ao criar expectativas irreais sobre os resultados, essa visão idealizada pode comprometer tanto a prática clínica quanto a percepção pública.

É fundamental que os cuidados paliativos sejam apresentados de maneira mais equilibrada, reconhecendo tanto o valor humano da prática quanto suas complexidades e limitações. Essa abordagem mais realista ajudaria a preparar melhor os profissionais para enfrentar os desafios emocionais e técnicos da área e educaria o público sobre as realidades do fim da vida, promovendo uma compreensão mais profunda e uma valorização mais autêntica dos cuidados paliativos.

A análise revelou que a romantização dos cuidados paliativos está presente em diversas esferas sociais, incluindo a literatura, o cinema, campanhas de conscientização e materiais de formação profissional. Essa idealização foi observada em narrativas que destacam a compaixão e o altruísmo dos profissionais como elementos centrais, frequentemente omitindo ou minimizando os desafios técnicos, emocionais e estruturais que compõem essa prática.

O discurso romantizado sobre os cuidados paliativos molda uma visão social em que a prática é vista como um espaço de entrega incondicional e realização pessoal. Essa percepção, amplamente difundida por obras literárias e audiovisuais, pode contribuir para que a sociedade crie expectativas irreais sobre a experiência do cuidado, tanto para os pacientes quanto para suas famílias. Por exemplo, espera-se que o cuidado paliativo proporcione sempre um ambiente de harmonia e conexão emocional, desconsiderando que situações de conflito, dor não controlada e limitações de recursos são comuns.

Entre os profissionais em formação, a romantização dos cuidados paliativos pode resultar em uma compreensão superficial e enviesada da prática. Estudantes de saúde relatam sentimento de frustração e inadequação ao se depararem com a realidade cotidiana, que envolve sobrecarga emocional, dilemas éticos e barreiras institucionais. Tal discrepância entre expectativa e realidade pode comprometer a resiliência e até mesmo contribuir para o esgotamento emocional.

A romantização também impacta os profissionais já inseridos na prática, ao criar uma cultura de idealização que desvaloriza ou negligencia o apoio necessário para lidar com os desafios emocionais e físicos do cuidado paliativo. Muitos profissionais sentissem pressionados a corresponder a essa imagem heroica, o que pode agravar o estresse ocupacional e dificultar o autocuidado.

Do ponto de vista ético, a romantização pode mascarar dilemas importantes, como a alocação de recursos limitados, as dificuldades em gerenciar sintomas refratários e as decisões complexas relacionadas à finitude. Além disso, a idealização pode inibir discussões mais críticas sobre a necessidade de ampliar o acesso ao cuidado paliativo e investir na formação continuada dos profissionais da área.

Embora a romantização dos cuidados paliativos desempenhe um papel positivo ao promover a valorização social dessa prática, é fundamental equilibrar essa perspectiva com uma visão mais realista e crítica. Narrativas que destacam apenas os aspectos emocionais e transformadores do cuidado podem desviar a atenção de problemas estruturais e sistêmicos, como a desigualdade no acesso a serviços paliativos e a falta de políticas públicas adequadas.

Os resultados sugerem que há uma necessidade urgente de desmistificar os cuidados paliativos, apresentando-os como uma prática complexa que envolve tanto aspectos técnicos e emocionais quanto limitações e desafios. Isso requer uma abordagem mais equilibrada nas campanhas de conscientização, materiais educativos e produções culturais, a fim de promover uma compreensão ampla e honesta sobre a importância e a realidade dos cuidados paliativos

Considerações Finais

Nas considerações finais deste artigo, ressaltamos a importância de uma análise crítica sobre a romantização dos cuidados paliativos, que, embora frequentemente vista como uma abordagem compassiva e idealizada, pode apresentar implicações complexas e contraditórias. A revisão da literatura e a reflexão teórica evidenciam que a idealização dos cuidados paliativos pode influenciar a percepção social da morte e do morrer, contribuindo para a perpetuação de uma visão simplificada ou até distorcida sobre esses processos, o que pode gerar expectativas irreais por parte de pacientes e familiares (Kübler-Ross, 1969; Rando, 2000).

Além disso, a formação e a prática dos profissionais de saúde podem ser moldadas por essas perspectivas, levando à dificuldade em lidar com as complexidades do sofrimento e da morte, além de impactar a adequação das intervenções oferecidas (Sullivan et al., 2014). Assim, é essencial adotar uma visão mais crítica e realista sobre os cuidados paliativos, que considere tanto os benefícios quanto as limitações dessa abordagem, permitindo um melhor preparo dos profissionais e uma abordagem mais humanizada e sensível às necessidades dos pacientes e suas famílias (Kassianos & Dimmock, 2019). A compreensão aprofundada dessa temática contribuirá para o desenvolvimento de práticas mais eficazes e ética no campo dos cuidados paliativos, respeitando a dignidade e as múltiplas dimensões do processo de morrer.

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1 Mestra em Bioética pela Universidad Europea del Atlántico, MBA em Gestão de Serviços Sociais e Políticas Públicas, Especialização em Educação Inclusiva pela Universidade Castelo Branco – Rio de Janeiro/RJ, Especialização em Saúde do Idoso – Gestão e Assistência em Gerontologia pela Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro /RJ, Especialização Internacional de Qualidade e Segurança do Paciente pela FIOCRUZ/RJ, Bacharel em Serviço Social pela Universidade Luterana do Brasil - ULBRA – Canoas/RS, Conteudista dos cursos da UFMA/EAD, Pesquisadora Bolsista CNPQ do Projeto CER Brasil e do projeto Programa Especial de Inclusão Social, Igualdade e Cidadania, Consultora da OPAS/OMS, Bolsista da FIOTEC/MS nas áreas do envelhecimento, oncologia pediátrica, pessoa com deficiência, saúde da pessoa idosa, atenção domiciliar e cuidados paliativos. E-mail: [email protected]. Link CV LATTES: http://lattes.cnpq.br/1391459345673848. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2140-6128