A PSICANÁLISE E PSICOPEDAGOGIA NA CLÍNICA DO AUTISMO INFANTIL

PDF: Clique Aqui


REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12696452


Andréa Pinheiro Bonfante1


RESUMO
O tema do autismo, devido sua complexidade, tem despertado muitos estudos em várias áreas de atuação, dentre elas a psicanálise e a psicopedagogia, onde especificamente se estabelece o debate do presente trabalho. A proposta aqui é a de levantar uma reflexão aos profissionais de diversas áreas de atuação, com o objetivo de promover melhores intervenções e atendimentos aos pacientes assim diagnosticados. Propõe-se primeiramente conhecer a história da psicanálise no tratamento com autistas, que inaugura uma percepção mais cuidadosa sobre a subjetividade desses sujeitos; e o quanto a psicopedagogia, como terapia da aprendizagem, pode contribuir significativamente na condução do tratamento, através da ludicidade, tornando o resultado ainda mais satisfatório, haja vista que o brincar seja ferramenta fundamental para a construção de suas subjetividades. Entretanto, para que o processo evolutivo dos pacientes aconteça de forma a desassisá-los dessa condição precária na qual as crianças autistas se encontram, observa-se que uma condição básica para viabilizar essa construção seja o investimento afetivo, que promove interações sociais e práticas inclusivas, motivando-os, dando-os um lugar de fato. A metodologia aplicada foi a de um levantamento bibliográfico, com base em pesquisas estrangeiras e brasileiras de profissionais diversos, por meio de matérias, artigos, livros, sites e blogs, assim como o de relato de casos clínicos, todos que de alguma forma sustentem em seus argumentos esse lugar de sujeito do autista, e não meramente um estudo patológico ou biologizante sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Palavras-chave: Autismo. Sujeito. Psicanálise. Psicopedagogia. Subjetividade.

1. Introdução

É de conhecimento do meio acadêmico a diversidade de opiniões e ideias sobre a verdadeira condição autística. Neste âmbito, a psicanálise e a psicopedagogia têm contribuído de forma muito positiva com o tratamento das crianças autistas, no sentido de como receber esses pacientes nos consultórios, ou quaisquer outros espaços, e em como acolher e orientar suas famílias, fazendo delas parceiras no tratamento deles. Para tanto, faz-se relevante entender o que é o autismo, quais são suas especificidades e como a psicanálise e a psicopedagogia podem colaborar efetivamente colaborar em seu tratamento.

A história da psicanálise no tratamento com autistas historiciza e localiza onde e como ela começa a ser usada no tratamento do transtorno, qual a sua trajetória nesse processo, as resistências de alguns segmentos da saúde pública em inicialmente acreditar que profissionais ligados direta ou indiretamente à psicanálise pudessem usá-la como forma de tratamento para retirar esses pacientes da condição precária na qual se encontram.

É extremamente importante considerar e valorizar a subjetividade da pessoa portadora do espectro e respeitar suas idiossincrasias no seu trato diário, para que ela não se sinta invadida ou tomada de sensações angustiantes. E como realizar tal tarefa é o que a psicopedagogia sinaliza, pois entende que a ludicidade seja o viés saudável para fazer das intervenções momentos prazerosos, respeitando esses limites e dando lugar à escuta e à forma como ela indica ser tratada, esta é uma das razões para nossa reflexão. Paralelamente a essa questão, o investimento afetivo do profissional, da família e da instituição escolar podem contribuir de forma muito positiva no processo evolutivo dos pacientes, promovendo motivações suficientemente consistentes como uma forma de fortalecer suas interações sociais, fazendo dele um sujeito autônomo e independente, suficientemente preparado para estar de alguma forma enredado na sociedade. Através do viés psicanalítico e psicopedagógico, o profissional observa e considera que a criança autista, através de movimentos repetitivos e estereotipados, esteja dando mostras de como possa e consiga se comunicar, do seu jeito, no seu ritmo, à sua maneira, mesmo que não verbalize sequer uma palavra, pois a forma como estão imersos na linguagem consiste num perfil muito particular e complexo.

O fator motivacional desta pesquisa é a investigação sobre os aspectos que circundam esse sujeito e seu envolvimento com suas próprias questões, pois é isso que verdadeiramente contribuirá não só com sua qualidade de vida, mas também daqueles que o cuidam e vivem com ele, e não meramente um estudo patológico ou biologizante sobre o TEA (Transtorno do Espectro Autista) e suas questões medicamentosas.

2. O que é o autismo e como ele pode ser tratado pela psicanálise e a psicopedagogia

Inicialmente, Paul Eugene Bleuler, renomado psiquiatra suíço, nascido em 1857 na pequena cidade de Zollikon, lançou em 1911 sua monumental monografia intitulada Demência precoce ou o grupo das esquizofrenias, que fundou a visão científica sobre essas psicoses. Esse trabalho contribuiu largamente para associar o autismo à esquizofrenia infantil, definindo-o como um conjunto de operações psíquicas que afetam a percepção da realidade, acarretando uma impossibilidade ou grande dificuldade para se comunicar. Mais adiante, Leo Kanner, um psiquiatra austríaco radicado nos Estados Unidos, registrou observações e relatos importantíssimos de casos clínicos, inclusive sobre a escuta dos pais a respeito dessas crianças. Foi ele quem descreveu pela primeira vez a síndrome então denominada de “autismo infantil precoce”, e em nome desses seus estudos realizou uma longa, detalhada e minuciosa observação e descrição de onze casos de crianças, que, embora fossem bastante distintos entre si, apresentavam características comuns significativas, dentre as quais a principal semelhança era o diagnóstico de surdez e de déficit cognitivo, apelidado no momento de “fraqueza de espírito”.

Dando sequência às suas observações e estudos, Kanner percebeu que não se tratava de surdez, tampouco de algum tipo de déficit cognitivo de fato, mas que estes, sim, eram características, traços, uma identidade do transtorno que sofriam seus pacientes, pois nenhuma das crianças observadas apresentava anomalia orgânica que justificasse os sintomas apresentados, tratando-se, efetivamente, “de uma inaptidão em estabelecer relações normais com as pessoas e situações desde o início da vida”. Segundo os relatos colhidos dos pais, caracterizam-se essas pessoas, por “uma solidão autística extrema, que desdenha, ignora e exclui tudo o que vem do exterior até a criança”. Na fala desses, Kanner registrou episódios e características tais como: “parecem bastar-se a si mesmos”, “sempre foram autossuficientes”, “agem como se as pessoas não existissem”, “mais felizes quando deixadas a sós”, “não choram e não solicitam atenção” (KANNER, 1997, p. 155).

Apesar da semelhança dos sintomas dessas crianças observadas em sua pesquisa e os relatos da literatura psiquiátrica sobre a esquizofrenia infantil e a demência “precocíssima”, com sintomas de ecolalia, negativismo, embotamento emocional e as estereotipias, Kanner distinguiu o autismo da esquizofrenia, partindo do princípio de que o que há no autismo é justamente a ausência de uma relação inicial, algo que não foi presentificado. O autista o é desde o início da vida, não houve ruptura porque não houve relação inicial, é algo que antecede, algo antes disso. Por outro lado, na esquizofrenia houve um retraimento da participação no mundo a partir de uma relação inicial presente.

Tentando abarcar ainda um pouco mais as características dessas crianças autistas, percebe-se o traço marcante de rejeitar tudo ou quase tudo que venha do mundo exterior, as chamadas intrusões, uma tentativa de barrar o que é do Outro, o que vem de fora. Vale inclusive pontuar que geralmente as crianças autistas apresentam graves distúrbios alimentares e mantêm uma relação muito particular com sua alimentação: “(...) alguns recusavam-se a alimentar-se, chegando ao extremo de precisarem ser alimentados por sonda durante os primeiros meses de vida. Outros vomitavam tudo o que comiam. (...) A alimentação é a primeira intrusão vinda do exterior para a criança” (KANNER,1997, p. 160).

Kanner sublinhou ainda mais as questões de intrusão quando abordou as reações de horror que podiam ser desencadeadas nestas pessoas por ruídos fortes e objetos em movimento. O curioso é que, numa mostra de dualidade inexplicável, essas mesmas crianças podiam conviver de forma harmônica e até prazerosa com ruídos tão fortes quanto àqueles que elas inicialmente temiam, desde que estes fossem fabricados por elas mesmas segundo suas próprias vontades – como, por exemplo, os gritos que eles mesmos emitem como forma de demonstrar suas emoções, assim como batidas em superfícies, como panelas e tampas e quaisquer outros objetos e brinquedos que despertem neles algum tipo de interesse e que lhes sirvam como ferramenta para tentar dar cabo de suas relações psicodinâmicas com o mundo. Reforça-se dessa forma a ideia do autismo como caracterizado pela rejeição ao que vem do Outro, da intrusão vinda de fora.

Os fenômenos de linguagem também devem ser observados segundo Kanner. Muitas dessas crianças adquirem a capacidade de falar, mesmo que tardiamente, mas nem sempre se utilizam dessa ferramenta para se comunicarem com outras pessoas, falando apenas poucas palavras ou frases com as pessoas de seu convívio. Algumas permanecem sem verbalizar sequer uma palavra, o que de forma alguma significa que não se comuniquem. Elas o fazem como podem, como conseguem, e ainda nos fazem de instrumento dessa linguagem muito particular e subjetiva, puxando-nos pelas mãos ou comunicando-se com olhares e sons que podem ir de sussurros a gritos. Dentre os fenômenos de linguagem, pode-se destacar a ecolalia, que consiste na repetição da fala de outra pessoa no mesmo tom e entonação. Pronomes pessoais na primeira pessoa do singular (eu) quase nunca são utilizados, referindo-se eles a si próprios mais comumente na terceira pessoa do singular (ele). O sentido literal que o autista dá ao que escuta é extremamente peculiar, e pode ser bem exemplificado com um fragmento de caso clínico:

Uma delas aprende a dizer sim, quando o pai o colocou sobre os ombros, com a condição de que ele dissesse essa palavra. A partir daí sim passou a significar ser colocado nos ombros do pai e não um símbolo de assentimento. O significado das palavras faz-se inflexível, não sendo utilizado em nenhuma outra conotação, fora a originalmente adquirida. (RIBEIRO, 2005, p. 26).

Suas relações com os objetos também são muitíssimo especiais e singulares, pois ora os rejeitam, e ora sentem-se completamente fascinados por eles. Experimentam em relação a esses “uma sensação de onipotência e controle” (KANNER, 1997, p. 163). E é justamente aí, nesse momento, que a ludicidade das intervenções psicopedagógicas pode ocupar um lugar diferencial, tornando possível de alguma forma que a relação da criança com os brinquedos e jogos possa ser diferente, tomando proporções terapêuticas, muitíssimo positivas.

Da releitura do estudo de Kanner, três pontos devem ser destacados. O primeiro, quanto à precocidade dos sintomas autísticos, remetendo-nos a questão que diz respeito à construção do sujeito. O segundo ponto, é o fato de que o que vem de fora, do exterior, é aí tido como intrusivo, direcionando-nos para uma questão crucial: afinal, quem é o outro para a pessoa autista? E o terceiro e último, diz respeito à possibilidade de um outro poder efetivamente se incluir/ser incluído no mundo do autista.

O fato é que, sendo o autismo um transtorno complexo e decorrente da combinação de vários fatores, conhecidos e desconhecidos, de ordem genética, neurológica, emocional e ambiental, o resultado é um grave impedimento para estabelecer as relações humanas básicas. Éric Laurent, em seu livro A batalha do autismo, levanta a questão de que a discussão entre biológico ou psíquico seja na verdade um falso debate, pois “(...) um sujeito não cessa de ser um sujeito, mesmo que seu corpo seja deficiente (...), pois o fato de haver algo de biológico em jogo não exclui a particularidade do espaço de constituição do sujeito como ser falante.” (LAURENT, 2014, p. 33). É a partir desta colocação e percepção que podemos entender que a psicanálise e a psicopedagogia podem contribuir como ferramentas nesse sentido, dando um lugar para esse sujeito que se descortina por detrás de um conjunto de sintomas e particularidades. Efetivamente, quando se trata de preservar a singularidade de fatos que estiveram para ser colocados debaixo do tapete da cultura, é a psicanálise que está em questão, um conhecimento e prática que, no caso do autismo, faz preservar a relevância clínica e política do mesmo.

Parafraseando Laurent(2014), o que temos de mais humano é a necessidade de fazer a vida excessiva que trazemos sempre conosco conviver e funcionar com a necessária regulação social dos desejos e dos gozos, dizendo ainda que cada um sustenta a seu modo a arte de viver esse desafio. Para cada um, esse cruzamento é único e distinto e mantém-se à custa de um trabalho contínuo. O autista, entretanto, realiza esse trabalho com pedra lascada e barro fofo, lidando com a estranheza de um marciano em sua relação com o coletivo. Laurent nos alerta quanto à facilidade de incorrermos no equívoco de nos cegarmos quanto à delicadeza desse trabalho ao qual o autista todo tempo tenta edificar, se cairmos na cilada de acreditar que já nascemos prontos para essa tarefa, adotando protocolos de conduta e dados estatísticos que desconsideram a subjetividade de cada indivíduo. Como indiquei em outra ocasião, trabalhar com pacientes portadores do Espectro do Autismo é um grande desafio e aprendizado. Estes pacientes nos ensinam diariamente que formas diferentes de se comunicar são possíveis e que o tempo não é fator determinante, que ele é sim subjetivo e que atende as demandas da criança e não do profissional que o atende e que a forma como o trabalho irá ser conduzido é diariamente sinalizada por ela, a criança, e que cabe ao profissional ficar atento às suas peculiaridades e singularidades dentro de uma enorme pluralidade de possibilidades. A tão renomada médica psiquiatra Nise da Silveira nos deixou um grande legado, o de estar atento ao suposto silêncio dos pacientes. Sua forma de agir, mesmo sem proferir sequer uma palavra, nos dá pistas sobre como secretariá-los, pois, é disso que se trata, secretariar, ir ao lado, nem à frente, tampouco atrás. É buscar e proporcionar aquilo que lhes falta, ou seja, a compreensão do olhar. Pois é essa a grande questão dos portadores do espectro, a linguagem; o olhar, o corpo, o gesto, a voz, são formas de se comunicar com essa criança que justamente não sabe como fazer para dar voz às suas demandas e nem como barrar tudo aquilo que muitas das vezes lhes é extremamente intrusivo, como os sons, sensações e emoções. Tudo o que vem de fora invade esse corpo que ainda não fez borda, isto é, que não entende nem percebe seus limites e o do outro(s) com o(s) qual/quais convive (BONFANTE, 2017).

Laurent diz tratar-se de uma escolha simples: ou os aspectos únicos de uma história ou seus dados universais – e sabemos que a psicanálise não tem lugar em espaços totalitários, e assim o foi desde seu surgimento. Numa sociedade contemporânea e num mundo globalizado onde a pretensa liberdade de escolha nos coloca à mercê do mercado, das pseudoverdades científicas e do poder da mídia, a psicanálise propõe a diversidade das abordagens, o respeito à forma de ser de cada um. Ainda elucidando minhas indicações em momento anterior a respeito da diversidade das abordagens, o que se deve reiterar é a ideia de que não há fórmulas pré-estabelecidas, nem tampouco prazos para cumprir no tratamento do autismo infantil. O que há e deve haver efetivamente é um grande investimento do profissional, uma participação da família, um trabalho multidisciplinar com a instituição escolar e outros profissionais, assim como a tranquilidade de perceber que, para uma melhor qualidade de vida, a criança autista deve estar sempre sendo estimulada e incluída em rodas sociais, sejam elas na escola, no esporte, ou quaisquer outras (BONFANTE, 2017).

Cabe ter sempre no horizonte, como ressalta ainda Laurent, que a abordagem psicanalítica nunca é a de uma teoria que se desenvolve independentemente de uma prática, e muito menos a de uma especialidade à margem ou isolada das outras disciplinas de funcionalidade clínica e sim uma prática que nos levou à teoria a partir dos estudos e observações, deixando claro, que para a psicanálise, o que vale verdadeiramente é o sujeito. Por outro lado, a psicopedagogia aporta seu contributo na forma de uma terapia, uma terapia da educação, que passo a passo estabelece uma relação com o sujeito, onde ele possa vir a escolher suas próprias ferramentas e construir seu percurso, sua aprendizagem. A Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) vem, cada vez mais, participando de movimentos onde os portadores de TEA não sejam negligenciados em sua subjetividade, e busca fazer com que os fenômenos complexos dos mesmos sejam tratados como verdadeiramente são, isto é, fenômenos humanos, não de cérebros sem vida. A psicopedagogia não apenas entende que essa seja uma importante questão, como sustenta que esse lugar de psico compreende terapeuticamente e pedagogicamente a aprendizagem.

2.1. No que consiste o trabalho da psicopedagogia

Rubem Alves (1999) comenta que o ser humano, diferente dos demais animais, não nasce sabendo. Os bichos já são diplomados; em contrapartida, nós não sabemos o que é necessário fazer para poder viver. Temos de inventar o que está faltando. Por essa razão temos de ser educados. Através da educação vamos completando nossa programação, através da magia das palavras. Elcie Masini (2000) afirma que é através da aprendizagem que se desenvolvem habilidades, raciocínios, atitudes, valores, vontades, interesses, aspirações, interações, participação e realização. A partir do estudo sistemático dos processos pelos quais se dão a aprendizagem é que surge a psicopedagogia.

Para Sônia Kiguel (1991), o foco principal de estudo da psicopedagogia refere-se ao processo da aprendizagem humana, englobando seus padrões evolutivos normais e patológicos, assim como a influência do meio (família, escola e sociedade) no seu desenvolvimento. Maria Aparecida Neves (1991) acrescenta que a psicopedagogia estuda o ato tanto de aprender como o de ensinar, levando em conta realidades internas e externas, tomadas em conjunto, estudando a construção do conhecimento em toda a sua complexidade, conferindo proporções iguais aos aspectos cognitivos, afetivos e sociais. Já Beatriz Scoz (1992), afirma que a psicopedagogia estuda o processo de aprendizagem e suas dificuldades, englobando vários campos do conhecimento, integrando-os e sintetizando-os.

Edith Rubinstein (1992) argumenta que, num primeiro momento, a psicopedagogia estava voltada para a busca e o desenvolvimento de metodologias que melhor atendessem aos portadores de dificuldades de aprendizagem, fazendo desaparecer os sintomas através da sua remediação ou reeducação. Mas, do ponto de vista de Maria Lúcia Weiss (1991), a psicopedagogia busca por primeiro melhorar as relações com a aprendizagem em geral, otimizando também a construção da própria aprendizagem de alunos e educadores.

Há, portanto, um consenso entre os profissionais da área de que a psicopedagogia se ocupa em estudar a aprendizagem humana, e tendo a aprendizagem uma enorme complexidade, sendo ela o resultado de uma visão humana, é em razão dessa visão que acontece a prática psicopedagógica. Nádia Bossa (2000) complementa o ponto afirmando que a psicopedagogia como área de aplicação antecede sua conformação como uma de área de estudos sistemáticos, e, como tal tem tentado definir seu objeto, delimitar seu campo de atuação, recorrendo para isso ao instrumental multiforme, por exemplo, da psicologia, psicanálise, linguística, medicina e pedagogia.

A mesma autora e Vera de Oliveira (2015) sustentam ainda que a prática psicopedagógica é um lugar privilegiado para se observar as relações entre estruturas cognitiva e simbólica ao nível do desejo, e que não há mais dúvida alguma de que a estrutura cognitiva deva conhecer a afetiva, e vice-versa. O que se pode dizer a esse respeito, antes do mais, é que o conhecimento do cognitivo e do afetivo pode estar ligado à fusão que constitui o sujeito entre seu conhecimento e seu desejo. Assim sendo, “(...) A psicopedagogia vem constituindo seu corpo teórico na articulação da psicanálise e da psicologia genética. Articulação que fica evidente quando se trata de observar os problemas de aprendizagem, pilar da teoria psicopedagógica” (OLIVEIRA & BOSSA, 2015, p. 8).

2.2 A psicanálise como ferramenta na psicopedagogia

Se em outros momentos da história, o homem apelava para diversos valores para dar conta de suas ansiedades frente às adversidades da vida, na época contemporânea, conforme comenta Denise Maurano, em seu Para que serve a psicanálise? (2003), buscamos respostas acima de tudo na necessidade de nos atermos uns aos outros. Isso considerado, à exemplo de buscarmos sempre respostas para nossos questionamentos, a psicanálise auxilia a psicopedagogia a entender o que vai além das aparências, para procurar as causas verdadeiras, primeiras, que possam parecer ocultas, mas que o olhar psicanalítico pode desvendar, conforme recorda Suzana Araóz (2015).

Considerando que a psicopedagogia tem como objetivo principal cuidar das dificuldades da aprendizagem, compreendendo-as e, na medida do possível, sanando-as, fica mais fácil compreender que o objetivo não será alcançado sem que a mente humana seja entendida em um sentido mais amplo, pois conteúdos inconscientes podem produzir essas dificuldades ou encobrir suas causas primeiras, sendo, como pontua Araóz, a própria não aprendizagem um possível mecanismo de defesa da criança em idade escolar, ou da pessoa em qualquer outro momento de sua vida. Sara Paín (1996) argumenta de modo convincente que essa não aprendizagem tem origem no inconsciente lógico que precisa expressar uma imagem de si mesmo como ignorante. Dessa forma essa criança fará com que todos; a instituição, os professores e familiares, preocupem-se com ela, que olhem para ela de modo atencioso, cuidadoso. Sendo assim, o ato de não aprender lhe trará a alegria de interação com o tão outro procurado.

Sigmund Freud (1977), em texto fundador, por sua vez, afirmou que o recalcamento de um acontecimento que envolvia a aprendizagem pode ter causado sofrimento ou constrangimento a uma criança; esta, por sua vez, pode querer repetir a experiência, transformando-a em um comportamento agressivo, traduzido em dificuldade de comportamento, ou então evitar uma situação, levando à ignorância, entendida como problemas de aprendizagem. Alicia Fernández (1991), retomando a questão, observa que, se não há desejo de aprender, o desenvolvimento normal do ser humano está comprometido, aprisionando a inteligência, que não pode se expressar plenamente sem a presença constante desse desejo.

2.3. O olhar do psicopedagogo

Weiss (2012) afirma que a psicopedagogia propõe uma visão abrangente, ampla, mais além, para encontrar uma resposta à queixa escolar, do não aprender, ou aprender com dificuldade, ou até mesmo o não querer aprender, que caracteriza uma patente falta de desejo. E que fará isso sob diferentes perspectivas, isto é, da sociedade, da escola e do aluno. Araóz (2015) julga importante a teoria psicanalítica à prática da psicopedagogia, pois permite que profissionais da área tenham um olhar diferenciado sobre as questões que comprometem a aprendizagem, e dessa forma possam perceber quando se faz necessário encaminhar a criança em dificuldade à profissionais competentes. O psicopedagogo precisa compreender a situação da aprendizagem como um todo, de modo global, diz a referida autora. Precisa também saber qual metodologia utilizar a cada caso diante do qual se veja confrontado, e, acima de tudo, perceber que a visão psicopedagógica extrapola os limites da instituição escolar, que ela está presente em todos os seguimentos da aprendizagem, enfim, no mundo ao seu redor.

Weiss (2012) diz que igualdade e diversidade não são conceitos absolutos, mas sim de grande relatividade. Ainda acrescenta que num país de dimensões continentais como o nosso, de enorme diversidade cultural e econômica, o que é excelente numa grande cidade poderá não servir num pequeno povoado do sertão, uma comunidade ribeirinha da Amazônia. Assim sendo, a referida autora ainda indaga se os profissionais de educação estão realmente preparados para lidar com as diferenças entre os alunos sem classificá-los ou rotulá-los. Renato Mezan (2012) qualifica o uso da teoria psicanalítica justamente a partir da visão do psicopedagogo que necessita ter uma escuta mais profunda, um olhar mais abrangente e efetivamente compreensivo diante das realidades que se lhe apresentam. Desta forma, o olhar da psicopedagogia sob a ótica psicanalítica possibilitará um olhar mais apurado, detalhado e atento, de forma a compreender que as diversas motivações que possam levar a criança a apresentar dificuldades na aprendizagem podem ser motivadas por causas conscientes ou inconscientes e que os sintomas são apenas mostras de que algo não vai bem. A psicanálise, então, irá buscar conhecer as causas dessas questões, não só suas manifestações enquanto um sintoma.

3. A singularidade do sujeito autista dentre a pluralidade das subjetividades

Para que possamos falar da subjetividade e das peculiaridades desse sujeito autista, precisamos inicialmente entender quem é essa pessoa que nos chega aos consultórios e/ou instituições psiquiátricas. É extremamente relevante, que se conheça a história que até mesmo antecede sua gestação, se essa criança foi desejada ou programada; se dentro do ventre de sua mãe havia qualquer manifestação de afeto ou algum direcionamento a ela, tanto por parte de sua mãe, daquela que a gerou, ou dos outros que de alguma forma fizeram/fazem parte do grupo familiar e social do qual a criança já é um integrante quando de seu nascimento. O documentário O começo da vida (2016), dirigido por Estela Renner, percorreu os quatro cantos do mundo abordando a importância dos primeiros meses e anos de vida na formação de cada pessoa. Aí se mostra claramente que a aprendizagem está em todo lugar, e que pesquisas comprovam que antes mesmo do nascimento, ainda no ventre materno, cada criança, de alguma forma, já inicia a construção de sua própria história.

Efetivamente, cada pessoa demanda, desde o período de sua gestação e nascimento, de sua mãe e do grupo do qual já faz parte, aconchego, cuidados e investimento para que nasça e sobreviva. Esses cuidados iniciais tiram-na do desamparo e enchem-na de significantes, dizendo a ela o que é isto ou aquilo, e quem ela é, dando-lhe entendimento de sua própria existência. É apenas por isso e graças a isso que um bebê humano é capaz de sobreviver. Por conta desse investimento, ele se torna ativo na construção dos seus saberes, construindo-os e reconstruindo-os a partir de experiências constantes e diárias, que precisam ser motivadas, onde aquele que o cuida, seja quem for, apresente-o ao mundo, lance-o ao desejo de saber, que o permita mergulhar nas investigações tão necessárias ao processo de aprendizagem; em outras palavras, toda essa construção diz respeito à fundação do sujeito.

Marie-Christine Laznick (2013) nos alerta para o fato de que o poder encantador da voz já está em ação meses antes do nascimento, e que não nos esqueçamos de que a voz é primeira e comanda o olhar, e não o inverso. Se nos focarmos a essa colocação da autora, vale ressaltar aqui a importância de se conversar com esse bebê que está por vir ainda dentro da barriga da gestante, voz que parte dela e dos outros que aguardam sua chegada, mas principalmente a da mãe. A entonação ou forma como a voz lhe chega aos ouvidos pode até mesmo deixar de ser uma recusa daqueles que de forma habitual não respondem aos chamados daqueles que o cercam. Mesmo bebês que recusam habitualmente responder a qualquer apelo e que não olham espontaneamente nenhum adulto, não podem deixar de olhar se ouvirem a invocação de uma voz portadora de uma prosódia particular, que foi descrita pelos psicolinguistas como característica do manhês.

De forma alguma pensamos restringir a condição autística a esse fato, mas considerar sua importância é falar sobre a matriz familiar à qual essa criança faz parte, e que também, junto a outros e vários aspectos, nos dá notícias desse sujeito, das suas particularidades, como ele se manifesta, o que quer, o que pensa, como quer e como pode fazer. Quando pensamos e falamos sobre autismo, acabamos muitas das vezes falando mais do mesmo, ao dizer que há no autista uma falha na comunicação, nas interações sociais. Sim, de fato é o que há; entretanto, não é apenas disso que se trata. Inês Catão (2009) debate essa questão sob uma perspectiva diferente, lembrando que muitas das discussões sobre o autismo destacam quase que só a ausência de fala dessas crianças, dando pouca ou nenhuma importância a como elas ouvem ou deixam de ouvir. Não raro as crianças autistas são diagnosticadas surdas ou são inicialmente encaminhadas para avaliações audiológicas, pois sua conduta dispersiva e desatenta, face ao comando da voz do outro, bem como a pobreza ou a inexistência discursiva despertam a pronta preocupação dos pais e cuidadores. Para Catão, contudo, não é o caso de tematizar o canto da sereia por si só, mas como esse canto é ouvido pela pessoa autista, uma voz inconstituíd, que não a seduz para a subjetividade. Desse modo, o autista ouve, mas não escuta, e nem sempre o ruído do Outro se transforma em voz: “(...) A criança autista sofre de uma surdez seletiva para a voz do outro. O evitamento seletivo da voz do outro se instala antes de qualquer evitamento seletivo do olhar…” (CATÃO, 2009).

Kanner pontua que, ao nos encontrarmos com crianças autistas em nossa clínica, podemos nos surpreender pelo fato de que, enquanto uma criança “dita normal” demanda a todo o tempo brincar, sorrir, chorar, alimentar-se, aconchegar-se no colo, as autistas, pelo contrário, não compartilhem dessas representações mais simples e consensuais, pelo menos aparentemente, pois a tudo isso se demonstram desinteressadas em falar e/ou estabelecer laços sociais. Há nelas efetivamente uma aparente falta, algo como um déficit, uma parada num estágio pré-verbal do desenvolvimento. Com isso Kanner nos ensina que na clínica com crianças autistas, “fazer-se sujeito não é um processo que se dá de forma natural, mas é uma construção que requer trabalho” (KANNER,1997).

Retomar as reflexões dos autores já trazidos aqui, é se dispor a considerar muito atentamente que as crianças autistas, mesmo que não digam sequer uma palavra, ou que então pareçam não ouvir aos chamados dos que o cercam, podem não fazê-lo justamente por não considerarmos sua subjetividade e idiossincrasias. Há de alguma forma uma escuta sem voltar o olhar, há um dizer sem verbalização de palavras. Por essa razão, é de extrema importância considerar todos os aspectos de sua vida, desde sua gestação, para viabilizar a possibilidade de estreitamento nas interações sociais com ela de uma forma mais apropriada, de um jeito que essa criança consiga dizer e ser ouvida mesmo na ausência da voz e do olhar. E novamente: qual seria então o papel do analista neste processo? Catão considera que sua voz passa ser moeda corrente e de valor na condução do trabalho clínico, na medida em que sua escuta deve permitir que a prosa lhe retorne com poesia, experiência mais próxima do inconsciente, aquela de fundação de um sujeito (CATÃO, 2009).

4. O investimento afetivo da família, do profissional e da escola como forma de tratamento

Com efeito, o que vem constituir para o bebê mais tarde a vivência de seu corpo, supõe uma articulação complexa entre sua realidade orgânica e o que bem se chamou de olhar dos pais. Este olhar não se confunde com a visão. Trata-se, sobretudo de uma forma particular de investimento libidinal, que permite aos pais uma ilusão antecipadora onde eles percebem o real orgânico do bebê, aureolado pelo que aí se representa, pelo que aí ele poderá advir. É a ilusão antecipadora, o “His majesty, the baby” (Sua majestade, o bebê), de que Freud falava em 1914. Mas o que se chama aqui de olhar é também o que permite à mãe o excitar de início, nos balbucios do bebê, mensagens significantes que ele fará suas mais tarde. Ver e escutar o que ainda não está para que um dia possa advir – é o que Donald Winnicott chamava a loucura necessária da mãe (cf. LAZNIK 2013, pp. 24-25). Essa articulação complexa, esse olhar dos pais, ao qual Laznik se refere e que não se confunde com a visão, é justamente o que pode tornar tudo mais intimista na relação entre filhos e pais de crianças autistas; consequentemente pode promover, através dela, a formação de um sujeito, um retorno do olhar, que pode de alguma forma tirar essa criança de um isolamento, promovendo uma interação, uma inserção efetiva no campo das relações que ela possa vir a ter ao longo de sua vida. Essa loucura necessária ao qual Winnicott se referiu como suficientemente boa, que supõe, acredita e fantasia a respeito do bebê, que dá a ele uma identidade, é o ponto de partida, o despertar daquilo que se acredita possa vir a ser, o seu advir.

Uma conduta psicanalítica por parte do profissional que secretaria esse “alienado”, que o percebe sujeito, que acredita ser possível para ele estabelecer relações suficientemente saudáveis no âmbito, por exemplo, de sua família e ambiente escolar, pode então retirar de um suposto asilo essa criança da condição inicialmente precária na qual se encontra, justamente por fazer com que esses outros dois segmentos, escola e família, possam trabalhar em parceria e consigam ver esse a quem pretendemos se constitua um sujeito, não como alguém sem subjetividade, rotulado por transtornos de espectro autista, mas como uma pessoa dotada de um nome e uma identidade. A partir da descoberta do inconsciente por Freud, operou-se a subversão do sujeito cartesiano, e Jacques Lacan acabou por demonstrar que esse sujeito da psicanálise, ao qual nos referimos, não é o sujeito da razão, mas algo que surge justamente na falha do discurso, nos tropeços da fala, nas precariedades as quais Laurent também tanto se refere. Lacan fortuitamente transformou a fórmula “penso, logo sou” em “sou lá onde não penso”; sendo assim, o sujeito da psicanálise constitui-se não mais desde a inserção do objeto, mas como o objeto da falta. E sendo a falta a causa do desejo, e compreendendo que para as crianças autistas esta falta, esse furo estrutural, seja ainda mais presentificado, utilizar o investimento afetivo como ferramenta para tentar estruturar minimamente sua subjetividade talvez possa ser uma boa saída para secretariá-los nessa construção. Vale relembrar nesse sentido certa afirmação Gabriela Meyer (2017): “(...) é a relação do sujeito com o Outro que nos oferece o caminho para investigar o que é específico do sujeito da psicose.”

A narrativa de um fragmento clínico de uma psicanalista que atende crianças autistas pode muito claramente ilustrar o que a autora acima citada tão veementemente nos coloca. O paciente de nove anos, que aqui nomeio B, chega numa determinada tarde ao atendimento bastante desmotivado e resistente a quaisquer intervenções que a profissional tentasse utilizar. Nem brinquedos, música ou jogos de sua preferência conseguem tirá-lo daquele embotamento. Apesar das várias tentativas fracassadas, a profissional não desiste e segue tentando, até que se lembra de um vídeo que havia assistido, onde outra profissional sugeria trabalhar com crianças autistas com fantoches e relatava a experiência positiva que havia conquistado. Pensando nisso, pega então uma pequena boneca de pelúcia de uma personagem de desenho animado e começa a provocar seu paciente B, fazendo carinho no rosto com a boneca, fazendo cosquinha, jogando beijinho, enfim, provocando nele uma reação. B começa a dar mostras de que se interessa, esboçando um discreto sorriso, a oportunidade que sua psicanalista-psicopedagoga precisava para continuar investindo afetivamente naquela criança. Grandes gargalhadas foram dando lugar à apatia inicial da criança; a partir daí, muita corrida, dança e sorrisos preencheram o setting até o final da sessão, que quase não pode ser concluída, simplesmente porque o paciente não queria ir embora.

A grande máxima que esse fragmento clínico nos deixa é que um investimento afetivo é capaz de dar um novo rumo ao tratamento. Diante do episódio aqui relatado, cabem alguns questionamentos. Como ficaria a criança se a profissional continuasse insistindo em atividades não apropriadas? A profissional deveria ter desistido? Qual a melhor conduta para situações como esta? Acredito que o investimento afetivo, tanto por parte dos membros da família do paciente, quanto do profissional engajado em seu tratamento e dos membros de seu ambiente escolar, consiga dar voz a esse sujeito e promover infinitas possibilidades, inclusive como reforço cognitivo de curto e médio prazo. Para brevemente ilustrar essa afirmativa, cabe mencionar que esse mesmo paciente evoluiu consideravelmente na escola devido à dedicação de sua professora e a parceria da instituição escolar, assim como a evolução dessa criança como um todo se deve principalmente por conta do investimento afetivo de sua mãe, que, pelo viés do amor insere-o socialmente em todos os laços possíveis e promove nas suas relações uma aprendizagem diária e constante.

5. Interações sociais e práticas inclusivas

As interações sociais têm um papel decisivo para a evolução do ser humano e são fundamentais para o processo e desenvolvimento da fala e da escuta, que encontra sua base nas ligações da história individual e social de cada pessoa. Como bem argumentou Lev Vigotsky, “a história do processo de internalização da fala social é também a história da socialização do intelecto prático das crianças” (VIGOTSKY, 1991, p. 30).

O processo de inclusão escolar em contextos de educação infantil vem ao longo de muitos anos sendo exaustivamente debatido por autores como Vigotsky, através da sua teoria da zona proximal e do uso de instrumentos adequados, promovidos pela mediação humana, e por Paulo Freire, pela teoria do amor, onde o educador brilhantemente afirma que a conjunção e é a menor palavra para aproximar uma coisa de outra, uma pessoa de outra, como por exemplo, eu e você ou você e eu. O autor segue dizendo que “e” é a menor palavra que empregamos para somar, para acrescentar, para criar vínculos, estabelecer interações, para pensar em equipe, para fundar o diálogo, para mudar o mundo. Entretanto, a prática caminha a passos lentos em muitas instituições de ensino, e há numerosos educadores que equivocadamente ainda não conseguem perceber no que na verdade consiste um processo de inclusão. Inclusão é fazer com que o sujeito se torne parte de, e não que fique à margem, sob um argumento que basta um número de matrícula e estar frequentando uma escola. Do que verdadeiramente se trata? De inclusão de fato ou exclusão assistida? É preciso reavaliar as ferramentas que estão sendo utilizadas e quais profissionais são esses que as utilizam, e em quais teorias exatamente estão embasados.

O fato é que, quando a instituição escolar, junto ao educador, deseja de fato fazer parte desse processo, em parceria com a família e os profissionais que a acompanham, os ganhos são extremamente significativos para a criança autista ou com uma outra dificuldade de aprendizagem qualquer. Esse formato de equipe multidisciplinar pode se apropriar do diálogo não apenas como uma estratégia de ensino ou método didático, como comenta Freire, mas como o fundamento e a razão de ser do próprio trabalho de ensinar-aprender. Essa inserção social pode resultar em motivação suficientemente consistente a ponto de promover nesse sujeito uma capacidade de autonomia que irá ainda mais lhe dar condições para estar inserido neste e em outros enredamentos sociais de forma extremamente saudáveis, ampliando as possibilidades de que ele possa vir a se constituir como um adulto com melhor qualidade de vida e autônomo.

Ilustrando de forma muito rica um exemplo de melhoria e autonomia destes, pode-se bem mencionar aqui o cantor Saulo Laucas, cego e autista, que entrou para a faculdade e virou um tenor de sucesso. Sua mãe relatou que seu diagnóstico veio tardiamente, por volta dos nove anos de idade. O choro e a irritabilidade do menino eram constantes, até que num determinado momento um de seus outros filhos colocou uma música para tocar e Saulo parou de chorar e se acalmou. A partir de então a mãe se utilizou dessa ferramenta para melhor interagir com seu filho, que até o momento era considerado como “problemático”, assim dito por ela. A música entrou definitivamente para sua vida, e através dela Saulo seguiu escrevendo sua história de vida, interagindo com o mundo de forma mais autônoma, constitui-se como um homem independente, com uma profissão, formação acadêmica e sustento próprio. Essa narrativa sobre a vida desse jovem rapaz é a prova do quanto a inserção social pode promover com dignidade e qualidade de vida a autonomia de um autista. E de que forma essas interações sociais podem acontecer? Ora, o psicótico consegue estar no laço social quando consegue encontrar uma saída, que pode ser a música, a dança, a arte e até mesmo a religião (JOVEM CEGO..., 2015). Como indiquei em outra ocasião, a riqueza e a expressividade da arte são ferramentas das quais o psicótico se apropria para permitir que seu inconsciente produza. De fato, o psicótico precisa valer-se de uma construção delirante para dar conta desta intrusão, desse Outro que Goza, que teima em invadir. A arte pode ser um viés muito saudável para esse autista escoar sua energia e poder manter então a tensão do aparelho psíquico num nível mais baixo, evitando o desprazer, como foi a caso dos pacientes psicóticos que a Nise da Silveira acompanhava no Hospital Pedro II, propondo-lhes, de forma pioneira, a arte como forma de terapia (BONFANTE, 2016).

Maurano (2003) recorda-nos que o ser humano, desde os primórdios, tenta dar conta de suas angústias existenciais recorrendo a Deus, à ciência, à filosofia, ao pensamento, à psicanálise e tudo o mais que puder para de certa forma calar, nem que seja parcialmente a angústia de viver. O poema barroco À uma ausência, do poeta português Antônio Barbosa Bacelar, que viveu nos anos de 1610-1663, expressa de forma bastante exemplar a angústia do ser, a angústia de se perceber sujeito, numa visão paradoxal e de ideias antagônicas, características do período, mas também de apelo universal:

Sinto-me sem sentir, todo abrasado
No rigoroso fogo que me alenta
O mal, que me consome me sustenta,
O bem, que me entretém, me dá cuidado;

Ando sem me mover, falo calado,
O que mais perto vejo se me ausenta,
E o que estou sem ver mais me atormenta,
Alegro-me de ver-me, atormentado;

Choro no mesmo ponto que rio,
No mor risco me anima a confiança,
Do menos que se espera estou mais certo;
Mas se de confiado desconfio;
É porque entre os receios da mudança
Ando perdido em mim como em deserto (cit. MAURANO, 2003)

A presença simultânea de elementos heterogêneos é tão presente na arte barroca quanto nas manifestações do inconsciente, e, partindo do princípio de que o sujeito é o sujeito do inconsciente, nada mais apropriado para tentar ilustrar a subjetividade desse sujeito como o poema acima, principalmente na terceira linha da segunda estrofe – E o que estou sem ver mais me atormenta – que trata do olhar de um sujeito a respeito de sua própria existência e constituição. Mais ainda: o que efetivamente o tenor Saulo Laucas, hoje figura pública, encontrou na arte, na música, foi a poesia que nela se encontra e que de alguma forma pôde dar conta de suas angústias: o seu olhar a respeito de sua própria existência que se presentifica na simultaneidade desses elementos heterogêneos, tão presentes na arte, conseguiram motivá-lo numa inserção social promovendo sua capacidade de autonomia.

6. Considerações finais

O objetivo principal dessa pesquisa foi provocar um olhar diferenciado para a questão do tratamento com crianças autistas, sob um viés psicanalítico, no que se refere principalmente à subjetividade dessa pessoa, ou seja, de sua consideração como sujeito/ativo, não só como paciente/passivo, como portador de uma dificuldade de ordem qualquer. Tratou-se de entender principalmente o que é o autismo sob o olhar psicanalítico, quem é esse sujeito, o que ele demanda, como ele demanda, e como ele se constitui dentro de sua estrutura psicodinâmica.

Para tanto, foi de grande relevância historicizar o autismo em sua relação com a psicanálise também a partir do momento em que ela é convocada a participar dos tratamentos desses transtornos na rede pública de saúde e os impasses que se desenrolaram a partir dessas iniciativas, assim como o posicionamento dos profissionais que de forma direta e indireta estiveram envolvidos e perpassados no posicionamento equivocado que os órgãos públicos mantiveram no início dos anos 2000 e qual foi a repercussão de tudo isto. Em contrapartida, percebe-se desde agora, pelo já aqui apresentado, que o movimento psicanalítico seria uma forma muito acertada de lidar com esse transtorno, haja vista que é justamente nesse furo estrutural no qual esse sujeito se encontra que a psicanálise poderia contribuir de forma muito positiva na sua terapêutica.

Desta forma, a presente pesquisa contribui, sobretudo, para convocar profissionais, instituições escolares e familiares a pensar nessa criança como um sujeito com suas subjetividades e idiossincrasias de uma forma plural, considerando que o investimento afetivo pode ser uma ferramenta eficiente para estabelecer interações sociais através de práticas inclusivas, motivando-os suficientemente a se constituírem sujeitos independentes e autônomos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Rubem. E aí? Cartas aos adolescentes e seus pais. Campinas: Papirus, 1999.

ALVES, Rubem. O velho que acordou menino. São Paulo: Planeta, 2015.

ARAÓZ, Suzana Maria Mana de. Psicanálise: contribuições da teoria psicanalítica para a psicopedagogia. Estácio de Sá, 2015.

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução de Waltensir Dutra. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BASSEDAS, Eulàlia et alli. Intervenção educativa e diagnóstico psicopedagógico. Tradução de Beatriz Affonso Neves. 3ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

BASTOS, Alice Beatriz Barretto Izique. Interações e desenvolvimento no contexto sócio-educativo da creche à luz de Henri Wallon. Dissertação de Mestrado em Psicologia. São Paulo: PUC-SP, 1995.

BASTOS, Alice Beatriz Barretto Izique. Wallon e Vigotsky: psicologia e educação. São Paulo: Loyola, 2014.

BONFANTE, Andréa Pinheiro. A sanidade da psicose e a loucura da neurose. Portal Valença RJ <online>, s.d. Disponível em <http://www.portalvalencarj.com.br/a-sanidade-da-psicose-e-a-loucura-da-neurose/> (acesso em 30 de maio de 2019).

BONFANTE, Andréa Pinheiro. Autismo à luz da psicanálise. André Pinheiro Bonfante: Psicanálise e Psicopedagogia <online>, publicado em 8 de junho de 2017. Disponível em <http://andreapinheiropsi.blogspot.com/2017/06/?m=0> (acesso em 30 de maio de 2019).

BOSSA, Nadia Aparecida. A psicopedagogia no Brasil: contribuições a partir da prática. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.

CATÃO, Inês. O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo. São Paulo: Instituto Langage, 2009.

COSTA, Teresinha. Édipo. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. Coleção Passo-a-passo, série Psicanálise, n. 89.

COSTA, Terezinha. Psicanálise com crianças. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. Coleção Passo-a-passo, série Psicanálise, n. 75.

ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. Coleção Passo-a-passo, série Psicanálise, n. 50.

FERNÁNDEZ, Alicia. A inteligência aprisionada: abordagem psicopedagógica clínica da criança e sua família. Tradução de Iara Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

FERREIRA, Nadiá Paulo. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. Coleção Passo-a-passo, série Psicanálise, n. 38.

FIGUEIREDO, Luís Cláudio & CINTRA, Elisa Maria de Ulhôa. Melanie Klein: estilo e pensamento. 2ª ed. São Paulo: PubliFolha, 2013.

FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Vol. 1: Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos (1886-1889) – com comentários de James Strachey. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Vol. 2: Estudos sobre a histeria (1893-1895); correspondência selecionada entre Sigmund Freud e Josef Breuer – com comentários de James Strachey. 2ª ed. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. In. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Vol. 18: Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922) – com comentários de James Strachey. 2ª ed. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

JOVEM CEGO e autista supera desafios, entra para faculdade e vira tenor. Fantástico <online>, publicado em 30 de agosto de 2015. Disponível em <http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/08/jovem-cego-supera-autismo-entra-para-faculdade-de-musica-e-vira-tenor.html> (acesso em 30 de maio de 2019).

KATZ, Chain Samuel. O complexo de Édipo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

KIGUEL, Sônia Moojen. Abordagem psicopedagógica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

KUPFER, Maria. Cristina. Psicanálise e autismo. ARTE!Brasileiros <online>, publicado em 4 de feveiro de 2013. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=j6N91j38MAA> (acesso em 30 de maio de 2019).

LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LACAN, Jacques. O sujeito e o Outro: a alienação. In. Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

LAURENT, Éric. A batalha do autismo: da clínica à política. Tradução Claudia Berliner. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

LAZNIK, Marie-Christine. A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito. Salvador: Amálgama, 2013.

LEFORT, Rosine & LEFORT, Robert. Nascimento do outro: duas psicanálises. Tradução de Angela Jesuíno. Salvador: Fator Livraria, 1984. Coleção Biblioteca Freudiana Brasileira, n. 3.

MASINI, Elcie Salzano. A ação psicopedagogica: algumas questões anteriores à profissionalização. In. MASINI, Elcie Salsano et alli. A ação psicopedagogica. São Paulo: Memnon e Mackenzie, 2000.

MAURANO, Denise. Para que serve a psicanálise? Rio de Janeiro: Zahar, 2003. Coleção Passo-a-passo, série Psicanálise, n. 21.

MEYER, Gabriela Rinaldi. A clínica da psicose: transferência e desejo do analista. São Paulo: Zagodoni, 2017.

MEZAN, Renato. Psicanálise e cultura. In. Interfaces da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise: conceitos, noções, biografias, obras, eventos, instituições. Rio de Janeiro: Imago, 2005.

NEVES, Maria Aparecida Campos Manede. Psicopedagogia: um só termo e muitas significações. Boletim da Associação Brasileira de Psicopedagogia. São Paulo, Associação Brasileira de Psicopedagogia, vol.10, n. 21, 1991.

O COMEÇO da Vida. Direção de Estela Renner. Roteiro de Ana Lúcia Villela e Estella Renner. Produção de Marcos Nisti, Luana Lobo e Estela Renner. São Paulo: Maria Farinha Filmes, 2016. 1 DVD (2h), son., color.

OLIVEIRA, Vera Barros de & BOSSA, Nádia Aparecida. Avaliação psicopedagógica da criança de zero a seis anos. Petrópolis: Vozes, 2015.

PAÍN, Sara. A função da ignorância. Tradução de Maria Elísia Valliati Flores. Porto Alegre: Artes Médicas,1999.

QUINET, Antônio. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. Coleção Passo-a-passo, série Psicanálise, n. 94.

RENNER, Estela. O Começo da Vida | Estela Renner | TEDxSaoPaulo. TEDx Talks <online>, publicado em 16 de agosto de 2016. Disponível online em <https://www.youtube.com/watch?v=tpAAu52hxy0> (acesso em 30 de maio de 2019).

RIBEIRO, Jeanne Marrie de Leers Costa. A criança autista em trabalho. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.

RUBINSTEIN, Edith. A intervenção psicopedagógica clínica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

SCOZ, Beatriz. A especificidade do diagnóstico psicopedagógico. In. SISTO, Fermino Fernandes (org.). Atuação psicopedagógica e aprendizagem escolar. Petrópolis: Vozes, 1996.

SCOZ, Beatriz. A identidade do psicopedagogo: formação e atuação profissional. In. SCOZ, Beatriz et alli (orgs.). Psicopedagogia: contextualização, formação e atuação profissional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

SILVEIRA, Nise de. Imagens do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2015.

SOUZA, Ana Inês et alli (orgs.). Paulo Freire: vida e obra. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

SPILLIUS, Elizabeth Bott. Uma visão da evolução clínica kleiniana: da antropologia à psicanálise. Tradução de Tania Mara Zalcberg. Rio de Janeiro: Imago, 2006. Coleção Desenvolvimento da psicanálise, s.n.

VIGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. Tradução de José Cipolla Neto et alli. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

VOLTOLINI, Rinaldo. Educação e psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Coleção Passo-a-passo, série Psicanálise, n. 93.

WEISS, Maria Lúcia Lemme. Psicopedagogia clínica: uma visão diagnóstica dos problemas de aprendizagem escolar. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012.

WEISS, Maria Lúcia Lemme. Psicopedagogia clínica: uma visão diagnóstica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.


1 Graduada em Letras (Português-Inglês) pela FCL de Nova Iguaçu, Pós-graduada em Psicopedagogia pela Universidade Estácio de Sá, Pós-graduada em Teoria Psicanalítica pela Universidade Veiga de Almeida, Mestre e Doutoranda em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida. ([email protected])