A REPRESENTAÇÃO SOCIOCULTURAL DA POPULAÇÃO NEGRA ESCRAVIZADA NOS ANÚNCIOS DE FUGA NO JORNAL “O ESPÍRITO-SANTENSE” (1871)
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17419916
Ketno Lucas Santiago1
Ana Paula Vieira e Souza2
RESUMO
O presente artigo trata-se de identificar a representação sociocultural da população negra em condição de escravidão no jornal “O Espírito-Santense” no ano de 1971. O objetivo é de identificar no noticiário os anúncios de fuga de escravos do jornal “O Espírito-Santense”, publicados no ano de 1971. A hipótese inicial é que a representação sociocultural do povo negro cativo se apresenta descrevendo as características físicas e os aspectos sociais e culturais da população negra em condição escravidão, publicados nos anúncios de fuga de escravos. Expressada por meio do discurso do Estado, do senhor escravista ou através da linha editorial da imprensa capixaba. A metodologia utilizada será por meio de análise do discurso nos anúncios do jornal e interpretação de iconografias por meio da semiótica, classificar as notícias e por fim estabelecer um diálogo bibliográfico com autores, contribuindo assim com a análise. Foram identificados no noticiário, sete anúncios de fuga de escravos no ano de 1871, publicados no jornal “O Espírito-Santense”.
Palavras-chave: Escravos; Fuga; Representação.
ABSTRACT
This article aims to identify a sociocultural representation of the black population in slavery in the newspaper “O Espírito-Santense” in 1971. The objective is to identify non-news ads of slave escapes in the newspaper “O Espírito-Santense”, published in 1971. The initial hypothesis is that a sociocultural representation of captive black people is presented describing the physical characteristics and social and cultural aspects of the black population in slavery, published in slave flight advertisements. Expressed through the speech of the State, the slave owner or through the editorial line of the Espírito Santo press. The methodology used will be through discourse analysis in newspaper advertisements and interpretation of iconographies through semiotics, classifying them as news and finally establishing a bibliographic dialogue with authors, thus contributing to the analysis. Seven announcements of slaves' escape in 1871, published in the newspaper “O Espírito-Santense” were identified in the news.
Keywords: Slaves; Escape; Representation.
INTRODUÇÃO
Este artigo analisa anúncios de fuga publicados no jornal O Espírito-Santense no ano de 1871, com o objetivo de identificar a representação sociocultural dos escravizados. O estudo é resultado da disciplina "Abordagens e Métodos em História Social e Política" do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) 3, ministrada no primeiro semestre de 2021.
A pesquisa parte do seguinte questionamento: de que forma o escravizado em fuga é representado nos anúncios do jornal O Espírito-Santense de 1871? O objetivo é identificar e analisar esses anúncios, buscando compreender a construção dessa representação. A hipótese inicial é que a representação sociocultural da população negra escravizada em fuga é construída de forma pejorativa e negativa, expressando a política escravista do século XIX, manifestada pelo discurso do Estado, do senhor de escravos e pela linha editorial da imprensa capixaba. O recorte temporal coincide com o ano da publicação da Lei do Ventre Livre (1871), conforme (BRASIL, 2012).
Para esta análise, dialoga-se com o conceito de representação social, que, segundo Chartier (1988, p. 23), "faz incidir a sua atenção sobre as estratégias que determinam posições e relações". A identidade do escravizado, nesse contexto, é construída pelo olhar do outro, diferenciando-se da representação do homem livre. Conforme Silva (2014), as identidades são marcadas por diferenças, constituídas tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por formas de exclusão social.
O referencial teórico deste artigo é composto por uma abordagem teórico-metodológica interdisciplinar, que integra diferentes campos de conhecimento para compreender o debate historiográfico. Nesse sentido, a representação social pode ser entendida como o produto e o processo de uma atividade mental pela qual um indivíduo ou grupo reconstitui a realidade e lhe atribui um significado específico (ABRIC, 2001).
A teoria das representações sociais, trabalhada de forma transdisciplinar, tem se expandido por diversas áreas, como história, medicina, marketing e educação (ARRUDA, 2002). Essa abordagem possibilita o fortalecimento e a valorização da história social, ampliando a abrangência de objetos de pesquisa e propostas teóricas.
A origem da teoria das representações sociais remonta ao trabalho de Serge Moscovici (1976), intitulado “La psychanalyse, son image et son public (1961/1976)”. Nessa obra, Moscovici investigou como o conhecimento científico se torna senso comum, alertando para os riscos que surgem quando uma teoria circula fora de seu contexto original (JOVCHELOVITCH, 2008).
Este artigo propõe analisar e identificar as representações sociais e culturais dos escravizados, conforme expressas nos anúncios de jornais do século XIX, com foco em suas características físicas, hábitos e modo de vida. A representação social, para Durkheim (2003, p. 28), manifesta a coesão social ao traduzir em práticas comuns a representação de um mundo compartilhado. Nas narrativas dos anúncios, é possível visualizar essa representação, entendendo que, para Barthes (2011, p. 19), a narrativa pode ser sustentada por diversas formas de linguagem, incluindo a escrita, a imagem e os gestos. A análise, assim, busca ampliar os estudos sobre o conceito de representação social e identidade da população negra.
A identidade, como ressalta Eakin (2019, p. 18), é profundamente constituída pela narrativa. Nesse sentido, os anúncios de jornais do século XIX oferecem informações cruciais sobre a construção da identidade da população negra, embora mediadas pelo olhar dos senhores escravistas e da imprensa da época. A análise dessas narrativas permite um estudo "a contrapelo", buscando compreender como a identidade do sujeito negro foi construída em meio à sociedade escravista, no contexto da política econômica dominante do Brasil.
A abordagem transdisciplinar é fundamental para a análise do discurso, conforme defendido por pesquisadores da linguística e da historiografia. Bakhtin (2003), por exemplo, destaca a complexidade do conceito discursivo, relacionado à linguagem, aos sujeitos e às determinações sócio-históricas. Nesse sentido, a Análise do Discurso (AD), de caráter transdisciplinar, baseia-se no entrelaçamento de diferentes teorias, como aponta Gregolin (2004), o que enriquece a investigação.
O desafio de narrar e discutir os acontecimentos a partir de fontes históricas, uma tarefa central para a historiografia, exige uma atenção especial às "complexidades e profundidades da escrita e do trabalho do historiador profissional" (KANSTEINER, 2017, p. 262). A análise das narrativas, portanto, envolve a reconstrução de operações semânticas que demandam tempo para se dedicarem ao estudo dos sujeitos.
A pesquisa adota uma metodologia qualitativa, considerando a interdependência entre teoria e prática e a relevância do contexto dos dados para a análise (CHIZZOTTI, 2010, p. 53). Essa abordagem se insere na perspectiva da História Social, que prioriza os aspectos históricos, filosóficos e culturais na compreensão dos seres humanos. Como destaca Barros (2005, p. 80), a metodologia remete a ações concretas para a resolução de um problema de pesquisa. Assim, esta investigação é do tipo documental, utilizando jornais como fonte principal, uma vez que se trata de um fenômeno social e histórico (SEVERINO, 2007, p. 122), evidenciado pela presença de escravizados nas notícias do jornal O Espírito-Santense em 1871.
A metodologia da pesquisa seguiu três etapas principais. Inicialmente, realizou-se o levantamento de informações e citações sobre fuga de escravizados publicadas no jornal O Espírito-Santense, em 1871. Em seguida, foi realizada uma revisão bibliográfica de literaturas, artigos, teses e dissertações que abordam a escravidão no Brasil e, especificamente, no Espírito Santo. Por fim, os anúncios identificados foram analisados, estabelecendo um diálogo entre as fontes primárias e a bibliografia levantada.
A busca documental foi realizada na Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Utilizando a categoria "fuga de escravos", foram pesquisados jornais do Espírito Santo no período de 1870 a 1879. Nesta busca, foram identificados 6 títulos de jornais, totalizando 71 ocorrências em 8.233 páginas. O jornal O Espírito-Santense foi o que apresentou o maior número de ocorrências, com 786 citações no período de 1870 a 1889. Para o ano de 1871, especificamente, foram localizadas 6 citações de anúncios de fuga no referido jornal, conforme detalhado no Quadro 01.
Quadro 01 – Número de citações do Jornal O Espírito-Santense no ano de 1871.
HEMEROTECA DIGITAL BRASILEIRA UF:ES – PERÍODO 1871. | |||
DESCRIÇÃO | PÁGINAS | OCORRÊNCIA | |
1 | O Espirito - Santense (ES) – 1871 | 8.233 | 71 |
Fonte: Biblioteca Nacional Digital do Brasil4.
Desta forma, optou-se por trabalhar com o jornal “O Espírito-Santense”, por possui maior regularidade de publicações e maior número de ocorrência. Opta-se também pelo método iconográfico de análise proposto e sugerido por Hernández; Lins (2016), por meio de uma leitura interdisciplinar. A semiótica traduz-se em uma “ciência que tem por objetivo investigar todas as linguagens possíveis, análise de fenômenos como fenômenos de produção de significação e de sentidos” (SANTAELLA, 1983, p.18).
Portanto no próximo capitulo apresenta-se os resultados da pesquisa e por fim, algumas das conclusões iniciais sobre como se representa social e culturalmente a população negra em fuga no Jornal “O Espírito-Santense”.
A REPRESENTAÇÂO DOS ESCRAVIZADOS NO JORNAL
O sistema escravista no Brasil perdurou por aproximadamente 300 anos, estruturando e ampliando-se pela exploração da força de trabalho da população negra. Conforme Moura (1994), esse período pode ser dividido em duas fases: a primeira, anterior a 1850, conhecida como “escravismo pleno5”; e a segunda, o “escravismo tardio6”, que se inicia com a publicação da Lei Eusébio de Queirós (Lei nº 581) 7, em 1850. Embora essa legislação tenha estabelecido medidas para restringir o tráfico transatlântico de africanos para o Brasil, não pôs fim à escravidão interna, marcando uma nova etapa para o sistema escravista.
O declínio da escravidão, enquanto política de Estado, foi impulsionado por um conjunto de leis e decretos que estabeleceram um marco regulatório para limitar a prática escravista (BRASIL, 2012). Uma das primeiras foi a Lei do Governo Feijó, de 18318, que declarava livres todos os africanos que chegassem ao país a partir de sua promulgação, embora sua eficácia tenha sido limitada. Em seguida, a Lei Eusébio de Queirós (Lei nº 581), de 1850, proibiu o tráfico transatlântico de africanos, levando à expulsão de muitos “traficantes estrangeiros” e ao reforço da fiscalização pelas autoridades (COSTA, 2007, p. 287). Outras leis9 foram aprovadas posteriormente no Brasil Império, contribuindo para o enfraquecimento gradual do sistema.
No Espírito Santo, a presença da população negra escravizada apresentou similaridades e diferenças em relação à política escravista brasileira. Conforme Maciel (2016, p. 56), durante o século XVII, a maioria dos africanos escravizados desembarcados nos portos de São Mateus e Vitória pertencia a grupos de origem banta, incluindo Congos e Crioulos. Os bantos, também conhecidos como angolas, provinham majoritariamente dos portos dessa região africana.
A população negra escravizada no Espírito Santo contribuiu significativamente para o desenvolvimento do Estado, ocupando diversas funções no mercado de trabalho. No período dos séculos XVII e XVIII, essa população constituía cerca de 70% do total de habitantes, atuando principalmente “nos trabalhos na mineração, na lavoura, nas manufaturas e nos serviços domésticos” (MACIEL, 2016, p. 56). Essa participação, contudo, diminuiu gradativamente ao longo do século XIX, em um processo que culminou com a abolição da escravidão.
Nesse sentido, é possível perceber um acentuado crescimento populacional na Província do Espírito Santo. Em 1871, a província possuía 77.584 habitantes. No ano seguinte, em 1872, a população aumentou para 82.137, com 59.478 pessoas livres e 22.659 escravizadas (AMERICANO CÂMARA, 2019), bem como Bastos (2009) 10. Essa dinâmica populacional também se manifestava em nível local: em 1872, por exemplo, na paróquia de Vitória, dos 268 lavradores, 218 (81,3%) eram escravizados e 50 (18,6%) eram livres (LAGO, 2018, p. 47).
Neste contexto, possui significativa relevância o desenvolvimento de estudos e conhecimento histórico sobre mídias, analisando signos e significados e identificando as relações de poder da sociedade ao pesquisar jornais, como o jornal “O Espírito-Santense” no ano de 1871. Apresenta elementos para analisar a representação social dos escravos. Por outro lado, “as relações mídia e história se fazem também pela busca dos vestígios, dos sinais, dos emblemas memoráveis que se inscrevem na própria prática discursiva” (BARBOSA, 2005, p. 105).
A história do jornal “O Espírito-Santense”, se inicia no Espírito Santo, através da sua primeira publicação, no dia 08 de setembro de 1870, funcionando até o dia 14 de junho de 1889. Teve circulação com a frequência de três vezes por semana e uma tiragem média de 500 exemplares. Conforme relata Jório Scolforo (2011), “o proprietário e redator era José Marcellino Pereira de Vasconcellos. Ele nasceu em Vitória em 1821 e foi funcionário público, advogado e deputado provincial” (SCOLFORO, 2011, p. 25).
Ao pesquisar o Jornal “O Espírito-Santense” no ano de 1871, na Biblioteca Nacional Digital do Brasil11, na Hemeroteca Digital Brasileira. Jornais do Espírito Santo, entre os anos de 1870 a 1879, com a categoria “fuga de escravos”, foram identificados 6 acervos (jornais), 71 ocorrências, em 8.233 páginas. O Jornal “O Espírito-Santense”, entre 1870 a 1889, apresentou o maior número de ocorrência, 786 e o número de 8.233 páginas. Sendo que no ano de 1871, foram 6 citações. Neste artigo, apresenta-se os principais anúncios identificados.
No anúncio publicado no dia 07, do março de 1871, no jornal “O Espírito-Santense” é dito que “acha-se fugido a mais de 20 dias o escravo de nome Sebastião, consta andar no distrito de Vianna e Cariacica trabalhando pelo ofício de pedreiro de sua profissão, ter sido encontrado em Porto Velho, cujo escravo foi do Ilm.º. Sr. Dionysio Alvaro Resendo”. No anúncio descrito é possível perceber que o escravo “Sebastião”, está sendo representado enquanto um escravo que exerce a função de pedreiro e fugitivo por 20 dias. (Figura 1)
Os anúncios de fuga no jornal O Espírito-Santense eram notavelmente descritivos, expondo tanto os nomes dos escravos quanto os dos senhores, ao contrário dos anúncios comerciais que sugerem anonimato (FERREIRA, 2012, p. 107). O detalhamento recorrente da presença de famílias detentoras de escravos nesses anúncios sugere a necessidade de uma análise mais aprofundada das relações entre escravistas e escravizados. A repetição dos anúncios, em algumas situações, como a publicação por três vezes do anúncio de um escravo em fuga, indica que ele permaneceu fugido por um longo período, superior aos 20 dias mencionados inicialmente.
Assim, a representação social da população escravizada em fuga, conforme publicada nos anúncios do jornal, revela uma classe social subjugada que utilizava a fuga como um instrumento de resistência e sobrevivência. A representação social da população negra se apresenta como “instâncias coletivas ou indivíduos singulares” (CHARTIER, 1991, p. 183), manifestando de forma visível e perpétua a existência do grupo, da comunidade ou da classe.
A análise das características físicas, como a descrição do escravo fugido com “cor fula, olhos grandes, imberbe, estatura baixa, mas reforçado, pernas arcadas, tendo o dedo médio da mão direita e expedito no falar e ágil para qualquer serviço”, reforça a objetificação e a racialização da identidade do escravizado. A menção à “cor fula” sugere um processo de miscigenação entre negros, indígenas e europeus, indicando uma tentativa de categorizar os indivíduos com base em características raciais, conforme ilustrado na Figura 2.
Outro aspecto significativo dos anúncios é a iconografia, que reforça a representação pejorativa da população escravizada. Uma caricatura, por exemplo, retrata o escravizado em fuga de maneira estereotipada: descalço, sem camisa, segurando uma vara e uma trouxa de roupa. Essa imagem, ao veicular uma representação visual específica e desumanizada, serve como um documento histórico revelador, conforme apontam Hernández e Lins (2016). Ela evidencia não apenas a aparência física que os senhores buscavam, mas também a visão ideológica e desvalorizada que a sociedade escravista tinha sobre os indivíduos escravizados.
A representação social da população negra escravizada, construída seletivamente por meio dos anúncios de jornais, diferenciava-se das demais camadas sociais e contribuía para a naturalização da condição do escravizado na sociedade. Conforme Cardoso (2000, p. 9), essa representação se estabelece por meio de dois processos: o contorno, que provê uma imagem ou figura a determinadas ideias, e a ancoragem, que assegura a vinculação social da representação.
Ao analisar o noticiário do jornal O Espírito-Santense, é possível identificar elementos que compõem essa representação, como o estado civil, o parentesco e, em alguns casos, a indicação do proprietário. A análise das fontes se alinha à visão de Machado (1987, p. 10), que aponta como a presença de escravizados, principalmente “escravas, crianças, velhos, portadores de defeitos ou aleijões, deveriam ter como destino final as ruas da cidade ou a cozinha de casas nem sempre portentosas”, refletindo o destino social e a marginalização desse grupo na sociedade.
Figura 4 – Anúncio de Fuga de Escravos.
Na descrição do anúncio, na figura 04, informa a fuga de escravos da fazenda Dalli, termo do sertão da fazenda do Rio Pardo, pertencentes a José João de Freitas Drumond. Fugitivos a partir dia 5 de outubro de 1870, com os seguintes sinais: “Ciriaco, pardo fusco de norte, filho da Província do Pará, idade de quarenta e cinco anos, principia a pintar cabelos brancos, tem cabelos grenhos, pouca barba, não tem dentes na frente”, fala ainda, sobre o olhar do índio, que mente pelo olhar, olhar com pouco estrabismo, olhos pequenos, corpo regular, estatura baixa, tem as mãos grossas do trabalho, pés chatos e um pouco “joaneta”, trabalha de foice machado, “toca viola”, bom canoeiro, trabalha em embarcação do mar, nada bem, por fim, registra que o escravo possui “idiotismo no falar”.
A caracterização descrita no anúncio é muito detalhista, informa idade, caraterísticas dos cabelos, barbas e outras informações. Essa caracterização minuciosa era muito comum nos anúncios de jornais do século XIX. “Os anúncios destacavam sempre seus defeitos físicos (“mancos”, “gagos”, “mudo”, “aleijado”) e revelavam inclusive o envelhecimento precoce desses cativos”. (SCHWARCZ, 1987 p.141). O pesquisador Gilberto Freyre (2012, p.43) também identifica outras características físicas, bem como a frequência das publicações.
No anúncio cita ainda os aspectos culturais relacionado ao trabalho, “trabalha de foice e machado [...] e trabalha embarcado no mar”, bem como trata ainda da sua habilidade musical ao referir “toca viola”, essas características apresentadas revelam os aspectos culturais. Porém, não é possível reduzir sua identidade apenas nestes aspectos, o escravo fugitivo possui uma singularidade diferenciada, diante de uma sociedade escravocrata. Os estudos culturais indicam que “a enorme e ampla variedade de diferenças entre os homens, crenças e valores, em costumes e instituições, tanto no tempo como de lugar para lugar, é essencialmente sem significado ao definir sua natureza” (GEERTZ, 2008, p.29).
No anúncio do jornal informando a fuga do escravo Pedro, falando de sua cor/raça, apontando como “pardo claro”, indicando um processo de miscigenação do escravo, de diferentes ascendências étnica e cultural, entre a povos brancos, indígenas e negros. Um processo de miscigenação, construção de “uma nação multiétnica”. Com idade de 28 anos, oriundo da Província de Minas Gerais. Ainda aponta as características dos cabelos, barba, “dentes uns por cima de outros na boca”, “estatura pequena” e “quando fala faz cara de riso, é muito ladino”.
Nas características também é possível perceber os aspectos relacionados ao trabalho ao citar que “pagiar bem casa de alfaiate e trabalha no trigo, faz pão, e roscas, anda bem a carvalho, e é meio pião”. Ao classificar os resultados da pesquisa foi possível identificar algumas citações nos anúncios abordando a relação do ofício dos escravos, dos filhos e dos cônjuges. Apontou também os anúncios que revela além do trabalho exercido pelos escravos a situação do trabalho infantil, conforme cita a “boa rendeira e acostumada a labutar com crianças” [...] “alugam-se pretas que sabem vender na rua” (FREYRE, 2012, p. 70). Entre outras situações.
No anúncio, publicado no jornal "O Espírito-Santense", informa a fuga José, crioulo de “Minas um pouco fula na cor, idade 18 a 20 anos, estatura baixa, não tem barba, corpo cheio, meio, barrigudo, nariz chato, beiços grossos, pés regulares e mãos e olhos grossos um pouco empapuçados, quando fala faz um sotaque pouco língua, é ladino”, escravo de roça. O anuncio apresenta um pouco de suas características físicas, sua idade, pouco mais pouco menos, e indica também o seu comportamento. Sem correr no erro de universalizar as características e o comportamento do sujeito. Desta forma, a representação social “aparece como um tertius entre sujeito e objeto, mediatizando a relação entre eles” (CARDOSO, 2012, p.42).
Em todos os anúncios descritos é possível perceber alguns fragmentos identitários dos escravos em fuga, publicados nos jornais. As caraterizações contribuem para construção de uma identidade do negro escravizado, diferenciado do homem liberto. Uma identidade social vista pelos olhos do outro. Nos anúncios é possível perceber signos e significados no discurso do proprietário, que paga o anúncio, ou da impressa capixaba, que publicava os anúncios. (SILVA, 2014).
Portanto, após analisar a representação social e cultural dos escravos fugitivo nos anúncios do jornal “O Espírito-Santense” de 1871, identificando suas características e seus aspectos identitários e modo vida, partimos para considerar algumas considerações iniciais.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Considerando a análise dos anúncios do jornal “O Espírito-Santense” no ano de 1871, para identificar, de que forma está sendo representado social e culturalmente a população negra fugitiva em condições de escravidão? Para se dar resposta a esse questionamento, foram identificados anúncios de fuga de escravos, onde por meio das características descritas analisar como os escravos em fuga estão sendo descrito nos anúncios de jornais.
O estudo sobre anúncios de jornais possibilitou perceber a importância do anunciado e publicações de jornais do Século XIX, se configura como uma importante fonte de pesquisa, por apresentar uma detalhada informação em relação aos aspectos culturais, econômicos e comportamentais dos escravos durante o Brasil Império, uma rica fonte de pesquisa, associado ao método de análise do discurso, trazendo elementos e métodos de análise iconográficos e semiótica, possibilitou fazer uma interpretação e análise dos anúncios de escravos no jornal “O Espírito-Santense” no ano de 1871, contribuindo de forma significativa para identificar alguns aspectos identitários, fragmentos de uma representação sociocultural da população escravizada em fuga.
Foram identificados, ao pesquisar o Jornal “O Espírito-Santense” no ano de 1871, na Biblioteca Nacional Digital do Brasil, na Hemeroteca Digital Brasileira. Jornais do Espírito Santo, entre os anos de 1870 a 1879, com a categoria "fuga de escravos", foram identificados 6 acervos (jornais), 71 ocorrências, em 8.233 páginas. O Jornal “O Espírito-Santense”, entre 1870 a 1889, apresentou o maior número de ocorrência, 786 e o número de 8.233 páginas. Sendo que no ano de 1871, foram 6 citações. Descrevendo um pouco da presença da população negra em condição de escravidão na sociedade capixaba.
Neste sentido, foi possível compreender que a política escravista, que perpassou por todo território nacional, com semelhanças e diferenças na realidade do Espírito Santo. Contribuiu de forma significava para conhecer um pouco da história do Jornal “O Espírito-Santense”. A pesquisa permitiu ainda estabelecer um diálogo bibliográfico inicial sobre a temática. Colaborou para caracterizar as representações do mundo social e cultural da população negra em fuga, foi possível ainda identificar os aspectos identitários contidos no sujeito, por meio de signos e significados publicados no jornal. Entendendo que no campo das representações estão ligadas aos interesses da legitimação do poder de classes.
A pesquisa também revela a necessidade de aprofundar sobre a representação sociocultural e identitários nos estudos sobre anúncio de jornais, para sanar algumas lacunas, pois foi possível identificar que os anúncios, refletem a política escravista da época, ao expressar a ótica do anunciante, no caso o senhor escravista ou a leitura da impressa local. Posições carregada de subjetividade e signos. Um estudo ampliado sobre as representações socioculturais, identitário e os aspectos hegemônicos presente nesta relação. Contribui assim, para montar um mosaico da presença do negro no Espírito Santo.
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SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
1 Historiador, Especialista em Educação/IFES, Mestre pelo Programa de Linguagens e Saberes da Amazônia da UFPA, Doutorando em História Social/UFES. Bolsista FAPES. [email protected]
2 Professora da Universidade Federal do Pará. Doutora em Educação (UFPA). Pós-Doutorado em Linguagens (UNIOESTE). Docente do Programa Linguagens e Saberes na Amazônia (PPLSA) na Linha de Educação, Linguagens e Interculturalidade na Amazônia. Coordena Linha Trabalho, Infâncias e Relações Étnico-Raciais no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE). Vice-líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-brasileiras (NEAB). E-mail: [email protected] - https://orcid.org/0000-0003-3340-1866, Tel. (091) – 98145-1011.
3 Disciplina ministrada pelos professores, Dr. Belchior Monteiro Lima Neto e Prof. Dr. Ueber José de Oliveira.
4 Disponível no site https://bndigital.bn.gov.br/
5 O escravismo pleno indicava “as relações entre os homens no processo de trabalho continuaram atrasadas e correspondentes a um estágio anterior (MOURA, 1994: 52).
6 O escravismo tardio, foi um período marcado por um conjunto de medidas, que enfraqueceram o sistema escravista. Lei para proibir o tráfico da população negra. Investimentos financeiros para outros setores econômicos; construção de Bancos, ferrovias, linhas de telégrafos e outros.
7 Lei Eusébio de Queiroz. Estabelece medidas para a repressão do tráfico de africanos neste Império. (BRASIL, 2012: 159).
8 Lei do Governo Feijó, de 7 de novembro de 1831. Declara livres todos os escravos vindos de fora do Império, e impõe penas aos importadores dos mesmos escravos (BRASIL, 2012: 69).
9 Lei Nº 731 de 1854. Decreto Nº 3.310 de 1864, concedeu emancipação dos africanos do Império. Lei Nº 1.237 de 1864 tratou dos escravos pertencentes às propriedades agrícolas como objeto. Decreto Nº 1.695 de 1869, proibindo a venda de escravos em pregão e em exposição pública (BRASIL, 2012).
10 BASTOS, Fabíola Martins. Relações sociais, conflitos e espaços de sociabilidades: formas de convívio no município de Vitória, 1850-1872. 2009. 189 f. Dissertação (Mestrado em História)- Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória (ES), 2009.
11 Disponível no site https://bndigital.bn.gov.br/