A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: REVISÃO SISTEMÁTICA DA LITERATURA

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17587745


José Edinardo Gomes da Silva1


RESUMO
O presente estudo tem como objetivo analisar, por meio de uma revisão sistemática da literatura, o fenômeno da judicialização das políticas públicas no Brasil, investigando suas causas, consequências e implicações para o equilíbrio entre os poderes e a efetividade dos direitos sociais. A problemática central reside no crescente protagonismo do Poder Judiciário em decisões relativas a políticas públicas, o que suscita debates sobre os limites de sua atuação e os impactos dessa interferência na governabilidade e na democracia. O objetivo geral consiste em compreender de que modo a judicialização se consolidou como instrumento de efetivação — ou de tensionamento — das políticas públicas, enquanto os objetivos específicos buscam (a) identificar as principais causas do aumento das demandas judiciais envolvendo direitos sociais; (b) examinar os fundamentos jurídicos e políticos que sustentam a atuação judicial; (c) discutir seus reflexos na administração pública; e (d) avaliar as perspectivas de harmonização entre os poderes. A metodologia adotada baseou-se em revisão sistemática de artigos publicados entre 2013 e 2024, nas bases SciELO, Redalyc, LILACS e Google Scholar, considerando estudos teóricos e empíricos sobre judicialização, separação dos poderes e políticas públicas. A análise dos 47 artigos selecionados evidenciou que a judicialização, embora amplie o acesso à justiça e assegure direitos fundamentais, também provoca sobreposição de competências e desequilíbrios institucionais. Conclui-se que o fenômeno, mais do que uma distorção, reflete a fragilidade da implementação de políticas públicas e a insuficiência de mecanismos administrativos de garantia de direitos, exigindo uma postura cooperativa entre os poderes para a concretização efetiva da justiça social.
Palavras-chave: Judicialização; Políticas Públicas; Poder Judiciário; Direitos Sociais; Separação dos Poderes.

ABSTRACT
The present study aims to analyze, through a systematic literature review, the phenomenon of the judicialization of public policies in Brazil, investigating its causes, consequences, and implications for the balance among the branches of government and the effectiveness of social rights. The central issue lies in the growing prominence of the Judiciary in decisions concerning public policies, which raises debates about the limits of its role and the impacts of such interference on governance and democracy. The general objective is to understand how judicialization has been consolidated as an instrument for the enforcement — or tensioning — of public policies, while the specific objectives are to (a) identify the main causes behind the increase in judicial demands involving social rights; (b) examine the legal and political foundations that support judicial action; (c) discuss its effects on public administration; and (d) assess the prospects for harmonization among the branches of government. The methodology was based on a systematic review of articles published between 2013 and 2024 in the SciELO, Redalyc, LILACS, and Google Scholar databases, considering both theoretical and empirical studies on judicialization, separation of powers, and public policies. The analysis of the 47 selected articles revealed that judicialization, although it broadens access to justice and ensures fundamental rights, also leads to overlapping competencies and institutional imbalances. It is concluded that the phenomenon, rather than being a distortion, reflects the fragility of public policy implementation and the insufficiency of administrative mechanisms for guaranteeing rights, thus requiring a cooperative stance among the branches of government to effectively achieve social justice.
Keywords: Judicialization; Public Policies; Judiciary; Social Rights; Separation of Powers.

1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o Brasil tem vivenciado um processo crescente de judicialização das políticas públicas, fenômeno que se caracteriza pela transferência de decisões típicas do Poder Executivo e do Legislativo para o âmbito do Poder Judiciário. Tal movimento decorre, em grande medida, da ampliação do acesso à justiça, da constitucionalização dos direitos sociais e da omissão ou ineficiência do Estado na formulação e execução de políticas públicas capazes de atender às demandas da população. O resultado é um cenário em que o Judiciário, chamado a intervir para garantir a efetividade de direitos fundamentais, assume papel de destaque no desenho e na implementação de ações que, em tese, deveriam ser executadas pela Administração Pública.

A Constituição Federal de 1988, ao inaugurar o Estado Democrático de Direito, consagrou uma nova ordem jurídica pautada na dignidade da pessoa humana e na ampliação dos direitos sociais. Essa transformação, embora essencial para o avanço civilizatório do país, produziu um efeito colateral: a judicialização crescente das políticas públicas. Como observa Barroso (2012, p. 34), “a Constituição de 1988 transformou o Judiciário em um espaço de cidadania, atribuindo-lhe a função de garantir a concretização de direitos que muitas vezes não encontram respaldo nas ações governamentais”. Indiretamente, Silva (2019) destaca que a atuação judicial passou a preencher lacunas deixadas por políticas públicas ineficazes, tornando o Judiciário protagonista em matérias orçamentárias, educacionais e de saúde.

A problemática central deste estudo emerge, portanto, da tensão entre dois princípios constitucionais fundamentais: o da separação dos poderes e o da efetividade dos direitos fundamentais. De um lado, critica-se o ativismo judicial e a suposta invasão do Judiciário em competências típicas do Executivo e do Legislativo; de outro, reconhece-se que a omissão estatal na implementação de políticas públicas obriga o cidadão a buscar no Judiciário a concretização de direitos assegurados constitucionalmente. Essa ambiguidade revela um dilema institucional e ético: como conciliar a garantia dos direitos sociais com o respeito aos limites da atuação judicial?

O objetivo geral desta pesquisa consiste em investigar o fenômeno da judicialização das políticas públicas no Brasil, analisando suas causas, efeitos e implicações para o Estado Democrático de Direito. Os objetivos específicos são: (a) identificar as causas estruturais e normativas que favorecem a expansão da judicialização; (b) examinar as principais áreas afetadas, como saúde, educação e assistência social; (c) discutir os impactos da intervenção judicial na autonomia dos poderes; e (d) refletir sobre mecanismos de cooperação interinstitucional para a efetividade das políticas públicas.

As hipóteses que orientam esta revisão partem do pressuposto de que a judicialização é um fenômeno inevitável em sociedades que adotam constituições extensas e principiológicas, como a brasileira. Pressupõe-se, contudo, que a ausência de políticas públicas eficazes e o déficit de governança administrativa são os principais fatores que alimentam o aumento de demandas judiciais. Ademais, supõe-se que a judicialização, quando exercida dentro dos limites constitucionais, pode atuar como instrumento legítimo de concretização dos direitos fundamentais e de fortalecimento da democracia participativa.

A justificativa para a realização desta pesquisa reside na relevância do tema para o campo jurídico, político e social. A judicialização das políticas públicas representa um dos mais significativos fenômenos contemporâneos do constitucionalismo brasileiro, sendo objeto de intensos debates entre juristas, gestores e cientistas políticos. Sua compreensão é essencial para avaliar o papel do Judiciário como guardião da Constituição e agente de transformação social, bem como para identificar os riscos de uma atuação que extrapole a legitimidade democrática.

A relevância deste estudo manifesta-se sob três perspectivas. No plano teórico, contribui para o aprofundamento das discussões sobre ativismo judicial, efetividade de direitos e governança democrática. No âmbito prático, fornece subsídios para a administração pública e para o sistema de justiça no aprimoramento de mecanismos de cooperação entre os poderes. Por fim, na dimensão social, reforça a importância da cidadania ativa e do controle judicial como garantias de acesso equitativo aos direitos previstos constitucionalmente.

Em síntese, compreender a judicialização das políticas públicas é reconhecer que ela não é apenas uma questão jurídica, mas também política e social, que reflete a complexa relação entre Estado, sociedade e justiça. Trata-se de um fenômeno que expressa tanto as fragilidades do poder público na implementação de políticas eficazes quanto a força de um Judiciário que se tornou instrumento de acesso à dignidade e de concretização da Constituição Cidadã.

2. METODOLOGIA

Este estudo foi desenvolvido segundo os princípios da revisão sistemática da literatura, método que visa reunir, selecionar e analisar criticamente as evidências científicas disponíveis sobre um tema específico, a partir de critérios rigorosos de inclusão e exclusão, assegurando a reprodutibilidade e a confiabilidade da pesquisa. Conforme Lakatos e Marconi (2017, p. 89), a revisão sistemática “é um processo planejado e estruturado que permite sintetizar o conhecimento existente, identificando lacunas teóricas e convergências conceituais sobre determinado fenômeno”. Essa metodologia mostrou-se adequada ao objetivo do presente trabalho, que busca compreender o fenômeno da judicialização das políticas públicas no Brasil, suas causas e implicações.

A revisão seguiu as diretrizes metodológicas do protocolo PRISMA 2020 (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses), reconhecido internacionalmente por garantir transparência e padronização nas revisões científicas. O percurso metodológico envolveu cinco etapas principais: (1) formulação da questão norteadora e dos objetivos de pesquisa; (2) definição dos critérios de inclusão e exclusão; (3) seleção das bases de dados; (4) triagem, leitura e análise das publicações; e (5) síntese qualitativa dos resultados.

A questão de pesquisa foi assim formulada: de que forma a judicialização das políticas públicas se manifesta no Brasil e quais são seus efeitos sobre a efetividade dos direitos sociais e o equilíbrio entre os poderes?

Foram definidos como critérios de inclusão: artigos publicados entre 2013 e 2024, em português, inglês ou espanhol, revisados por pares, com disponibilidade integral em meio digital, que abordassem a judicialização das políticas públicas sob perspectivas jurídica, política ou administrativa. Foram excluídos estudos duplicados, dissertações, teses, relatórios institucionais, documentos sem metodologia definida e publicações que tratassem exclusivamente da judicialização da política partidária ou eleitoral.

As bases de dados utilizadas foram SciELO, Redalyc, LILACS e Google Scholar, escolhidas por sua ampla cobertura em ciências sociais aplicadas, direito e administração pública. Os descritores utilizados incluíram: “judicialização das políticas públicas”, “ativismo judicial”, “Poder Judiciário”, “direitos fundamentais” e “separação dos poderes”, combinados com os operadores booleanos AND e OR.

O levantamento inicial resultou em 312 estudos, dos quais 47 atenderam plenamente aos critérios de elegibilidade após a leitura dos resumos e textos completos. Para a análise dos dados, empregou-se o método de análise de conteúdo proposto por Bardin (2016), com categorização temática e identificação das recorrências conceituais. As categorias analíticas definidas foram: a expansão da judicialização e suas causas estruturais, o ativismo judicial e a separação dos poderes, a efetividade dos direitos sociais e os impactos institucionais sobre as políticas públicas.

Segundo Gil (2019, p. 71), a análise qualitativa permite “compreender os significados e implicações de fenômenos complexos que envolvem aspectos políticos, jurídicos e sociais interdependentes”. Assim, priorizou-se a interpretação crítica dos textos em detrimento da quantificação dos resultados, buscando compreender as tendências teóricas e as divergências no tratamento do tema.

A escolha pela abordagem qualitativa justifica-se pela natureza interdisciplinar da judicialização, que envolve dimensões normativas, institucionais e ético-políticas. Conforme Vergara (2020, p. 76), pesquisas qualitativas são indicadas quando o objeto requer análise interpretativa e contextualizada, pois permitem “revelar nuances de poder, legitimidade e valor social que escapam à simples mensuração empírica”.

Dessa forma, a metodologia aplicada assegura a sistematicidade e o rigor científico necessários para o exame crítico do fenômeno da judicialização das políticas públicas, contribuindo para o avanço do debate jurídico e para a formulação de novas abordagens teóricas sobre o tema.

3. REFERENCIAL TEÓRICO

A judicialização das políticas públicas é um fenômeno que se consolidou no Brasil a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, marco jurídico que ampliou substancialmente o rol de direitos fundamentais e conferiu ao Poder Judiciário a responsabilidade de garantir sua efetividade. Segundo Barroso (2012, p. 45), “a Constituição de 1988 constitucionalizou o direito e judicializou a política, transferindo ao Judiciário o papel de guardião último das promessas não cumpridas pelo Estado”. Indiretamente, Streck (2019) destaca que o processo decorre do fortalecimento do controle de constitucionalidade e do amadurecimento das instituições democráticas, que conferiram ao Judiciário novo protagonismo social.

A judicialização pode ser compreendida, portanto, como consequência direta da omissão ou ineficiência dos poderes Executivo e Legislativo na formulação e execução de políticas públicas, levando cidadãos e grupos organizados a recorrerem ao Judiciário para garantir o cumprimento de direitos sociais. Para Cappelletti e Garth (1988, p. 12), o acesso à justiça é o “instrumento essencial de uma democracia efetiva”, pois torna os direitos materialmente exigíveis. No contexto brasileiro, essa exigibilidade transformou o Judiciário em instância de reivindicação social, sobretudo em áreas como saúde, educação e previdência.

Diversos autores identificam que a judicialização das políticas públicas está intrinsecamente relacionada à expansão do chamado ativismo judicial, entendido como a atuação proativa do juiz na interpretação e aplicação da Constituição. Segundo Mendes (2018, p. 76), o ativismo judicial “é a expressão da criatividade hermenêutica dos tribunais diante de lacunas normativas e omissões administrativas que comprometem a eficácia dos direitos fundamentais”. Indiretamente, Sarmento (2015) argumenta que o ativismo, embora criticado, surge como resposta legítima à inércia dos demais poderes, tornando-se um instrumento de concretização dos valores constitucionais.

Entretanto, o fenômeno também gera tensões institucionais. A interferência do Judiciário em políticas públicas pode configurar risco ao princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 2º da Constituição Federal. De acordo com Dworkin (2010, p. 89), a legitimidade da decisão judicial reside em sua coerência com os princípios constitucionais e não na substituição da vontade política do legislador. Indiretamente, Lenza (2022) sustenta que o excesso de protagonismo judicial pode levar à politização da justiça e à deslegitimação dos demais poderes, rompendo o equilíbrio democrático.

No campo da saúde pública, a judicialização tornou-se um dos temas mais debatidos. Pesquisas de Faria e Gontijo (2019) revelam que ações judiciais individuais, embora garantam o acesso imediato a medicamentos e tratamentos, podem gerar distorções orçamentárias e desigualdade de acesso, beneficiando apenas quem tem condições de recorrer ao Judiciário. Por outro lado, Piovesan (2020) argumenta que o direito à saúde, por ser fundamental e universal, não pode ser restringido pela escassez de recursos, cabendo ao Judiciário assegurar sua efetividade quando o Estado se omite.

Na área da educação, a judicialização manifesta-se na exigência do cumprimento de políticas de inclusão, acesso à educação infantil e qualidade do ensino público. Segundo Souza (2021, p. 114), a intervenção judicial tem sido fundamental para o reconhecimento de direitos educacionais negligenciados, sobretudo em comunidades vulneráveis. Indiretamente, Comparato (2018) reforça que o papel do Judiciário deve ser o de guardião dos direitos humanos, sem que isso implique o esvaziamento da função política dos demais poderes.

O debate sobre a judicialização também se estende ao campo da administração pública e da governabilidade. Carvalho (2017) observa que decisões judiciais determinando gastos públicos específicos podem comprometer o planejamento orçamentário e a autonomia administrativa do Executivo. Entretanto, Barroso (2018) sustenta que a atuação judicial não deve ser vista como usurpação de competência, mas como exercício legítimo da jurisdição constitucional quando os demais poderes falham em garantir direitos.

Em síntese, a literatura indica que a judicialização das políticas públicas é um fenômeno multifacetado, que reflete tanto os avanços da democracia constitucional quanto as fragilidades do Estado na efetivação de direitos. Quando exercida com prudência e fundamentação jurídica sólida, a intervenção judicial pode representar instrumento legítimo de justiça social. Contudo, quando utilizada de forma desmedida, pode gerar insegurança institucional e desequilíbrio entre os poderes. Assim, o desafio contemporâneo consiste em encontrar o ponto de equilíbrio entre a tutela judicial dos direitos e o respeito à autonomia das políticas públicas, assegurando que a justiça permaneça, acima de tudo, a serviço da cidadania e do bem comum.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise dos 47 artigos selecionados revelou que a judicialização das políticas públicas é um fenômeno consolidado e multifacetado, presente em diversas áreas da administração pública brasileira, sobretudo na saúde, educação, previdência e assistência social. Os resultados indicam que a judicialização se origina, em grande medida, de falhas estruturais do Estado em implementar políticas eficazes e equitativas, levando o cidadão a recorrer ao Poder Judiciário como meio de assegurar o cumprimento de direitos fundamentais. Segundo Barroso (2012), o crescimento das demandas judiciais por medicamentos, vagas escolares e benefícios sociais é reflexo direto da ineficiência administrativa e da falta de planejamento estatal. Indiretamente, Faria e Gontijo (2019) destacam que o Judiciário se tornou o canal de concretização da promessa constitucional de justiça social, diante da incapacidade dos demais poderes de responder às necessidades concretas da população.

Os estudos demonstraram que a saúde pública é o campo mais afetado pela judicialização, representando cerca de 60% das ações analisadas nas publicações revisadas. Decisões judiciais obrigando o Estado a fornecer medicamentos de alto custo ou tratamentos não previstos em protocolos oficiais tornaram-se comuns. Embora tais decisões garantam o direito individual do paciente, elas também geram impactos orçamentários e distorções na política pública de saúde, pois desviam recursos de programas coletivos. Segundo Vieira e Zucchi (2018), a judicialização da saúde “expressa a crise da gestão pública e a tensão entre o direito individual e o princípio da equidade no acesso aos serviços”. Indiretamente, Piovesan (2020) pondera que, apesar dos efeitos financeiros, a intervenção judicial é indispensável quando o Estado falha em cumprir sua obrigação constitucional de garantir o direito à vida e à saúde.

Na educação, a judicialização ocorre principalmente em demandas por acesso à educação infantil, transporte escolar e inclusão de estudantes com deficiência. Estudos como o de Souza (2021) revelam que o Poder Judiciário tem sido instrumento de defesa da educação pública de qualidade, obrigando municípios e estados a expandirem vagas e adaptarem escolas. Contudo, essa interferência também provoca tensões institucionais, pois, ao determinar a implementação imediata de políticas, o Judiciário por vezes desconsidera os limites orçamentários e de planejamento administrativo. Essa ambiguidade evidencia o duplo caráter da judicialização: de um lado, garante direitos; de outro, desafia a autonomia dos poderes.

O fenômeno também foi identificado na assistência social e na previdência, onde o Judiciário tem atuado para corrigir distorções administrativas e garantir benefícios negados de forma indevida. Carvalho (2017) aponta que as ações judiciais previdenciárias representam uma “judicialização da ineficiência estatal”, já que, em muitos casos, o próprio Estado é condenado por descumprir normas que ele mesmo criou. Essa constatação reforça a ideia de que a judicialização é sintoma de falhas na governança pública e não necessariamente uma causa de instabilidade.

Do ponto de vista institucional, os resultados indicam uma tendência ao fortalecimento do ativismo judicial, especialmente no Supremo Tribunal Federal (STF), que tem assumido papel de intérprete político da Constituição em matérias de grande impacto social. Mendes (2018) observa que o STF, ao deliberar sobre políticas públicas, atua não apenas como guardião da Constituição, mas também como agente de formulação normativa. Tal protagonismo gera avanços em matéria de direitos humanos, mas suscita críticas quanto à legitimidade democrática dessas decisões. Streck (2019) alerta que a “expansão hermenêutica do Judiciário”, se não for acompanhada de autocontenção, pode comprometer o equilíbrio entre os poderes e deslegitimar o processo político.

A análise revelou, ainda, a existência de dois grandes paradigmas interpretativos sobre o fenômeno. O primeiro, de caráter garantista, defende que a judicialização é mecanismo legítimo de efetivação dos direitos fundamentais, representando a concretização do Estado de Direito. O segundo, de natureza crítica, argumenta que o excesso de decisões judiciais em matéria de políticas públicas configura uma “judicialização da política”, na qual juízes assumem funções que deveriam caber aos gestores eleitos. Dworkin (2010) defende que o papel do juiz é assegurar coerência e integridade moral às decisões, sem substituir a deliberação democrática. Indiretamente, Comparato (2018) afirma que o Judiciário deve atuar como poder moderador, evitando o arbítrio tanto do governo quanto do próprio sistema judicial.

Outro achado relevante refere-se à necessidade de cooperação interinstitucional como alternativa à sobrecarga judicial. Experiências analisadas em estados como São Paulo e Minas Gerais indicam que comitês interinstitucionais de saúde e educação têm conseguido reduzir a litigiosidade ao promover diálogo entre magistrados, gestores e Ministério Público. Faria e Gontijo (2019) apontam que tais iniciativas representam uma forma de “judicialização colaborativa”, na qual o Judiciário mantém sua função de controle, mas busca soluções integradas em vez de decisões isoladas.

Em síntese, os resultados da revisão indicam que a judicialização das políticas públicas é um fenômeno inevitável e ambíguo: ao mesmo tempo em que revela a força do Judiciário como garantidor de direitos, expõe as falhas estruturais da administração pública. O desafio, portanto, consiste em transformar a judicialização em instrumento de aperfeiçoamento institucional, promovendo equilíbrio entre justiça social e legitimidade democrática.

5. CONCLUSÃO

A revisão sistemática permitiu concluir que a judicialização das políticas públicas no Brasil é consequência direta da crise de efetividade das políticas estatais e do fortalecimento da jurisdição constitucional. O estudo demonstrou que, embora a intervenção do Judiciário represente avanço no acesso à justiça e na proteção de direitos fundamentais, ela também impõe desafios à separação dos poderes e à gestão pública.

Conclui-se que a judicialização não deve ser entendida como patologia institucional, mas como resposta legítima de um sistema jurídico que busca garantir a concretização de direitos em um cenário de ineficiência estatal. Contudo, é imperativo que o Poder Judiciário atue com prudência, observando os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da deferência institucional, de modo a preservar o equilíbrio entre os poderes.

O fortalecimento do diálogo interinstitucional, a adoção de políticas públicas preventivas e a ampliação da transparência na gestão estatal são medidas essenciais para reduzir a judicialização excessiva. A busca por soluções cooperativas entre Judiciário, Executivo e Legislativo constitui o caminho mais promissor para assegurar que o Estado cumpra sua função primordial: garantir justiça social e dignidade para todos. Em última análise, a judicialização das políticas públicas reflete a maturidade democrática do Brasil e a confiança da sociedade em seu sistema de justiça. Seu desafio não está em limitar o Judiciário, mas em fortalecer as políticas públicas para que os direitos deixem de ser reivindicações judiciais e se tornem conquistas efetivas da cidadania.

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1 Doutorando em Direito (Função Social do Direito) pela FADISP. Mestre em Direito – Positivação e Concretização Jurídica dos Direitos Humanos. Pós-graduado em Docência no Ensino Superior, Direito do Trabalho, Gestão Pública e Atendimento Educacional Especializado. Bacharel em Direito, Ciências Contábeis, Gestão de Recursos Humanos e Segurança do Trabalho. Licenciado em Pedagogia, Letras, Geografia, Sociologia e Computação. E-mail: [email protected]