A INFÂNCIA NA ERA DIGITAL E OS DESAFIOS À CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO: DA TÁBULA RASA À TÁBULA SATURADA

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.16899125


Nilton Pereira da Cunha1


RESUMO
A concepção de Locke, que considera a mente da criança como uma tábula rasa ou uma página em branco, suscetível às experiências e aprendizagens concretas. Seguindo nessa ótica, toma-se Neil Postman e sua abordagem sobre o desaparecimento da infância, que descreve a diluição das etapas tradicionais do crescimento devido à exposição precoce a telas e conteúdos digitais. A análise da pedagogia construtivista ressalta a importância das experiências concretas, do jogo simbólico e da interação social direta na construção do conhecimento, apoiando-se em Piaget, Vygotsky, Wallon e Bettelheim. O artigo evidencia que o novo cenário digital, com interações artificiais e estímulos compensatórios dopaminérgicos, pois promove um aprendizado fragmentado e superficial, decorrente da tábula saturada. Destaca-se ainda a consequência do uso precoce e massivo de telas, que interfere no desenvolvimento cognitivo, social e emocional, prejudicando funções essenciais do cérebro em crescimento. Por fim, abordam-se os desafios para professores, que precisam recontextualizar suas práticas pedagógicas, e da participação dos pais para equilibrar, na verdade, até mesmo eliminar o uso da tecnologia para que as crianças possam viver em experiências reais, garantindo uma aprendizagem significativa e um desenvolvimento infantil saudável na era digital.
Palavras-chave: Tábula Rasa. Tábula Saturada. Era Digital. Pedagogia Construtivista.

ABSTRACT
Locke's conception, which considers the child's mind as a blank slate, susceptible to concrete experiences and learning, follows this perspective. Following this perspective, Neil Postman's approach to the disappearance of childhood describes the blurring of traditional stages of growth due to early exposure to digital media and content. The analysis of constructivist pedagogy emphasizes the importance of concrete experiences, symbolic play, and direct social interaction in the construction of knowledge, drawing on Piaget, Vygotsky, Wallon, and Bettelheim. The article highlights that the new digital landscape, with its artificial interactions and dopaminergic compensatory stimuli, promotes fragmented and superficial learning, resulting from a saturated slate. It also highlights the consequences of early and massive screen use, which interfere with cognitive, social, and emotional development, impairing essential functions of the growing brain. Finally, the challenges for teachers, who need to recontextualize their pedagogical practices, and the involvement of parents to balance, and even eliminate, the use of technology so that children can live real-life experiences, ensuring meaningful learning and healthy child development in the digital age, are addressed.
Keywords: Blank Slate. Saturated Slate. Digital Age. Constructivist Pedagogy.

1 Introdução

Quando John Locke formulou, no século XVI, sua metáfora da tábula rasa, imaginava a mente da criança como uma folha em branco, a ser preenchida pelas experiências ao longo do desenvolvimento. A infância, nesse sentido, representava um tempo de construção gradual do conhecimento, mediado pelo contato direto com o mundo e pela interação com outras pessoas.

Essa visão não apenas influenciou a filosofia e a psicologia, mas também permeou concepções pedagógicas posteriores, entre elas a abordagem construtivista, que pressupõe que a aprendizagem se dá a partir de vivências concretas, socialmente compartilhadas e repletas de variações individuais.

Séculos mais tarde, Neil Postman, em: O Desaparecimento da Infância (1982), trouxe uma advertência que, à época, soava provocadora: as tecnologias de comunicação, então simbolizadas pela TV, estariam dissolvendo as fronteiras entre o universo infantil e o mundo adulto, encurtando o tempo e o espaço da infância.

Para Postman, esse processo significava a perda de um território simbólico próprio, antes protegido e marcado por ritos de passagem, segredos e aprendizagens graduais.

Hoje, a realidade parece confirmar – e até acelerar – essa previsão. O que antes era um fenômeno mediado por uma tela de TV, com alcance e horários definidos, agora se apresenta como um fluxo contínuo de estímulos digitais, acessíveis desde o berço. Crianças chegam à escola não mais como tábulas rasas, mas como “tábulas saturadas” por interações artificiais: apresentam atenção fragmentada, impaciência diante do tédio, dificuldades no jogo simbólico e menor tolerância à frustração.

Nesse cenário, a pedagogia construtivista encontra um novo e complexo desafio: como construir conhecimento sólido e significativo quando a base de experiências concretas – essencial para essa construção – vem sendo substituída precocemente por vivências mediadas por telas?

2 A concepção de tábula rasa em Locke

O conceito formulado por John Locke de tábula rasa, no texto: Ensaio Acerca do Entendimento Humano (1690), parte da premissa de que a mente humana, ao nascer, é desprovida de ideias inatas.

Para Locke, todo conhecimento deriva da experiência, seja por meio das sensações advindas do mundo externo, seja pela reflexão interna sobre tais impressões. Ele afirma: “Suponhamos, pois, que a mente seja, como dizemos, papel em branco, sem quaisquer caracteres. Como se encherá? A isto respondo, em uma palavra, pela experiência2”.

Essa formulação não apenas revolucionou a filosofia empirista, como também influenciou profundamente teorias do desenvolvimento e práticas educacionais.

A ideia de que a criança nasce “em branco” e constrói gradualmente seu repertório cognitivo e moral por meio de contato com o real estabeleceu, durante séculos, uma visão de infância como tempo de preparação e de acumulação de experiências.

Tal visão serviu de base para abordagens que valorizam a interação direta com o mundo, como a pedagogia construtivista, para a qual a aprendizagem é indissociável da ação concreta e das trocas sociais.

Entretanto, no contexto contemporâneo, marcado pela onipresença de dispositivos digitais e pelo contato precoce com telas, a metáfora da tábula rasa adquire novas implicações.

Se, para Locke, a experiência era fruto de interações orgânicas, graduais e situadas, hoje uma parcela significativa das primeiras impressões da criança sobre o mundo é mediada por interações artificiais e de alta intensidade sensorial. Tais estímulos não apenas moldam precocemente a atenção e as experiências, como também reconfiguram o próprio modo como a criança percebe e organiza o conhecimento.

Essa mudança não passou despercebida por autores que refletem sobre a infância no cenário midiático. Neil Postman, ao analisar os impactos da TV, advertiu que “a televisão não exige que o espectador saiba ler, não o força a confrontar ideias complexas, não encoraja o pensamento linear. Em vez disso, recompensa o espectador pela atenção rápida, pelo consumo fragmentado de informações3”.

Se essa constatação já se aplicava à TV, seu potencial multiplicou-se exponencialmente com as telas móveis e a internet, cujos conteúdos são personalizados, incessantes e acessíveis desde os primeiros meses de vida.

Nesse novo cenário, o ponto central da teoria lockeana – a ideia de que a qualidade e a natureza das experiências iniciais moldam o conhecimento – tornam-se um alerta. Ao invés de serem formadas por interações com pessoas, objetos e ambientes reais, muitas crianças acumulam suas “primeiras marcas” cognitivas e emocionais a partir de narrativas instantâneas, imagens aceleradas e recompensas imediatas.

Essa “escrita precoce” na tábula da mente infantil levanta questões cruciais: que tipo de conhecimento se constrói quando a experiência é majoritariamente virtual? E como reverter ou compensar os efeitos de uma aprendizagem que começa sob a lógica da interação artificial?

Assim, revisitar Locke não é apenas um exercício teórico, mas uma necessidade prática. Sua concepção nos obriga a reconhecer que, se toda experiência deixa uma marca, as marcas de hoje são diferentes – mais rápidas, mais propícias à formação de pensamento profundo e empatia.

Nesse sentido, a pedagogia contemporânea precisa repensar estratégias para que a tábula não se torne apenas um reflexo de estímulos digitais, mas um espaço onde experiências concretas, simbólicas e humana voltem a ter centralidade.

3 O “desaparecimento da infância” segundo Neil Postman

Quando Neil Postman publicou: O Desaparecimento da Infância, em 1982, sua análise partia de um contexto em que a televisão já havia se tornado a principal mediadora da informação e do entretenimento. O autor sustentava que, ao dissolver a barreira entre os conteúdos destinados a adultos e aqueles reservados às crianças, a televisão estaria provocando uma erosão simbólica da própria noção de infância.

Para Postman: “A infância é uma invenção social, sustentada pro um sistema de comunicações que a protege e delimita4”. No momento em que esse sistema se rompe, seja pela exposição prematura a conteúdos adultos, seja pela ausência de filtros claros, a infância perde suas fronteiras e se aproxima perigosamente da vida adulta.

A força dessa reflexão reside no fato de que, para Postman, a infância não desaparece por um ato isolado, mas por um processo gradual e cumulativo, no qual os meios de comunicação ocupam um espaço cada vez maior na formação simbólica e moral das crianças. Ele argumenta que a TV, ao contrário do texto escrito, não exige do espectador competências cognitivas mais complexas, como à leitura atenta, a interpretação e a abstração.

Como ele observa: “A televisão é uma conversação em imagens, não em palavras; não é preciso saber ler para assistir televisão, nem seguir raciocínios encadeados5”.

Se, no início dos anos de 1980, a televisão já representava uma ameaça à preservação da infância, o cenário contemporâneo é incomparavelmente mais intenso. A ascensão de dispositivos móveis, redes sociais e plataformas de vídeo sob demanda criou um ecossistema de estímulos que acompanha a criança desde os primeiros meses de vida.

Ao contrário da TV, que possuía um horário de início e fim para sua programação, o ambiente digital é contínuo, personalizado e disponível a qualquer momento. Assim, o que Postman identificou como um risco tornou-se uma condição permanente: não apenas as fronteiras da infância se diluem, como o próprio tempo da infância se encurta.

Essa mutação no ritmo e na qualidade das experiências iniciais não é neutra. Em termos lockeanos, se a mente da criança é moldada pela experiência, e se a experiência se tornou predominantemente virtual, mediada por interações artificiais de alta intensidade e baixo esforço cognitivo, então a construção do conhecimento também se transforma.

Como observa Livingstone: “O mundo digital não apenas adicionou novas experiências à infância, mas também substitui experiências antigas, modificando padrões de socialização, lazer e aprendizagem6”.

O desaparecimento da infância, nesse sentido, não é apenas a perda de um estágio de vida protegido, mas a substituição de um conjunto de práticas formadoras – o jogo simbólico, a curiosidade espontânea, o tédio criativo, a experimentação direta – por práticas mediadas por telas, frequentemente orientadas por algoritmos que reforçam preferências imediatas e reduzem a exposição a experiências desafiadoras.

Essa substituição compromete o desenvolvimento de habilidades essenciais ao construtivismo, como a capacidade de colaborar, negociar regras, lidar com frustrações e transformar a imaginação em ação concreta.

A reflexão de Postman, embora formulada em outro contexto tecnológico, torna-se ainda mais urgente na era digital. Se a infância e, como ele defende, uma construção cultural sustentada por um ecossistema comunicativo, então preservar a infância hoje exige criar “ilhas de real” – espaços e tempos livres de mediação tecnológica, nos quais as crianças possam viver experiências não filtradas por telas.

Mais do que nunca, esse é um desafio compartilhado por famílias, escolas e políticas públicas, pois a infância, como advertiu Postman: “não desaparece por acidente; ela se desfaz quando deixamos de protegê-la7”.

4 A pedagogia construtivista e as experiências concretas

A pedagogia construtivista nasce de uma compreensão profunda de que o conhecimento não é simplesmente transmitido, mas construído pela criança através da interação com o mundo, com os seus pares e com os adultos que mediam e organizam essas experiências.

Piaget, Vygotsky, Wallon e Bettelheim, embora cada um desses autores apresente nuances próprias, eles convergem na defesa de que aprendizagem é inseparável das vivências concretas, do corpo em movimento, da experimentação e do diálogo o real e o imaginário.

Jean Piaget enfatiza que a criança não é um recipiente vazio a ser preenchido, mas um sujeito ativo que constrói estrutura cognitiva a partir da ação sobre o meio, num processo contínuo de “assimilação e acomodação”. Para ele: “O conhecimento é o produto da interação contínua entre o sujeito e o objeto8”, o que significa que a experiência concreta e o alicerce sobre o qual se ergue as abstrações.

Lev Vygotsky acrescenta uma dimensão social e cultural mais explicita: o desenvolvimento cognitivo é mediado pelas interações humanas, pela linguagem e pelos instrumentos culturais. Sua noção de zona de desenvolvimento proximal (ZDP) evidencia que a aprendizagem potencializa o desenvolvimento quando ocorre em colaboração.

Nesse sentido, “o aprendizado desperta processos internos de desenvolvimento que só operam quando a criança interage com outras pessoas9”. Isso implica reconhecer que o isolamento digital precoce, sem a contrapartida de interações presenciais ricas e variadas, limita não apenas a socialização, mas também a própria expansão das funções psicológicas superiores.

Henri Wallon, por sua vez, lembra que o desenvolvimento não é apenas cognitivo, mas também afetivo e motor. Ele integra o corpo, a emoção e o pensamento como dimensões indissociáveis do ato de aprender. Para Wallon: “A inteligência não nasce da inteligência, mas da ação10”, o que reforça a importância de ambiente em que a criança possa manipular, explorar e interagir fisicamente com o mundo.

No campo da imaginação, Bruno Bettelheim defende o papel do jogo simbólico e do faz de conta como recursos fundamentais para que a criança elabore experiências internas, compreenda papéis sociais e desenvolva a resiliência emocional. Ao abordar os contos de fadas, Bettelheim observa que “a imaginação ajuda a criança a dar sentido à sua vida e a encontrar soluções para seus problemas11”, o que se aproxima da função do jogo simbólico na pedagogia construtivista.

Dentro dessa perspectiva, a frustração – longe de ser algo a evitar – é parte essencial do processo educativo. A criança que experimento limites aprende a lidar com o adiamento de desejos, a elaborar estratégias para superação e a desenvolver autocontrole. Igualmente, o chamado “tédio criativo” representa uma oportunidade para que a imaginação floresça sem estímulos artificiais, permitindo que a criança crie soluções próprias para preencher o tempo e o espaço.

A interação social real e variada é, assim, insubstituível. É nas conversas face a face, nos jogos coletivos, nas negociações com os pares e nas experiências compartilhadas que se forja o conhecimento vivo, contextualizado e enraizado na experiência humana.

Sem essa base concreta, a aprendizagem corre o risco de se tornar uma acumulação estéril de informações, incapaz de se traduzir em compreensão profunda ou em sabedoria prática.

5 O novo cenário: infância digital e interações artificiais

Vivemos hoje uma inflexão profunda: a infância não mais se reduz à tábula rasa; ela está saturada de estímulos digitais. Interações artificiais – mediadas por tela, algoritmos e gratificações instantâneas – ocupando espaço que antes era reservados às vivências concretas, presença física, jogos livres e contato humano real.

No entanto, o século XXI trouxe um cenário inédito: a tábula rasa para uma “tábula saturada”, na qual o excesso de estímulos digitais modifica profundamente a forma como o conhecimento é construído.

O uso precoce e massivo de dispositivos digitais, já a partir dos primeiros meses de vida, tem ocupado o espaço antes reservado às interações humanas, ao brincar simbólico e à exploração sensorial concreta.

Esta saturação de estímulos artificiais não apenas antecipa informações para as quais a criança ainda não está neurobiologicamente preparada, mas também compromete o desenvolvimento saudável de áreas cerebrais essenciais para funções cognitivas, emocionais e sociais.

O consenso científico é claro: de 0 a 3 anos, não se deve usar telas em hipótese alguma. Nesse período o cérebro humano cresce cerca de 80% do seu tamanho adulto, formando e podando conexões sinápticas em um ritmo acelerado e altamente sensível às experiências reais. Além disso, cresce até 90% do cérebro cresce até os 5 anos.12

O contato com o ambiente físico, o toque, a linguagem falada e o jogo simbólico são insubstituíveis nesse processo. A exposição precoce a telas, mesmo que breve, pode prejudicar a aquisição da linguagem, atenção compartilhada e o autorregulamento emocional13.

Segundo um estudo populacional conduzido em 2017 junto a crianças de 0 a 60 meses no Ceará revelou associações entre maior tempo de tela e piores desempenhos nos domínios de comunicação, motricidade global e fina, resolução de problemas e interação pessoal-social14.

Outro estudo em Pelotas (Rio Grande do Sul), com 470 crianças de 18 meses mostrou que aquelas expostas por 2 horas ou mais por dia a telas apresentaram escores significativamente menores e o neurodesenvolvimento infantil15.

Uma revisão de literatura e integrativa brasileira identificou que o tempo de tela está associado a comportamentos sedentários, distúrbios do sono e dependência digital entre crianças, com impactos na saúde mental e no desenvolvimento infantil. Um estudo internacional indicou que crianças com três horas diárias de telas entre 24 e 30 meses tinham três vezes mais chances de apresentarem atraso na linguagem e desempenho inferior em vocabulário e prontidão escolar. Estudos de neuroimagem também mostram menor conectividade cerebral em áreas de linguagem e controle cognitivo.

Pesquisadores da Nova Zelândia observaram que crianças entre 2 e 8 anos expostas a mais de 90 minutos diários de telas tinham habilidades de linguagem, comunicação e escrita abaixo da média16.

A saturação digital corresponde a um cenário em que as interações digitais – rápidas, fragmentadas e, muitas vezes, pouco reflexiva – substituem experiências concretas que favorecem o aprendizado ativo, a exploração sensorial, a autonomia, a interação social genuína.

Isso coloca em risco os preceitos do construtivismo, pois o aprendizado se torna mais passivo, mediado por estímulos externos e menos alinhado à construção pessoal de significado.

Esse deslocamento ameaça não apenas a formação cognitiva, mas também o desenvolvimento moral e socioemocional, pois priva a criança da vivência da frustração, da negociação e da cooperação, essenciais para a autorregulação e o pensamento reflexivo.

O desafio da contemporaneidade é garantir que a criança, especialmente nos primeiros três anos – fase de crescimento acelerado do cérebro e de máxima plasticidade neural – seja protegida de qualquer uso de telas, priorizando interações humanas, brincadeiras livres e experiências concretas.

O risco de não agir agora é consolidar uma geração que já chega à escola não como tábula rasa, mas como tábula saturada, carregando um excesso de informações artificiais e um déficit de experiências reais.

6 Consequência para o desenvolvimento infantil do uso precoce e massivo de telas

Os primeiros anos de vida representam uma janela crítica para o desenvolvimento humano. Nesse período, o cérebro passa por um crescimento e uma organização estrutural sem precedentes. Esse crescimento acelerado está diretamente associado à formação e fortalecimento de trilhões de conexões sinápticas, fundamentais para funções cognitivas, linguísticas, emocionais e motoras.

A experiência vivida nesse período é decisiva. Estímulos sensoriais concretos, interações sociais ricas e oportunidades de movimento refinam as redes neurais, enquanto a poda sináptica elimina conexões pouco utilizadas, aumentando a eficiência do cérebro. Quando esses estímulos são substituídos por interações artificiais mediadas por telas, ocorre uma distorção no processo natural de maturação cerebral.

O córtex pré-frontal – região responsável por funções executivas, como atenção, memória de trabalho e controle inibitório – continua em desenvolvimento acelerado durante a primeira infância.

A superexposição a telas, sobretudo com conteúdo de alto estimulação visual e troca rápida de imagens, está associada à redução da capacidade de atenção sustentada e à maior impulsividade17.

A substituição de interações humanas por interações artificiais reduz as oportunidades de desenvolvimento da empatia, da leitura de expressões faciais e da negociação social. Isso compromete não apenas as habilidades socioemocionais, mas também a autorregulação emocional – competência central para o sucesso escolar e para a vida em sociedade.

O uso precoce e prolongado de dispositivos digitais está relacionado à redução do tempo de movimento ativo, o que afeta o desenvolvimento motor e aumenta o risco de sedentarismo e obesidade infantil. Além disso, há registros de problemas posturais e visuais decorrentes da exposição excessiva a telas em idades tão precoces.

Esse uso precoce e massivo compromete de forma direta os fundamentos defendidos pelos teóricos da pedagogia construtivista, cuja base repousa na interação concreta, no jogo simbólico, na experimentação ativa e na construção gradual do conhecimento. A lógica algorítmica das telas, ao oferecer compensações dopaminérgicas imediatas, subverte esse processo ao substituir a paciência da descoberta pela recompensa instantânea.

O resultado é um choque expressivo no ingresso escolar: a criança não chega mais como uma tábula rasa, aberta à experiência e à exploração do mundo real, mas como uma tábula saturada – já moldada por estímulos digitais rápidos, fragmentados e pouco integrados.

Nesse novo cenário, à escola não cabe apenas construir o conhecimento, como no modelo construtivista clássico, mas antes desfazer e reorganizar padrões cognitivos e socio emocionais estabelecidos precocemente, para então iniciar a verdadeira construção do saber.

Diante desse cenário, a própria rota da escola é alterada: antes centrada unicamente na construção do conhecimento, agora necessita dedicar-se, simultaneamente, à reorganização das bases cognitivas e socioemocionais já moldadas pelo contato precoce e intenso com telas.

Esse duplo trabalho – desconstruir padrões prejudiciais e, ao mesmo tempo, iniciar a aprendizagem significativa – torna-se uma tarefa altamente complexa, e não é à toa que tantos professores se mostram exaustos diante de tamanha demanda.

Esse desgaste não é sinal de falta de competência ou preparo, mas o reflexo direto de um novo contexto social e tecnológico que impõe à escola responsabilidades para as quais ela não foi concebida sozinha. Sem a participação clara sobre a natureza desse problema, a escola se verá sozinha, tentando corrigir efeitos que extrapolam seu alcance e que exigem uma ação conjunta para serem verdadeiramente superados.

7 Desafios para a construção do conhecimento e para os professores

O cenário educacional contemporâneo impõe um duplo desafio à escola e, especialmente, aos professores: lidar com uma infância que já chega à educação formal pré-preenchida por estímulos digitais e, ao mesmo tempo, tentar promover processos de aprendizagem que exijam atenção sustentada, criatividade e capacidade simbólica.

Nas séries iniciais, o trabalho docente passou a precisar, antes de qualquer construção efetiva do conhecimento, reorganizar padrões cognitivos e socioemocionais moldados pela lógica das telas. Essa lógica se caracteriza por estímulos rápidos, fragmentados e recompensadores de forma imediata, produzindo, no cérebro infantil, um ciclo dopaminérgico que favorece a dispersão e a busca por novidades constantes, mas enfraquece a capacidade de manter o foco em tarefas mais longas e complexas.

Já nas séries posteriores, a realidade também é bastante desafiadora. Muitos professores encontram turmas compostas por uma quantidade expressiva de alunos já dependentes desse tipo de estímulo digital, o que resulta em uma clara dificuldade para suportar períodos mais longos de concentração. A escola, que por décadas trabalhou dentro de um modelo que pressupunha a possibilidade de atenção contínua, vê-se agora diante de uma geração para a qual o tempo médio de foco foi dramaticamente reduzido.

Essa mudança é mensurável e não se trata de mera percepção docente. No início do século XX, pesquisa sobre o tempo médio de concentração de estudantes indicaram que a faixa ideal para manter a atenção plena situava-se entre 45 e 50 minutos, o que serviu como base para a consolidação do modelo de aulas de 50 minutos18.

Entretanto, pesquisas recentes do século XXI indicam que, em um contexto permeado por dispositivos digitais e interações rápidas, o tempo médio de concentração caiu para algo entre 7 e 10 minutos, no máximo19.

Essa drástica redução é atribuída, segundo especialistas diretamente ao ambiente digital, no qual tudo é imediato, interativo e efêmero, moldando um padrão de expectativa cerebral para recompensas instantâneas.

O impacto desse cenário na construção do conhecimento é profundo. A atenção, base indispensável para qualquer aprendizagem significativa, sofre um processo de fragmentação. Sem atenção sustentada, a memória de trabalho – responsável por manter e manipular informações temporariamente – opera de forma limitada, comprometendo a consolidação do aprendizado na memória de longo prazo20.

Isso significa que, mesmo quando o aluno “entende” algo momentaneamente, essa compreensão se dissipa com rapidez se não houver um esforço consciente e contínuo de retenção e elaboração.

Para os professores, essa nova realidade representa não apenas uma mudança de metodologia, mas um desgaste emocional e cognitivo constante. O trabalho de manter a atenção dos alunos exige recursos cada vez mais variados e dinâmicos, muitas vezes desviando o foco da profundidade conceitual para a manutenção do engajamento.

Ao mesmo tempo, há o dilema ético e pedagógico: ceder à lógica de estímulos rápidos, para “manter o aluno ali”, ou insistir em processos mais lentos e conscientes, correndo o risco de perder a atenção da turma.

Esse contexto reforça a necessidade de repensar a função social da escola. Não se trata apenas de ensinar conteúdos, mas de reconstruir habilidades cognitivas básicas que o ambiente digital está erodindo. Como lembra Postman: “Cada nova tecnologia carrega consigo uma filosofia que redefine o que entendemos por conhecimento, verdade e aprendizagem21”.

No caso das tecnologias digitais, essa filosofia tende a valorizar a velocidade, a novidade e a superficialidade, em detrimento da reflexão, da paciência e da profundidade.

Assim, o desafio que se coloca não é pequeno: a escola do século XXI precisa atuar como contrapeso ao fluxo incessante de estímulos digitais, cultivando, de forma intencional, espaços e práticas que favoreçam a atenção plena, a criatividade autêntica e a capacidade de simbolização – pilares sem os quais não há aprendizagem duradoura.

Mais do que nunca, professores necessitam de apoio institucional, formação continuada e, sobretudo, da parceira ativa das famílias, pois a tarefa de reeducar a atenção e reconstruir padrões cognitivos não pode ser responsabilidade exclusiva da escola.

Vejamos, portanto, o drama que se impõe aos professores em todos os níveis: nas séries iniciais, o esforço incessante para reorganizar padrões prejudiciais e criar condições mínimas para que a aprendizagem ocorra; nas séries posteriores, o enfrentamento diário de alunos que já apresentam dependência intensa dos estímulos digitais e resistem a manter o foco por mais de alguns minutos.

A escola, como um todo, se vê obrigada a atuar em um terreno que não foi preparado para ela, tentando conciliar a formação integral com a reparação de danos cognitivos e socioemocionais. Essa realidade exige a conscientização efetiva dos pais sobre a gravidade do problema e o papel decisivo do poder público na criação de políticas que levem informação qualificada à população, preparem adequadamente os profissionais da educação e ofereçam suporte técnico e humano às escolas.

Da mesma forma, gestores de instituições particulares precisam compreender que investir na formação e no apoio contínuo a seus professores não é um custo extra, mas uma condição de sobrevivência pedagógica diante dessa nova configuração social.

No caso específico das escolas que adotam a pedagogia construtivista, torna-se imprescindível conscientizar as famílias de que essa abordagem só alcança sua plena efetividade quando a criança vivencia interações reais, ricas em experiências concretas, vínculos humanos e estímulos que envolvam corpo, mente e emoção. Sem isso, o construtivismo perde seu alicerce e sua capacidade transformadora.

9 Considerações finais

Ao refletirmos sobre o pensamento de John Locke e sua concepção da criança como tábula rasa – uma mente moldada pelas experiências vividas – e sobre a advertência de Neil Postman acerca do “desaparecimento da infância” na era tecnologia, somos levados a questionar: estaríamos, neste início de século XXI, vivendo não apenas o desaparecimento da infância como etapa diferenciada, mas, especificamente, o desaparecimento da infância enquanto tábula rasa?

Tudo indica que sim. A criança que antes chegava à escola com uma mente aberta às experiencias concretas e ao gradual processo de construção do conhecimento, hoje muitas vezes ingressa já saturada por estímulos digitais rápidos e superficiais, carregando padrões de atenção fragmentada e dependência de recompensas imediatas.

Não podemos deixar de frisar que, no lugar da tábula rasa, passamos a conviver com a tábula saturada, onde, o excesso de informações e estímulos, longe de ampliar o potencial de aprendizagem, dificulta a construção de saberes profundos e significativos.

Nesse contexto, preservar as experiências concretas torna-se uma urgência civilizatória. É imprescindível compreender que, na primeira infância, o uso de dispositivos digitais não deve ser apenas reduzido, mas totalmente eliminado.

Tal medida não se trata de um radicalismo improdutivo, mas de uma estratégia de proteção do desenvolvimento neurológico, emocional e social da criança, garantindo que ela possa vivenciar plenamente o mundo real, com seus ritmos, desafios e interações humanas insubstituíveis.

Essa urgência também exige uma profunda recontextualização da pedagogia construtivista. Seus pressupostos – interação social, jogo simbólico, construção ativa do conhecimento – não perderam validade, mas enfrentam um ambiente radicalmente diferente daquele em que foram formulados.

Para que essa pedagogia mantenha sua força transformadora, é necessário adaptá-la às condições da Era Digital, criando estratégias para resgatar e fortalecer as habilidades cognitivas e socioemocionais comprometidas pela exposição precoce e massiva às telas.

Não podemos ignorar, ainda, a complexidade enfrentada pelos professores tanto nas séries iniciais, onde o trabalho passa por reorganizar padrões prejudiciais e criar condições para a aprendizagem, quando nas séries posteriores, onde há que lidar com alunos já dependentes de estímulos digitais e com baixa tolerância à concentração prolongada. Essa sobrecarga não é fruto de incompetência docente, mas da mudança drástica no perfil infantil e das novas exigências imposta à escola.

Por isso, o enfrentamento dessa realidade não é individual, mas deve ser coletivo. É papel do poder público criar políticas de conscientização e suporte, capacitar profissionais, disseminar informações baseadas em evidências e garantir recursos para que a escola, possa cumprir sua função.

Ao mesmo tempo, é papel das famílias compreender que são coparticipantes indispensáveis nesse processo: sem o alinhamento entre casa e escola, qualquer esforço de resgate da atenção, da criatividade e da capacidade simbólica dos alunos será limitado.

Se Locke nos ensinou que a mente infantil é moldada pelas experiências e Postman nos alertou para os riscos de um mundo que dissolve as fronteiras da infância, cabe a nós, hoje, agir para que não sejamos lembrados como a geração que deixou desaparecer a infância como tábula rasa, mas como aquela que soube resgatar e proteger a experiência concreta – substituindo a lógica da tábula saturada pela redescoberta do olhar curioso e livre que caracteriza a verdadeira infância.

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WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança. Lisboa: Estampa, 1968.


1 Nilton Pereira da Cunha é Professor, Pesquisador, Escritor e Coordenador Educacional do Instituto Nacional de Evolução Humana. Graduado e Pós-graduação Lato e Stricto Sensu na área da Educação, também graduado e pós-graduado em Direito, com artigos e livros publicados em português e castelhano em vários países: Brasil, Argentina e Colômbia, tais como: O autismo e a interação social: Como desenvolver uma criança saudável na Era Digital; El autismo y la interacción social: como desarrollar una crianza saludable en la Era Digital; Educação, Família e Geração Digital: os desafios e perspectivas da pós-modernidade.

2 LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultura, 1999.

3 POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.

4 POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.

5 POSTMAN. Neil. Idem. 1999.

6 LIVINGSTONE, Sonia. Children: a special case for privacy? London: London School of Economics and Political Science, 2014.

7 POSTMAN, Neil. Idem. 1999.

8 PIAGET, Gean. A equilibração das estruturas cognitivas: problema central do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

9 VYGOTSKY, Lev, S. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

10 WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança. Lisboa: Estampa, 1968.

11 BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

12 FIRST THINGS FIRST. 90% do crescimento do cérebro acontece antes do jardim de infância. Disponível em: https://www.firstthingsfirst.org/early-childhood-matters/brain-development/. Consultado em: 14/08/2025.

13 CARVALHO, L. R.; PINTO, P. M. Associação entre uso de telas e desenvolvimento infantil: revisão de literatura Research, Society and Development, v. 12, 2023.

14 CRUZ, Mírian Alexandre Amaral da. CARACTERÍSTICAS E FATORES DETERMINANTES DO USO DE TELA EXCESSIVO NA PRIMEIRA INFÂNCIA: ABORDAGEM POPULACIONAL NO CEARÁ. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/79156/1/2024_dis_maacruz.pdf. Consultado em: 14/08/2025.

15 UFPEL. Estudo da UFPel investiga associação entre tempo de tela na infância e neurodesenvolvimento infantil. Disponível em: https://ccs2.ufpel.edu.br/wp/2023/07/06/estudo-da-ufpel-investiga-associacao-entre-tempo-de-tela-na-infancia-e-neurodesenvolvimento-infantil/. Consultado em: 14/08/2025.

16 SCIENCEDIRECT. Tempo de tela de crianças em idade pré-escolar e oportunidades reduzidas de interação de qualidade: associações com o desenvolvimento da linguagem e a proximidade entre pais e filhos. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S266651822300044X. Consultado em: 14/08/2025.

17 CHAVED, B. S. et al. Screen time e implicações para saúde física e mental na infância. Research, Society and Development, v. 13, 2024.

18 TYLER, R. W. Basic principles of curriculum and instruction. Chicago: University of Chicago Press, 1949.

19 GLORIA_MORA, A. Attention span and the digital generattion: A review of research. Journal of Educational Technology, v. 15, n. 2, p. 45-58, 2018.

20 BADDELEY, A. D. Working memory: Theories, models, and controversias. Annual Review of Psychology, v. 63, p. 1-29, 2012.

21 POSTMAN, Neil. Technopoly: The surrender of culture to technology. New York: Vintage Books, 1994.