A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 28 DA LEI 11.343/2006

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.13801518


Nathalia Azara de Andrade


RESUMO
Louvável é a tentativa do legislador ao criar um dispositivo que visa a diferenciar o usuário do traficante de drogas, sem impor ao primeiro o mesmo rigor destinado ao último. No entanto, o que se percebe é que o Estado, na tentativa de cuidar, invadiu a individualidade do cidadão que escolhe usar drogas, seja por mera recreação, seja por vício. Assim, é certo que acabou por violar o direito constitucional à vida privada, bem como alguns princípios basilares do direito penal. Assim, por meio desta pesquisa, buscou-se verificar como se deu a criminalização do porte e uso de drogas desde os primórdios da história brasileira, fazendo um pequeno comparativo entre as legislações que trataram do tema e finalizando com a discussão sobre a possível inconstitucionalidade do dispositivo em questão.
Palavras-chave: Inconstitucionalidade. Art. 28 da Lei 11.343/2006. Intimidade. Alteridade. Ofensividade

ABSTRACT
Commendable is the legislator's attempt to create a provision aimed at differentiating between drug users and traffickers, without imposing on the former the same severity intended for the latter. However, what is perceived is that the State, in its attempt to provide care, has encroached upon the individuality of the citizen who chooses to use drugs, whether for mere recreation or addiction. Thus, it is certain that it ended up violating the constitutional right to privacy, as well as some fundamental principles of criminal law. Therefore, through this research, an effort was made to verify how the criminalization of drug possession and use has evolved since the early days of Brazilian history, making a brief comparison between the legislations that addressed the issue and concluding with a discussion on the possible unconstitutionality of the provision in question.
Keywords: Unconstitutionality. Art. 28 of Law 11.343/2006. Privacy. Alterity. Offensiveness.

INTRODUÇÃO

A discussão sobre a legalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006 surge da criminalização da posse, guarda, transporte e uso pessoal de drogas, sem autorização ou em desacordo com a lei.

Questiona-se se essa medida não representa uma interferência excessiva do Estado na esfera privada dos indivíduos. Ao analisar o texto constitucional, observa-se que essa tipificação não apenas invade ilegitimamente a esfera privada, mas também viola os princípios da subsidiariedade e da alteridade, devendo ser examinada pelo judiciário com ressalvas apropriadas.

Ainda, tem-se que o problema da dependência química muitas vezes é abordado de forma inadequada pelas políticas públicas, que tendem a priorizar soluções baseadas no Direito Penal em detrimento da saúde pública.

A abordagem adotada na análise é principalmente de natureza constitucional, destacando os princípios que não apenas integram o ordenamento jurídico, mas também oferecem soluções apropriadas para os conflitos apresentados. Quanto à metodologia, utilizou-se a pesquisa exploratória, com base em revisão bibliográfica.

É reconhecido que a tipificação presente no artigo 28 da Lei 11.343/2006 está em desacordo com o texto constitucional e com os princípios aplicáveis ao Direito Penal, como os da subsidiariedade e da alteridade. As penalidades previstas no dispositivo têm eficácia questionável e não parecem adequadas ao propósito da lei.

CAPÍTULO 1 – UM PASSEIO PELA HISTÓRIA – COMO O CONSUMO DE ENTORPENCENTES FOI TRATADO PELAS LEGISLAÇÕES BRASILEIRAS

Desde muito tempo, o consumo e a venda ilícita de substâncias denominadas como entorpecentes ou psicotrópicas, são objeto de preocupação ao redor do mundo, por ser, inicialmente, uma questão de saúde pública.

Em nosso país, tal preocupação remonta às Ordenações Filipinas, que em seu Título LXXXIX dispunham: “Que ninguém tenha em casa rosalgar, nem o venda, nem outro material venenoso”.

No Brasil Império, tal preocupação se demonstrou com a edição do Código de Posturas da Ilustríssima Câmara Municipal do Rio de Janeiro, datado de 1854. trazendo, dentre outros temas, a criminalização do “Pito do Pango”.

Outrossim, já após a Proclamação da República, tivemos a edição da Lei de Fiscalização de Entorpecentes (Decreto-lei nº 891/1938.

Já em 1971, tivemos a edição da Lei 5.726, que, dentre outras coisas, alterou a redação do art. 281 do Código Penal, criminalizado condutas ligadas ao tráfico e uso de entorpecentes. Alguns anos depois, em 1976, tivemos a Lei 6.368, que vigorou até a edição da atual Lei 11.343/2006.

A seguir, passaremos a mostrar como o consumo de entorpecentes foi tratado ao longo da história legislativa brasileira.

1.1 - “É prohibida a venda e uso do pito do pango.” – Código de Posturas da Ilustríssima Câmara Municipal – Rio de Janeiro - 1854

Mais precisamente no “Título segundo” da “Secção Primeira”, que tratava da saúde pública, no §7º, do Código de Posturas da Ilustríssima Câmara Municipal, encontramos o seguinte texto (transcrição literal):

É prohibida a venda e uso do pito do pango, bem como a conservação delle em casas públicas; os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20$000 rs., e os escravos e mais pessoas que delle usarem em 8 dias de cadêa.

Também chamada de “diamba”, a cannbais sativa, hoje por nós conhecida popularmente como maconha, teve seu comércio e uso criminalizados no Brasil Império.

Em uma primeira análise, nota-se que o referido diploma, claramente influenciado pela cultura escravocrata predominante na época, colocou os escravos em grupo distinto das demais pessoas – “os escravos e mais pessoas que delle usarem em 8 dias de cadêa.”

Nesse sentido, nota-se que aqueles indivíduos segregados à escravidão, nada mais eram que coisas – já que eram comercializados como se mercadorias fossem – porém, eram “coisas que poderiam ser punidas “por “pitar o pango”. Algo deveras incoerente, mas para a sociedade da época, parece que “punir coisas” e tratar pessoas como coisas era algo perfeitamente normal.

Em outras palavras, o que para nós, hoje, é racismo, naquela época, era algo totalmente dentro dos padrões.

Ainda, deve-se ressaltar o fato de que aquele que vendia era punido com uma simples multa. Enquanto aquele que consumia era punido com 8 dias de cadêa.

Desse modo, é possível concluir duas coisas sobre o exposto neste subtítulo: o racismo era algo normal e aceito pela sociedade da época, principalmente quando se tratava de punir. E atentar contra a saúde pública era infinitamente menos grave que atentar contra a própria saúde.

1.2 - Lei de Fiscalização de entorpecentes – Decreto-lei nº 891 de 25 de novembro de 1938

Em 26 de junho de 1936, na cidade de Genebra, na Suíça, o Brasil assinou, junto com outros países, a Convenção para a repressão ao tráfico ilícito de drogas nocivas.

O referido documento foi promulgado no Brasil por meio do Decreto 2.994 de 17 de agosto de 1938. Nesse momento, assumiu-se, dentre outros, o compromisso, conforme disposto no Artigo II1, de:

baixar as disposições legislativas necessárias para punir severamente, e sobretudo com pena de prisão ou outras penas privativas de liberdade, os seguintes atos:

fabricação, transformação, extração, preparação, detenção, oferta, exposição à venda, distribuição, compra, venda, cessão sob qualquer título, corretagem, remessa, expedição em trânsito, transporte, importação e exportação dos estupefacientes, contrarias às estipulações das referidas Convenções;

Assim, em razão da assunção de tal compromisso, foi editado o Decreto-lei nº 891 de 25 de novembro de 1938, a Lei de fiscalização de Entorpecentes.

O sobredito diploma, ao contrário da atual Lei 11.343/2006, trazia, logo no Artigo I, um rol taxativo sobre quais substâncias eram consideradas entorpecentes para os efeitos daquela lei. Esse rol era composto pelo ópio, a morfina e seus derivados, as folhas de coca, a cocaína e a maconha.2

Outrossim, estabelecia em seu Artigo 35 uma punição um pouco mais severa que aquela trazida pelo Código de Posturas do Rio de Janeiro para aqueles que portassem quaisquer das substâncias elencadas no Artigo I. Vejamos:

Ter consigo qualquer substância compreendida no artigo primeiro e seus parágrafos, cem expressa prescrição de médico ou cirurgião dentista, ou possuir em seus estabelecimentos, sem observância das prescrições legais ou regulamentares qualquer das referidas substâncias entorpecentes - pena.: um a quatro anos de prisão celular e multa de 1:00$0000 a 5:000$000. (grifo nosso)

Nota-se que o porte de entorpecentes ainda era punido com restrição da liberdade combinada com pena de multa.

Vale acrescentar, por fim, que a pena estabelecida pelo Decreto-lei para o que hoje se entende por tráfico de drogas, era de um a cinco anos de prisão celular, ou seja, uma diferença de apenas 1 ano para algo que atentaria para a saúde pública.

1.3 - Lei 5.726 de 29 de outubro de 1971 e Lei 6.368 de 21 de outubro de 1976

Em 1971, em plena ditadura militar, foi editada a Lei 5.726, que trouxe medidas preventivas ao tráfico e uso ilícito de entorpecentes, bem como deu nova redação ao art. 281 do Código Penal, estabelecendo um rol de crimes relacionados ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes, na medida em que aquele que adquirisse entorpecentes para uso próprio (art. 281, § 1º, III) incorria nas mesmas penas que aquele que traficava: reclusão, de 1 (um) a 6 anos e multa de 50 (cinqüenta) a 100 (cem) vêzes o maior salário-mínimo vigente no País.3

Alguns anos depois, já em 1976, foi editada a Lei 6.368/1976, também chamada de “Lei de drogas”.

Esse diploma, por sua vez, trouxe normas mais detalhadas no que dizia respeito ao controle de substâncias entorpecentes, definindo com precisão o crime de tráfico de drogas em seu artigo 12, cuja pena cominada era de 3 a 15 anos de prisão e 50 a 360 dias-multa.4

No entanto, era em seu art. 16 que trazia a criminalização do porte para uso próprio, cominando para sua prática uma pena de detenção combinada com uma pena de multa:

Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinquenta) dias-multa. (Grifo nosso)

Assim, podemos observar que, comparada à sua antecessora, a qual previa uma pena de reclusão para o porte, a Lei 6.368/76 trazia uma pena relativamente mais branda, na medida em que passou a prever uma detenção.

CAPÍTULO 2 – A LEI 11.343 DE 23 DE AGOSTO DE 2006

2.1 - Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD

Revogando completamente a Lei 6.368/76, a atual Lei 11.343/2006 inovou ao instituir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), cuja finalidade é a integração, organização e coordenação de atividades relacionadas a prevenção do uso indevido de entorpecentes, bem como a reinserção social de usuários e dependentes químicos e a repressão ao tráfico e produção não autorizada de substâncias entorpecentes, conforme disposto em seu art. 1º 5

Assim, de acordo com o art. 2º do Decreto 5.912/2006, integram o SISNAD: o Conselho Nacional Antidrogas (CONAD) – órgão normativo e deliberativo, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública; a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD); o conjunto de órgãos e entidades públicos que exerçam atividades de prevenção ao uso indevido , de atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, assim como de repressão ao tráfico de drogas nos âmbitos dos Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; as organizações, instituições ou entidades da sociedade civil que atuam nas áreas da atenção à saúde e da assistência social e atendam usuários ou dependentes de drogas e respectivos familiares, mediante ajustes específicos.6

2.2 - Do conceito de drogas

Vale destacar que estamos diante de norma penal em branco, que é aquela cuja compreensão do preceito primário exige complementação trazida por outro diploma, tais como decretos, regulamentos, leis, portarias, etc.

Nesse sentido, temos que a Lei 11.343/2006, ao contrário de suas antecessoras, não traz em seu bojo em rol taxativo sobre quais seriam as substâncias com capacidade de causar dependência, deixando tal tarefa a cargo do Ministério da Saúde, que o fez por meio da Portaria nº 344 de 12 de maio de 1998, que prevê em seu anexo I uma extensa gama dessas substâncias.7

Ademais, é certo que em razão de seu complemento depender de uma norma oriunda de fonte legislativa diversa – a Lei de Drogas é fruto de deliberação do Poder Legislativo e a Portaria nº 344/1998 é fruto do poder regulamentar de uma autarquia sob regime especial, qual seja, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, vinculada ao Ministério da Saúde, que é vinculado ao Poder Executivo) – estaremos diante de uma norma penal heterogênea

Destarte, mesmo que determinada substância seja entorpecente, ou seja, capaz de provocar dependência física ou psíquica, se ela não constar do rol estabelecido pela referida Portaria, eventual conduta que venha a ser praticada será considerada atípica.

2.3 - Das ressalvas quanto à proibição ao uso de drogas

O art. 2º da Lei, traz como regra geral a proibição não só ao uso, como também ao plantio, cultivo e colheita de plantas e substratos dos quais seja possível a extração ou produção de drogas. Ressalva, no entanto, a hipótese de autorização legal ou regulamentar para fins medicinais ou científicos, bem como as plantas para uso ritualístico-religioso:

Art. 2º Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.

Parágrafo único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas.

Quanto ao uso medicinal das sobreditas substâncias, vale lembrar que o art. 31 da Lei 11.343/2006 exige licença prévia para a produção de drogas para esses fins:

Art. 31. É indispensável a licença prévia da autoridade competente para produzir, extrair, fabricar, transformar, preparar, possuir, manter em depósito, importar, exportar, reexportar, remeter, transportar, expor, oferecer, vender, comprar, trocar, ceder ou adquirir, para qualquer fim, drogas ou matéria-prima destinada à sua preparação, observadas as demais exigências legais.

Outrossim, é notória a movimentação política e social no país para a utilização do óleo de canabidiol para tratamento de doenças como epilepsia, mal de Parkinson, dores crônicas, etc.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA- já autoriza uma série de produtos de Canabis e a base de canabidiol. Até 2022 o rol de produtos autorizados já contava com 23 produtos.8

Nessa linha, já tramita também no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 5511/20239, de iniciativa da Senadora Mara Gabrilli, cuja ementa dispõe o seguinte:

Dispõe sobre cultivo, produção, importação, exportação, comercialização, controle, fiscalização, prescrição, manipulação, dispensação e utilização de Cannabis, de medicamentos à base de Cannabis e de produtos de Cannabis para fins medicinais, de usos humano e veterinário, bem como sobre o cânhamo industrial e seus produtos, e altera as Leis nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999 (Lei de criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária), e nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Lei de Políticas sobre Drogas).

No tocante ao cultivo para fins ritualístico religiosos, nota-se que a Lei menciona expressamente a Convenção de Viena sobre substâncias psicotrópicas, de 1971. O referido documento, em seu art. 32.4, dispôs sobre o assunto da seguinte forma:

O Estado em cujo território cresçam plantas silvestres que contenham substâncias psicotrópicas dentre as incluídas na Lista I, e que são tradicionalmente utilizadas por pequenos grupos, nitidamente caracterizados, em rituais mágicos ou religiosos, poderão, no momento da assinatura, ratificação ou adesão, formular reservas em relação a tais plantas, com respeito às disposições do artigo 7º, exceto quanto às disposições relativas ao comércio internacional.10

Importante observar que o art. 2º não autoriza, por si só, o cultivo de plantas para uso ritualístico e religioso, fazendo-se necessária também a concessão de autorização legal ou regulamentar.

Um exemplo disso é a ayahuasca, chá utilizado por algumas tradições religiosas brasileiras, como o Santo Daime, Barquinha e a União do Vegetal e resultado da decocção do caule do cipó Jagube (Banisteropsis caapi Spruce ex Griseb) e das folhas da Chacrona (Psychotria viridis Ruiz et Pav).

Após longo período de discussões em torno do tema, o ritualístico da ayahuasca foi liberado pelo Conselho Nacional de Políticas Públicas dobre Drogas por meio da Resolução nº 1/201011, após apresentação de relatório pelo Grupo Multidisciplinar de Trabalho. O referido documento concluiu o seguinte:

Considerando, por fim, que o uso ritualístico religioso da Ayahuasca, há muito reconhecido como prática legitima, constitui-se manifestação cultural indissociável da identidade das populações tradicionais da Amazônia e de parte da população urbana do País, cabendo ao Estado não só garantir o pleno exercício desse direito à manifestação cultural, mas também protegê-la por quaisquer meios de acautelamento e prevenção, nos termos do art. 2o, "caput", Lei 11.343/06 e art. 215, caput e § 1º c/c art. 216, caput e §§ 1º e 4º da Constituição Federal.

Assim, podemos concluir que o cultivo de plantas que contenham substâncias psicotrópicas é, como regra geral vedado pelo ordenamento jurídico interno. Contudo, em respeito, principalmente aos direitos fundamentais à liberdade de culto (art. 5º, VI, CF) e à saúde (art. 6º, CF) é permitido para fins ritualístico-religiosos, como é o caso da ayahuasca, e medicinais, tendo como grande exemplo o uso do óleo de canabidiol.

2.4 - O porte de drogas para consumo próprio – Art. 28 da Lei 11.343/2006

Dentre as muitas inovações trazidas pela lei 11.343/2006, a mais notável, sem dúvida, é a mudança no tratamento em relação ao usuário de drogas.

Nesse sentido, no que toca ao porte de drogas para uso próprio, é certo que o citado diploma, diferente de seus antecessores, que adotavam uma linha mais repressiva, a Lei de Drogas não previu qualquer espécie de pena privativa liberdade. Nesse sentido, nas palavras de Renato Brasileiro12:

Sob a premissa de que a pena privativa de liberdade em nada contribui para o problema social do uso indevido de drogas, o qual deve ser encarado como um problema de saúde pública e não de “polícia” -, a Lei 11.343/06 inovou em relação à legislação pretérita, abolindo a possibilidade de aplicação de tal espécie de pena ao crime de porte de drogas para uso pessoal.

Temos, assim, que a principal ideia da atual Lei de Drogas é a de que o melhor caminho a se seguir é o da educação usuário e não o seu encarceramento, sendo certo que isso traria poucos, ou, na pior das hipóteses, quaisquer benefícios à saúde do indivíduo.

Além do que, é certo também que o encarceramento de uma pessoa pega em flagrante com drogas para seu próprio uso, nenhum benefício traz à sociedade, uma vez que, além de impedir que seja dada a essa pessoa a devida atenção, com possível tratamento para evitar uma dependência, também faria com que esse indivíduo passasse a conviver no cárcere com pessoas condenadas por crimes infinitamente mais graves que o simples porte de drogas, contribuindo, assim, para uma eventual “escola de criminosos.”

Por fim, vale destacar o teor da justificativa final do Senado no Projeto de Lei 115/2002 que culminou na Lei 11.343/2006, conforme o Parece r nº 846 da Comissão de Assuntos Sociais da Casa:13

O maior avanço do Projeto está certamente no seu art. 28, que trata de acabar com a pena de prisão para o usuário de drogas no Brasil. A pena de prisão para o usuário de drogas é totalmente injustificável, sob todos os aspectos. Em primeiro lugar, porque o usuário não pode ser tratado como um criminoso, já que é na verdade dependente de um produto, como há dependentes de álcool, tranqüilizantes, cigarro, dentre outros. Em segundo lugar, porque a pena de prisão para o usuário acaba por alimentar um sistema de corrupção policial absur-do, já que quando pego em flagrante, o usuário em geral tenderá a tentar corromper a autoridade policial, diante das consequências que o simples uso da droga hoje pode lhe trazer.

Nota-se, assim, que a substituição da linha repressiva que vinha sendo adotada pelas legislações anteriores em relação ao porte para uso próprio, linha essa que foi gradativamente sendo abandonada com o avançar dos anos, foi vista como um grande avanço em termos de desencarceramento e saúde pública.

2.4.1 - Natureza Jurídica

Desde que foi introduzido no ordenamento pela Lei 11.343/2006, o art. 28 foi alvo de grande discussão quanto a sua natureza jurídica. Hoje existem pelo menos três correntes a respeito.

A primeira delas, era defendida por Luiz Flávio Gomes e diz que se trata de uma descriminalização formal e transformação em infração sui generis.14 Tal entendimento é baseado no que diz o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal, que assim dispõe:

Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

Por ter deixado de prever qualquer pena privativa de liberdade, o porte de drogas para consumo próprio não poderia mais ser considerado crime, mas sim uma infração penal sui generis de menor potencial ofensivo.

Já a segunda diz que estamos diante de uma descriminalização substancial e transformação em infração do Direito judicial sancionador. Em outras palavras, para essa linha de entendimento, teria ocorrido nada mais, nada menos que uma abolitio criminis, motivo pelo qual não tocaria mais ao Direito Penal.

No entanto, esses dois entendimentos foram rejeitados pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, na Questão de Ordem no RE 430.105 QO/RJ15, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence:

I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 - nova lei de drogas): natureza jurídica de crime. 1. O art. 1º da LICP - que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção - não obsta a que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime - como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 - pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora ( CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo "rigor técnico", que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado "Dos Crimes e das Penas", só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). 3. Ao uso da expressão "reincidência", também não se pode emprestar um sentido "popular", especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de "despenalização", entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107). II. Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva. III. Recurso extraordinário julgado prejudicado. (grifo nosso)

Por fim, para a terceira e última corrente, temos uma despenalização com a manutenção do status de crime. Tal instituo, nas palavras de Renato Brasileiro, significa 16

adotar medidas substitutivas ou alternativas, de natureza penal ou processual, que visam, sem rejeitar o caráter criminoso da conduta, dificultar, evitar ou restringir a aplicação da pena de prisão ou sua execução ou, pelo menos, sua redução.

Nesse sentido, temos que o art. 5º XLVI, da Constituição Federal, ao dispor que a lei regulará a individualização da pena, não impede que o legislador ordinário opte por aplicar à conduta pena diversa daquelas elencadas no referido artigo, uma vez que ele utiliza a expressão dentre outras, o que já demonstra não se estar diante de um rol taxativo, mas sim exemplificativo.

Se o legislador optou por aplicar ao usuário de drogas uma pena alternativa, totalmente dentro do preceito constitucional, sem olvidar do caráter criminoso da conduta – o artigo 28 está topograficamente inserido no Capítulo denominado “Dos crimes e das Penas -, não há, pois, o que se falar em descriminalização/infração sui generis (1ª corrente) ou mesmo abolitio criminis (2ª corrente), e sim mera despenalização.

Destarte, quanto a possibilidade de condenação anterior pela sua prática transitada em julgado autorizar a aplicação da agravante genérica da reincidência (art. 61, I, do Código Penal), bem como o afastamento da minorante do tráfico privilegiado (art. 33, §4º, da Lei 11.343/2006), existem duas correntes

A 1ª diz que não há problemas na utilização da referida condenação para justificar a aplicação da reincidência e afastar o tráfico privilegiado. Entretanto, para a 2ª corrente, tal posição é um tanto desproporcional, na medida em que a condenação anterior por contravenção penal não é apta a gerar reincidência, já que o art. 63 do Código Penal é claro ao afirmar que apenas a prática de novo crime é capaz disso.

Desse modo, se a contravenção, que é punida unicamente com prisão simples não pode ser considerada para fins de reincidência, não haveria motivos para que o porte para uso próprio, que não chega nem a ser punido com penas privativas de liberdade, seja utilizado como agravante e como motivo para afastar o tráfico privilegiado.

2.4.2 - Bem jurídico tutelado e sujeitos do crime

O bem jurídico protegido pelo art. 28 da Lei 11.343/2006 é a saúde pública, na medida em que a conduta do usuário não colocaria em risco somente a saúde do próprio, transcendendo, assim, sua esfera pessoal.

Ainda, é certo que o sujeito ativo da conduta pode ser qualquer pessoa e que o sujeito passivo será a coletividade.

Outrossim, temos que se trata de crime de perigo abstrato, que é aquele em que não há necessidade de comprovar no caso concreto a ocorrência de dano. Pelo contrário, são crimes que se baseiam na presunção de que a prática daquele fato gera um risco ao bem jurídico que se busca tutelar.

Por certo, é com base nisso que o Superior Tribunal de Justiça não admite a aplicação do princípio da insignificância ao tráfico de drogas e ao porte de drogas para consumo próprio conforme dispõem os Enunciados nº 3 e 11, Edições nº 45 e 221 (respectivamente) da Jurisprudência em Teses, bem como no fato de que a pequena quantidade de drogas já seria um elemento do próprio tipo penal do art. 28:17

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. SÚMULA N. 182/STJ. DECISÃO DE ADMISSIBILIDADE FUNDADA NA SÚMULA N. 83/STJ. INDICAÇÃO DE PRECEDENTES CONTEMPORÂNEOS OU SUPERVENIENTES. AUSÊNCIA. POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO. ARTIGO 28, DA LEI N. 11.343/2006. PRETENSÃO DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. PEQUENA QUANTIDADE DE DROGA INERENTE À NATUREZA DO DELITO. NÃO CABIMENTO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

(...)

7. A jurisprudência desta Corte Superior é pacífica no entendimento de que não se aplica o princípio da insignificância aos delitos de posse de substância entorpecente para consumo próprio e de tráfico de drogas, por se tratar de crimes de perigo abstrato ou presumido, sendo irrelevante para esse específico fim a quantidade de droga apreendida. Precedentes.

8. Outrossim, especificamente em relação ao crime do art. 28, da Lei n. 11.343/2006, além de ser dispensável a efetiva ofensa ao bem jurídico tutelado (saúde pública), a reduzida quantidade de drogas é inerente à própria essência do delito em questão. Precedentes.

9. Agravo regimental não provido.

O Supremo Tribunal Federal, no entanto, a princípio também inadmitia, pelos mesmos motivos, a aplicação do referido princípio ao porte de drogas para consumo próprio.18 No entanto, a Corte também já tem entendimentos em sentido contrário.19

2.4.3 - Diferenças entre porte de drogas para consumo próprio e tráfico de drogas

Inicialmente, temos que o art. 52 da Lei 11.343/2006 determina que a autoridade policial deverá justificar as razões para classificação da conduta praticada pelo agente, devendo indicar quantidade, natureza da substância, bem como o local e as condições em que se deu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, conduta e antecedentes do indivíduo.

Nesse sentido, é certo que porte e tráfico de drogas são duas condutas bem distintas uma da outra.

No caso do art. 28, deve haver a intenção especial do agente para “consumo pessoal”. Assim, para que seja feita a distinção entre o porte e o tráfico, existem dois sistemas legais, utilizados pelos muitos ordenamentos jurídicos. São eles: sistema da quantificação legal e sistema da quantificação judicial.

No primeiro, o da quantificação legal, fixa-se um quantum diário. Se a quantidade de droga apreendida com o agente não extrapolar esse limite, não se fala em tráfico de drogas e sim em porte para consumo próprio.

Por outro lado, o sistema de quantificação judicial deixa a cargo do magistrado a análise das circunstâncias do caso concreto.

Em que pesem as inúmeras críticas a respeito, é certo que o legislador brasileiro, optou por utilizar o sistema de quantificação judicial, na medida em que dispôs exatamente nesse sentido no §2ºdo art. 28:

Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Assim, temos que a principal distinção entre porte de drogas para consumo próprio e tráfico de drogas está na quantidade, na intenção do indivíduo e nas circunstâncias específicas do caso. Essas diferenças são fundamentais para o sistema legal classificar e tratar as infrações de maneira proporcional.

2.4.4 - Das penas aplicadas

Na antiga Lei de Drogas (Lei nº 6.368/1976) a pena aplicada para quem portasse drogas para seu próprio consumo era de detenção de 6 meses a 2 anos e 20 a 50 dias-multa (art. 16).

Com o advento da atual lei, as penas previstas passaram a ser de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Vale ressaltar, também, a possibilidade de encaminhamento para tratamento do usuário, que poderá ser determinada pelo juiz na própria sentença condenatória, conforme disposto no art. 47.

Com isso, vemos que estamos diante de lei mais benéfica que a anterior, ante a impossibilidade de aplicação de pena restritiva de liberdade ao crime do art. 28, o que nos faz concluir que se um sujeito, eventualmente, fosse condenado por esse crime na vigência da Lei 6.368/1976, a lei retroagiria para beneficiá-lo, ainda que a sentença já tenha transitado em julgado, nos termos do art. 2º, parágrafo único do Código Penal.

Nota-se, assim, que as ditas sanções trazidas pela Lei de Drogas para o porte para consumo próprio priorizam a saúde pública e a reinserção social do usuário, ao invés de punições severas.

CAPÍTULO 3 – A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 28 DA LEI 11.343/2006

Muito ainda se discute a respeito da constitucionalidade ou não do porte de drogas para consumo próprio.

Para aqueles que advogam a favor da constitucionalidade do referido dispositivo, não há que se falar em incompatibilidade com a Constituição, pois estamos diante de crime contra a saúde pública. O usuário, mesmo que adquira pequena quantidade de entorpecente apenas para si, está colocando em risco toda a coletividade.

Nessa linha, Renato Brasileiro pontua também que outros bens, além da saúde pública podem ser, ainda que de forma reflexa, atingidos pela aquisição para o próprio consumo20:

De mais a mais, mesmo que indiretamente, outros bens jurídicos além da saúde pública são lesionados em virtude dessa conduta. Com efeito, não é incomum que o usuário dependente pratique outros crimes para sustentar seu vício. Ademais a aquisição de drogas por parte do usuário serve como forte estímulo para a prática do tráfico de drogas.

Ainda, segundo o autor, em que pese não ter a criminalização do porte de drogas alcançado seus objetivos, não se pode, de maneira alguma, cogitar a possibilidade de tirar tal conduta da tutela do direito penal. Se pensássemos por esse lado, o mesmo deveria ser feito com o homicídio, o roubo, o latrocínio, tendo em vista que a cominação de severas penas para eles também não surtiu o efeito desejado na sociedade.

Entretanto, existem aqueles que defendem a incompatibilidade do sobredito dispositivo com a Constituição Federal por ofensa, principalmente, ao direito fundamental à intimidade e à vida privada (art. 5º, X, CF) e ao princípio da ofensividade.

Seguindo essa linha, Maria Lúcia Karam21 diz que

o porte de drogas para consumo pessoal em circunstâncias que não envolvam um perigo concreto, direto e imediato para terceiros não afeta nenhum bem jurídico alheio, dizendo respeito unicamente ao indivíduo e à sua intimidade e a suas opções pessoais. Logo, como o Estado não está autorizado a penetrar no âmbito da vida privada, não pode interferir sobre condutas de tal natureza, vez que o indivíduo pode ser e fazer o que bem quiser, conquanto não afete concretamente direitos de terceiros.

Assim, nota-se que, basicamente, o argumento que sustenta a defesa pela inconstitucionalidade do sobredito dispositivo legal é, de fato, a violação do direito à intimidade e da vida privada, bem como aos da ofensividade, da alteridade e subsidiariedade.

3.1 - Princípio da alteridade

O princípio da alteridade, também chamado por alguns de princípio da transcendentalidade, diz que uma atitude meramente individual, interna, não pode ser incriminada. Nas palavras de Fernando Capez, “O fato típico pressupõe um comportamento que transcenda a esfera individual do autor e seja capaz de atingir interesse de outro”.22

Em outras palavras, ninguém pode ser punido por mal que causa unicamente a si e ninguém mais. Seria como punir a pessoa que se auto lesiona, por exemplo (Tal fato só pode ser incriminado, sabidamente, quando tem por fim prejudicar a terceiras pessoas, como por exemplo, fraudar seguro).

3.2 - Princípio da ofensividade

O princípio da ofensividade, também conhecido como princípio da lesividade ou princípio da intervenção mínima, é uma das bases fundamentais do direito penal moderno. Ele estabelece que somente condutas que efetivamente causem lesão ou coloquem em perigo um bem jurídico, podem ser consideradas criminosas.

Tal princípio, que assenta na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, surge como uma resposta à necessidade de limitar a intervenção do Estado na esfera individual dos cidadãos. Ele está intrinsecamente ligado ao Estado Democrático de Direito e aos direitos fundamentais dos indivíduos. Em vez de criminalizar comportamentos que não causem dano ou ameaça a terceiros, o direito penal deve se concentrar apenas em reprimir condutas verdadeiramente lesivas.

3.3 - Do direito à intimidade

Dois princípios interligados intimamente, previstos no art. 5º, X da Constituição Federal, assegura liberdade e autonomia ao individuo no que ao seu viver.

Seguindo essa linha, caso ele decida se utilizar de substâncias entorpecentes, não cabe ao Estado interferir, uma vez que qualquer prejuízo advindo dessa conduta refletirá unicamente na esfera individual daquela pessoa.

Sobre o assunto, faz-se necessário destacar as palavras de Maria Lúcia Karam23:

A nocividade individual de uma conduta privada poderá ser uma boa razão para ponderações ou persuasões, mas nunca para que o supostamente prejudicado seja obrigado a deixar de praticá-la. Há mais de um século, já assim alertava Stuart Mill, ao discorrer sobre a liberdade, em afirmação que bem traduz o alcance da garantia constitucional que, assegurando os direitos concernentes à intimidade e à vida privada, faz com ela incompatíveis os dispositivos legais criminalizadores da posse de drogas para uso pessoal e de seu consumo em circunstâncias que não afetem terceiros, quaisquer que sejam as modalidades de pena atribuídas a tais condutas.Parte superior do formulário

Assim, podemos concluir que é necessário respeitar a liberdade individual e a esfera privada de cada pessoa, sendo certo que a mera nocividade de uma conduta privada não justifica a imposição coercitiva sobre o indivíduo. respeitosas dos direitos individuais e da autonomia das pessoas, promovendo uma sociedade mais justa e livre.

3.4 - Princípio da subsidiariedade

Por fim, quanto ao princípio da subsidiariedade, também conhecido como intervenção mínima, temos que o direito penal deve intervir apenas quando a intervenção dos outros ramos do direito não for suficiente para a proteção de um determinado bem jurídico.

Em outras palavras, é a ultima ratio.

Tal princípio se relaciona diretamente com a ideia de proporcionalidade e razoabilidade na intervenção estatal. Busca evitar uma intervenção excessiva do Estado na vida dos indivíduos.

No que tange ao art. 28 da Lei 11.343/2006, a violação consistiria no fato de que, criminalizando o porte de drogas, o Estado estaria recorrendo de forma desnecessária ao direito penal ao invés de tentar explorar formas mais eficazes de lidar com o problema.

Nesse sentido, Rogério Grecco pondera o seguinte24:

É absolutamente incompreensível o porquê de a lei criminalizar, mesmo que sob forma de contravenção penal, a posse de substância entorpecente para consumo pessoal. Tal fato, além de afrontar princípio da subsidiariedade, ao buscar a solução do problema pela via penal, contraria frontalmente o princípio da intervenção mínima, verdadeira garantia do cidadão frente ao Estado.

Além do que, é certo que o encarceramento desses indivíduos em nada auxilia no combate ao problema com entorpecentes, podendo contribuir, inclusive, para a superlotação do sistema carcerário.

3.5 - Da inconstitucionalidade

É importante analisar aqui a tipicidade do crime de porte de drogas para consumo próprio.

Nesse sentido, é certo que se mostra perfeitamente possível a aplicação do princípio da insignificância – circunstância que excluiu a tipicidade- já que a conduta do art. 28 se amolda aos requisitos estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal para tanto, quais sejam a mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social da ação e reduzido grau de reprovabilidade da conduta.

Assim, usar o Direito Penal, quando esse deveria ser a última alternativa, ainda que sejam previstas penas com um viés pedagógico, mostra-se demasiadamente desproporcional.

Certo é que, desde o advento da Lei 11.343/2006, o art. 28 vem sendo assunto de diversas discussões, seja por inovar na ordem jurídica, prevendo penas pedagógicas, seja por, na opinião de diversos juristas respeitados, violar direitos fundamentais e princípios do direito penal.

Seguindo essa linha é que a inconstitucionalidade do dispositivo foi colocada em xeque perante o Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso Extraordinário – RE - 635.659 /SP.

Em síntese, o referido RE, interposto pelo Defensor Público Geral do Estado de São Paulo, argumenta pela inconstitucionalidade do art. 28, em razão de esse violar o art. 5º, X, da Constituição Federal e o princípio da lesividade (ou ofensividade, como já exposto acima).

Destarte, a repercussão geral foi admitida pelo relator, Ministro Gilmar Mendes, EM 2011, nos seguintes termos: 25

No caso, a controvérsia constitucional cinge-se a determinar se o preceito constitucional invocado autoriza o legislador infraconstitucional a tipificar penalmente o uso de drogas para consumo pessoal. Trata-se de discussão que alcança, certamente, grande número de interessados, sendo necessária a manifestação desta Corte para a pacificação da matéria.

Portanto, revela-se tema com manifesta relevância social e jurídica, que ultrapassa os interesses subjetivos da causa. Nesse sentido, entendo configurada a repercussão geral da matéria constitucional.

Nota-se que a controvérsia sobre a interpretação do preceito constitucional relativo à tipificação penal do uso de drogas para consumo pessoal é de interesse amplo, afetando não apenas os envolvidos diretos, mas também a sociedade como um todo.

Em 201526, ao admitir o Recurso Extraordinário e absolver o recorrente por atipicidade da conduta, o Ministro relator votou pela inconstitucionalidade do art. 28, ao argumento de que a criminalização estigmatizaria o usuário, comprometendo medidas de prevenção e redução de danos, sendo também desproporcional e ineficaz no combate às drogas, sem falar também que violaria direito da personalidade.

Destacou que a norma tem vícios de proporcionalidade, uma vez que dados indicariam que nos países que o uso foi descriminalizado não houve grande aumento do uso.

Nessa linha, declarou a inconstitucionalidade do referido dispositivo, sem redução do texto, de modo a preservar sanções administrativas e cíveis impostas ao usuário (advertência, comparecimento a curso educativo e prestação de serviços à comunidade).

No entanto, em 202327, o relator reajustou seu voto para restringir a declaração de inconstitucionalidade apenas ao porte de maconha, incorporando os parâmetros objetivos sugeridos pelo Ministro Alexandre de Moraes, presumindo como usuários aqueles que portarem de 25 a 60g de maconha ou que tenham 6 plantas fêmeas.

Vale destacar a fala da Ministra Rosa Weber: “Essa incongruência normativa, alinhada à ausência de objetividade para diferenciar usuário de traficante, fomenta a condenação de usuários como se traficantes fossem.” Acrescentou também ser a criminalização da conduta tipificada no art. 28 desproporcional, pois atinge a autonomia privada.

Já em 2024, pelo última decisão em 06/03, percebe-se que o que começou como uma possível descriminalização do porte de drogas de um modo geral, tende hoje a uma descriminalização unicamente do porte de maconha para uso próprio, com um possível estabelecimento de critérios objetivos para se definir a diferença entre o usuário e o traficante, havendo, contudo, entendimentos em sentido contrário, opinando pelo improvimento do Recurso Extraordinário, bem como pela constitucionalidade do já citado dispositivo da Lei de Drogas28:

Decisão: Após o voto reajustado do Ministro Luís Roberto Barroso (Presidente), que acompanhava os votos dos Ministros Gilmar Mendes (Relator) e Alexandre de Moraes, o qual, nesta assentada, fixava o quantitativo de 60g ou 6 plantas fêmeas como critério para a distinção entre consumo pessoal e tráfico; do voto-vista do Ministro André Mendonça, que acompanhava o Ministro Cristiano Zanin no sentido de negar provimento ao recurso extraordinário, mas propunha a seguinte tese: “I - É constitucional o art. 28 da Lei nº 11.343, de 2006; II - Fica estabelecido o prazo de 180 dias para o Congresso Nacional estabelecer critérios objetivos para diferenciar aquele que porta drogas para consumo pessoal (art. 28 da Lei nº 11.343, de 2006) do traficante de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343, de 2006), parâmetros que não impedirão que, no caso concreto, seja afastada a presunção mediante fundamentação idônea da autoridade competente”, e conferia interpretação conforme a Constituição ao art. 28, § 2º, da Lei nº 11.343/2006, para esclarecer, até que o Congresso Nacional delibere sobre o tema, que: I - Será presumido usuário e, portanto, sujeito às consequências jurídicas elencadas pelo art. 28, caput e incisos I, II e III, o indivíduo que estiver em posse de até 10 gramas de maconha; II - Tal presunção poderá ser desconstituída, no caso concreto, com base em fundamentação idônea pela autoridade competente, à luz dos demais parâmetros estabelecidos pelo art. 28, § 2º, da Lei nº 11.343, de 2006; do voto do Ministro Nunes Marques, que acompanhava o voto do Ministro Cristiano Zanin, negando provimento ao recurso e assentando a constitucionalidade do dispositivo impugnado, fixando a quantidade de 25g ou 6 plantas fêmeas para a distinção entre consumo pessoal e tráfico; e do voto do Ministro Edson Fachin, que ratificava o seu voto no sentido de acompanhar o Relator relativamente ao dispositivo impugnado, mas considerava que o estabelecimento da quantidade de maconha seria atribuição do Poder Legislativo, pediu vista antecipada dos autos o Ministro Dias Toffoli. Não vota o Ministro Flávio Dino, sucessor da Ministra Rosa Weber, que votara, em assentada anterior, acompanhando o voto do Relator. Plenário, 6.3.2024. (grifo nosso)

Assim, nota-se que ainda não há uma posição consolidada da Suprema Corte quanto ao tema, sendo certo, salvo melhor juízo, que a tendência é para a descriminalização tão somente do porte de maconha para uso próprio, havendo a possibilidade de que se estabeleçam critérios objetivos para a distinção entre o simples usuário e o traficante, diferindo assim do que dispõe o art. 28, §2º, da Lei 11.343/2006, que deixa tal diferenciação a cargo do julgador, que deverá observar as circunstâncias do caso concreto.

CONCLUSÃO

Ante todo o exposto, é possível notar que desde os primórdios de nossa história vem se buscando criminalizar o usuário de drogas, aplicando, inicialmente, penas maiores que as aplicadas para aquele que vendia substâncias entorpecentes, e depois, aplicando penas restritivas de liberdade.

Fato é que sempre se buscou criminalizar o usuário e não tratá-lo, sob o manto da proteção a saúde pública.

Destarte, percebe-se que o art. 28 da Lei 11.343/2006, em uma tentativa do legislador de inovar em relação às legislações anteriores, apenas serviu para estigmatizar mais ainda o usuário de drogas. Tal estigmatização em nada contribui para a redução do tráfico ilícito de entorpecentes em nosso país. Muito pelo contrário.

Outrossim, viola frontalmente o direito constitucional à intimidade e vida privada, garantido a todos pela Constituição Federal, bem como a princípios importantes do direito penal como a ofensividade, subsidiariedade e alteridade.

Assim, considerando que deve o direito penal ser a ultima ratio, não cabe a ele punir o usuário de drogas, devendo o Estado preocupar-se mais em investir em políticas públicas voltadas a educação, prevenção e medidas terapêuticas que possam auxiliar o usuário a se reinserir na sociedade.

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14. CAPEZ, FERNANDO. Curso de Direito Penal, volume I, parte geral: (arts. 1º a 120). São Paulo: Saraiva, 2013.

15. GRECO, ROGÉRIO. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 19ª ed. Niterói: Impetus, 2017.

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1 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/atos/decretos/1938/d02994.html. Acesso em 24/11/2023

2 Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del0891.htm. Acesso em 25/11/2023.

3 Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L5726.htmimpressao.htm . Acesso em 25/11/2023.

4 Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6368.htmimpressao.htm. Acesso em 25/11/2023.

5 “Art. 1º Esta Lei institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes.”

6 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5912.htm . Acesso em 02/02/2024.

7 Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep .html . Acesso em 01/02/2024.

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9 Quando do acesso ao site do Senado Federal, em 18/02/2024, o PL nº 5511/2023 encontrava-se aguardando relatoria na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (andamento de 27/11/2023. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/161086?_gl=1*193o05s*_ga*MjUwNTY2MDI0LjE2ODk0NTg1NTU.*_ga_CW3ZH25XMK*MTcwODMwMTUzMi41LjAuMTcwODMwMTUzMi4wLjAuMA.

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11 Disponível em https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-protecao/politicas-sobre-drogas/subcapas-senad/conad/atos-do-conad-1/2010/11___resolucao_n__01_2010___conad.pdf. Acesso em 01/03/2024.

12 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 8ª ed., rev.,atual.e ampl. Salvador, JusPODVM, 2020. P. 1019

13 Disponível em https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/1550?sequencia=123. Acesso em 27/12/2023

14 GOMES, Luiz Flávio. Lei de drogas comentada. 5ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p.111.

15 (STF - RE: 430105 RJ, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 13/02/2007, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-004 DIVULG 26-04-2007 PUBLIC 27-04-2007 DJ 27-04-2007 PP-00069 EMENT VOL-02273-04 PP-00729 RB v. 19, n. 523, 2007, p. 17-21 RT v. 96, n. 863, 2007, p. 516-523)

16 Legislação criminal especial comentada: volume único. P.1023.

17 (AgRg no AREsp n. 2.374.089/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 8/8/2023, DJe de 14/8/2023.)

18 Nesse sentido: (HC 102940, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 15-02-2011, DJe-065 DIVULG 05-04-2011 PUBLIC 06-04-2011 EMENT VOL-02497-01 PP-00109)

19 Nesse sentido: (HC 202883 AgR, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 15-09-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-187 DIVULG 17-09-2021 PUBLIC 20-09-2021)

20 Legislação criminal especial comentada: volume único. P.1.027

21 KARAM, 2006, p.7, apud, LIMA, 2020, p.1.027

22 CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal, volume I, parte geral: (arts. 1º a 120). São Paulo, Saraiva, 2013. P.32

23 KARAM, pp. 155/164, 2005

24 GRECCO, p.82, 2017.

25 Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1804565 Acesso em: 26/03/2024.

26 Disponível em https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=298109. Acesso em: 28/03/2024.

27 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512815&ori=1 Acesso em 28/03/2024.

28 Disponível em https://digital.stf.jus.br:443/publico/publicacao/368464 Acesso em 28/03/2024.