A (IN)VISIBILIDADE E OS DESAFIOS DAS EMPREGADAS DOMÉSTICAS RECONHECIMENTO DE SEUS DIREITOS TRABALHISTAS NO BRASIL
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17317373
Júlia Dara Pereira da Silva1
Valber Cruz Cereza2
RESUMO
O presente artigo analisa a evolução da proteção jurídica do trabalho doméstico no Brasil, destacando os avanços normativos e os desafios persistentes na efetivação dos direitos dessa categoria. O estudo demonstra como a atividade, historicamente marcada pela herança escravocrata, pela informalidade e pela subvalorização social, permanece permeada por desigualdades estruturais de gênero, raça e classe. A pesquisa, de caráter qualitativo, baseou-se na análise de documentos legais, dados estatísticos e revisão de literatura especializada. Constatou-se que, embora a Emenda Constitucional nº 72/2013 e a Lei Complementar nº 150/2015 tenham representado conquistas significativas, ainda há entraves como a falta de fiscalização, o desconhecimento dos direitos por parte das trabalhadoras e a resistência cultural em reconhecer o valor social e econômico da profissão. Conclui-se que o avanço jurídico, por si só, não é suficiente para corrigir as desigualdades históricas, sendo indispensável a implementação de políticas públicas eficazes, a atuação sindical fortalecida e a transformação social que reconheça o trabalho doméstico como essencial à dignidade humana.
Palavras-chave: empregadas domésticas. proteção jurídica. direitos trabalhistas. informalidade. desigualdade social.
ABSTRACT
This article analyzes the evolution of legal protection for domestic workers in Brazil, highlighting regulatory advances and persistent challenges in enforcing the rights of this category. The study demonstrates how this activity, historically marked by the legacy of slavery, informality, and social undervaluation, remains permeated by structural inequalities based on gender, race, and class. The qualitative research was based on the analysis of legal documents, statistical data, and a review of specialized literature. It was found that, although Constitutional Amendment No. 72/2013 and Complementary Law No. 150/2015 represented significant achievements, obstacles remain, such as a lack of fiscalization, workers' lack of awareness of their rights, and cultural resistance to recognizing the social and economic value of the profession. It is concluded that legal advancement, solely, is not enough to correct historical inequalities. It is essential to implement effective public policies, strengthen union activity, and promote social transformation that recognizes domestic work as essential to human dignity.
Keywords: domestic workers. legal protection. labor rights. informality. social inequality.
1. INTRODUÇÃO
O trabalho doméstico no Brasil apresenta uma trajetória marcada por profundas desigualdades quando comparado a outras atividades laborais. Embora indispensável ao funcionamento cotidiano de milhões de famílias, essa ocupação sempre esteve associada à subordinação, à informalidade e à ausência de garantias legais. A exclusão das empregadas domésticas do rol de direitos previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), desde sua criação em 1943, representou um dos marcos da marginalização dessa categoria, que permaneceu por décadas sem o mesmo patamar de proteção destinado a outros trabalhadores formais (BRASIL, 1943).
Somente a partir da Emenda Constitucional nº 72/2013 e da Lei Complementar nº 150/2015 ocorreu uma equiparação parcial, com a ampliação de direitos como jornada de trabalho regulamentada, pagamento de horas extras, FGTS, adicional noturno e seguro-desemprego (BRASIL, 2013; BRASIL, 2015). No entanto, apesar desses avanços legislativos, a efetividade prática desses direitos permanece limitada, diante da persistência da informalidade, da carência de fiscalização e do preconceito social que ainda recai sobre essa profissão.
O tema se mostra especialmente relevante ao se considerar que o trabalho doméstico no Brasil é exercido majoritariamente por mulheres negras, grupo social que enfrenta múltiplas formas de vulnerabilidade, resultantes da interseção de gênero, raça e classe social (CARNEIRO, 2011). Assim, compreender os obstáculos enfrentados por essas trabalhadoras implica não apenas analisar o texto normativo, mas também refletir sobre os fatores históricos, culturais e estruturais que dificultam a plena aplicação da lei.
Dessa forma, o presente estudo tem como objetivo analisar a evolução da proteção jurídica das empregadas domésticas no Brasil, identificando os principais marcos legais, os desafios que ainda comprometem a efetividade de seus direitos e os caminhos possíveis para assegurar a valorização dessa categoria. Busca-se, portanto, contribuir para o debate acadêmico e social sobre a importância do reconhecimento do trabalho doméstico como atividade fundamental para a dignidade humana e para a justiça social.
A pesquisa está estruturada em três eixos: (i) uma contextualização histórica e social do trabalho doméstico, com ênfase na herança da escravidão e no papel da mulher nessa atividade; (ii) a análise da evolução normativa, destacando os principais instrumentos de proteção jurídica; e (iii) a reflexão sobre os desafios contemporâneos para a efetiva implementação dos direitos, ressaltando a necessidade de políticas públicas e de transformação cultural que rompam com a invisibilidade histórica dessa profissão.
2. REFERENCIAL TEÓRICO
2.1. Contexto Histórico e Social do Trabalho Doméstico no Brasil
O trabalho doméstico no Brasil está intimamente associado à herança da escravidão. Durante o período colonial e imperial, mulheres negras escravizadas exerciam funções de limpeza, preparo de alimentos, lavagem de roupas e cuidado de crianças, atividades consideradas extensões do “trabalho natural da mulher” dentro da lógica patriarcal da época. Com a abolição da escravidão, em 1888, não houve políticas públicas voltadas à inserção da população negra no mercado formal de trabalho, o que levou muitas ex-escravas a permanecerem vinculadas às famílias da elite, reproduzindo o mesmo tipo de atividade, mas agora sob condições informais e precárias (MARTINS, 2012).
Essa ausência de políticas de inclusão resultou em um processo de marginalização estrutural, no qual o trabalho doméstico se consolidou como uma ocupação predominantemente feminina e negra, desprovida de reconhecimento jurídico e social. De acordo com Carneiro (2011), esse fenômeno reforça a intersecção entre racismo e sexismo, uma vez que a divisão racial e de gênero do trabalho determinou quais segmentos da população estariam condenados a ocupar postos menos valorizados e mais vulneráveis.
A primeira Constituição brasileira a tratar expressamente de direitos trabalhistas foi a de 1934, fortemente influenciada pelo constitucionalismo social europeu. Ela introduziu garantias como jornada máxima de oito horas, salário mínimo, repouso semanal e férias remuneradas (MARTINS, 2012). Contudo, o trabalho doméstico permaneceu invisível nesse processo, não sendo contemplado pelas normas de proteção.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), promulgada em 1943, representou um marco jurídico na regulamentação das relações de emprego no Brasil. Entretanto, os trabalhadores domésticos foram expressamente excluídos de sua abrangência (BRASIL, 1943), reforçando a percepção de que o serviço realizado dentro do espaço privado da casa não possuía o mesmo valor que o trabalho desempenhado em ambientes industriais ou comerciais. Tal exclusão institucionalizou uma desigualdade que perdurou por décadas, mantendo milhões de trabalhadoras em situação de informalidade.
Mesmo com a promulgação da Constituição Federal de 1988, considerada a “Constituição Cidadã” por ampliar direitos fundamentais e trabalhistas, a categoria das empregadas domésticas continuou a receber apenas proteção parcial. O artigo 7º, ao prever um rol de direitos sociais, destinou às domésticas um tratamento diferenciado por meio de seu parágrafo único, restringindo a extensão de garantias como seguro-desemprego, adicional noturno, FGTS e jornada de trabalho regulamentada (BRASIL, 1988).
Somente com a Emenda Constitucional nº 72/2013 – popularmente conhecida como PEC das Domésticas – houve a equiparação formal de grande parte desses direitos, posteriormente regulamentados pela Lei Complementar nº 150/2015. Esses instrumentos trouxeram inovações como jornada de trabalho limitada, pagamento de horas extras, direito ao FGTS obrigatório, seguro-desemprego e proteção previdenciária (BRASIL, 2013; BRASIL, 2015).
Apesar disso, autores como Guedes, Jannuzzi e Oliveira (2020) apontam que a equiparação legal foi alvo de forte resistência no Congresso Nacional, especialmente sob o argumento de que encareceria os custos para os empregadores domésticos. Essa resistência evidencia o quanto a categoria ainda enfrenta barreiras sociais e econômicas, refletindo a permanência de preconceitos históricos que naturalizam a precarização desse trabalho.
Portanto, a análise histórica demonstra que o trabalho doméstico no Brasil evoluiu de um modelo escravocrata, em que não havia sequer o reconhecimento da condição de sujeito de direitos, para um processo de lenta e gradual inclusão no sistema jurídico. Contudo, a formalização normativa não foi suficiente para superar a herança da desigualdade, que permanece enraizada nas relações sociais e laborais.
2.2. Marcos Legais e a Proteção Jurídica da Empregada Doméstica
A consolidação da proteção jurídica ao trabalho no Brasil foi resultado de um processo histórico marcado por avanços graduais e, ao mesmo tempo, por exclusões significativas. No caso das empregadas domésticas, o reconhecimento pleno de seus direitos somente ocorreu após décadas de lutas sociais, resistência política e enfrentamento de preconceitos estruturais.
A Constituição Federal de 1988 representou um marco de transformação ao instituir um catálogo de direitos trabalhistas no artigo 7º, inspirado no constitucionalismo social e nos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. No entanto, a categoria doméstica não foi imediatamente contemplada com a totalidade dessas garantias, recebendo tratamento diferenciado no parágrafo único do artigo 7º, que restringia o alcance de direitos como FGTS obrigatório, jornada de trabalho, horas extras e seguro-desemprego (BRASIL, 1988). Essa diferenciação, apesar de justificar-se à época sob o argumento da “peculiaridade da relação laboral no âmbito residencial”, perpetuou a marginalização da categoria, mantendo-a em situação de desigualdade.
O avanço decisivo veio com a Emenda Constitucional nº 72/2013, conhecida como PEC das Domésticas, que estendeu aos trabalhadores domésticos praticamente todos os direitos previstos no artigo 7º da Constituição. Entre os direitos assegurados destacam-se: jornada de trabalho limitada a 8 horas diárias e 44 semanais, pagamento de horas extras, adicional noturno, seguro-desemprego, salário-família, FGTS obrigatório, indenização compensatória em caso de dispensa sem justa causa e direito à proteção previdenciária (BRASIL, 2013).
A regulamentação ocorreu com a edição da Lei Complementar nº 150/2015, que detalhou os mecanismos de aplicação prática desses direitos. A LC nº 150 trouxe importantes inovações, como a instituição do Simples Doméstico, sistema eletrônico de recolhimento unificado de tributos e contribuições trabalhistas, facilitando o cumprimento das obrigações legais pelos empregadores. Além disso, consolidou a obrigatoriedade do recolhimento do FGTS e estabeleceu regras claras sobre contrato de experiência, férias, jornada e intervalos (BRASIL, 2015).
A doutrina ressalta que essa equiparação jurídica representa uma concretização do princípio da igualdade material, previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal. Como observa Alexandre de Moraes (2025), o reconhecimento dos direitos das domésticas simboliza a superação de uma concepção limitada de cidadania, que por muito tempo excluiu do rol de direitos fundamentais uma categoria historicamente vulnerabilizada.
Nesse sentido, Canotilho e Moreira (apud MORAES, 2025) defendem que a constitucionalização dos direitos sociais, especialmente os trabalhistas, reflete a opção do Estado Democrático de Direito pela justiça social, reconhecendo o trabalhador subordinado como titular de direitos de igual dignidade.
A jurisprudência brasileira também passou a reforçar esse entendimento. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 5826 (2017), reconheceu a constitucionalidade da obrigatoriedade do recolhimento do FGTS para trabalhadores domésticos, destacando que a medida visa corrigir desigualdade histórica e garantir condições mínimas de dignidade. Já o Tribunal Superior do Trabalho, em reiteradas decisões, tem aplicado os princípios da proteção e da primazia da realidade para assegurar que, mesmo diante da informalidade, a relação doméstica seja reconhecida como vínculo de emprego quando presentes os requisitos dos artigos 2º e 3º da CLT.
Dessa forma, os marcos legais – Constituição de 1988, Emenda Constitucional nº 72/2013 e Lei Complementar nº 150/2015 – não apenas ampliaram o rol de direitos das trabalhadoras domésticas, mas também representaram um compromisso do ordenamento jurídico brasileiro com a valorização do trabalho humano e a promoção da dignidade da pessoa trabalhadora. Contudo, como se verá no próximo tópico, a efetivação desses direitos ainda enfrenta obstáculos práticos que vão além da previsão normativa.
2.3. Desafios para a Efetivação dos Direitos
Apesar dos avanços legislativos conquistados com a Emenda Constitucional nº 72/2013 e com a Lei Complementar nº 150/2015, a efetivação dos direitos das empregadas domésticas permanece um grande desafio no Brasil. O distanciamento entre a previsão normativa e a realidade cotidiana evidencia que a igualdade formal ainda não se traduziu em igualdade material.
Segundo dados do DIEESE (2025), o país contava, no último trimestre de 2024, com aproximadamente 5,9 milhões de trabalhadores domésticos. Desse total, 91,9% eram mulheres e 69% se identificavam como negras. No entanto, apenas 34,3% contribuíam para a Previdência Social, o que demonstra que a maior parte dessa categoria permanece excluída do sistema de proteção social e da possibilidade de aposentadoria digna.
Outro dado alarmante diz respeito à informalidade: 76,4% das trabalhadoras domésticas ainda exercem suas atividades sem registro em carteira. Isso significa que, na prática, a maioria continua privada de direitos básicos como férias remuneradas, 13º salário, FGTS e seguro-desemprego. Essa informalidade reflete tanto a ausência de fiscalização efetiva quanto a persistência de uma cultura social que naturaliza o descumprimento da legislação no ambiente doméstico.
Além da questão formal, há uma forte dimensão de desigualdade salarial. A remuneração média das empregadas domésticas (R$ 1.225,00) é 56% inferior à média das demais mulheres empregadas (R$ 2.783,00). Quando analisado o recorte racial, o abismo se intensifica: mulheres negras domésticas recebem em média R$ 1.150,00, enquanto as não negras alcançam R$ 1.376,00. Esses números confirmam que a vulnerabilidade dessa categoria não pode ser compreendida apenas pelo viés econômico, mas pela interseção entre gênero, raça e classe social (CARNEIRO, 2011).
A falta de fiscalização é outro entrave significativo. O trabalho doméstico ocorre em ambiente privado, geralmente com empregadores pessoas físicas, o que dificulta a atuação dos auditores do trabalho e inviabiliza, em muitos casos, a negociação coletiva. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (BRASIL, 2025), existem apenas 32 sindicatos de trabalhadores domésticos registrados no país, sendo que apenas 22 estão filiados à Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD). Isso significa que em grande parte dos estados brasileiros não há representação sindical efetiva, o que fragiliza ainda mais a defesa coletiva da categoria.
Além disso, o medo da perda do emprego atua como fator desestimulante para a judicialização. Muitas trabalhadoras evitam recorrer à Justiça do Trabalho por receio de retaliações ou pela crença de que o processo será moroso e custoso. Soma-se a isso o desconhecimento de direitos, fruto da falta de campanhas governamentais de conscientização e da ausência de políticas públicas específicas.
Outro aspecto importante é a resistência cultural. O imaginário social ainda enxerga o trabalho doméstico como “auxiliar” ou “natural” da figura feminina, especialmente da mulher negra. Tal percepção desvaloriza a profissão e perpetua estigmas que dificultam sua profissionalização e reconhecimento como trabalho digno. Como lembra Fraser (2008), a justiça social exige não apenas redistribuição de recursos, mas também reconhecimento simbólico, o que implica transformar a forma como a sociedade enxerga determinadas atividades.
Dessa maneira, os principais obstáculos à efetividade dos direitos das empregadas domésticas podem ser sintetizados em quatro eixos:
Informalidade estrutural – maioria sem registro em carteira.
Fragilidade sindical – baixa representação e dificuldade de negociação coletiva.
Falta de fiscalização – ambiente privado limita atuação do Estado.
Barreiras culturais – preconceitos de gênero e raça que desvalorizam a profissão.
Esses desafios demonstram que a legislação, por si só, não é suficiente. É necessário um conjunto de medidas articuladas, envolvendo políticas públicas, fortalecimento sindical, conscientização social e atuação efetiva da fiscalização trabalhista. Somente assim será possível transformar a igualdade formal conquistada em igualdade substancial, rompendo com a histórica invisibilidade dessa categoria.
2.4. A Proteção Jurídica Como Fator de Valorização da Mulher
Assegurar os direitos essenciais do empregado doméstico é fundamental para sua segurança. Além disso, é extremamente relevante para classe social dessas trabalhadoras o reconhecimento de que são uma categoria que tem direitos e garantias legais.
Nancy Fraser (2008) defende que a sociedade deve valorizar o trabalho e o cuidado com igualdade, reconhecendo a importância econômica e social. Importante consignar que no Brasil a garantia da proteção jurídica das empregadas domésticas passou a ser obrigatória recentemente, indo de encontro com o histórico de negligência do Estado e da sociedade.
Houve grandes avanços na legislação nos últimos anos, com a regularização jurídica do trabalho doméstico. Porém, ainda falta a criação de políticas públicas que visem qualificar e orientar trabalhadores sem amparo legal, que ainda exercem suas funções sem carteira assinada. Dessa forma, a discriminação e a equidade entre mulheres e homens no ambiente profissional passa a ser garantidas para todas as classes de trabalho.
Apesar de existirem leis que amparam outros grupos em situação de vulnerabilidade, as trabalhadoras domésticas ainda sofrem com a falta de reconhecimento institucional e com o acesso restrito à proteção efetiva de seus direitos.
De forma a dirimir as desigualdades na atuação judicial, principalmente no que tange a gênero, raça e etnia, foi criada a Resolução nº 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça, determinando que o Judiciário considere a perspectiva de gênero nas decisões, além da criação de um Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário:
Art. 2º Os tribunais, em colaboração com as escolas da magistratura, promoverão cursos de formação inicial e formação continuada que incluam, obrigatoriamente, os conteúdos relativos aos direitos humanos, gênero, raça e etnia, conforme as diretrizes previstas no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, os quais deverão ser disponibilizados com periodicidade mínima anual. [...]Art. 3º Fica instituído, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário, em caráter nacional e permanente. (BRASIL,2023)
Isso ilustra como normas podem tornar a atuação judicial mais atenta às desigualdades que moldam as identidades sociais, principalmente em torno dos trabalhadores domésticos que em grande maioria são formados por esses grupos minoritários.
3. METODOLOGIA
A presente pesquisa adota uma abordagem qualitativa, por meio da qual se busca compreender e explorar, de maneira aprofundada, os aspectos teóricos e práticos relacionados ao tema proposto. Quanto à natureza, trata-se de uma voltada à ampliação do conhecimento teórico existente sobre a matéria. Em relação aos objetivos, configura como uma pesquisa exploratória, pois procura oferecer um entendimento mais aprofundado sobre a questão da informalidade e da aplicação real dos direitos dos trabalhadores nesse grupo.
Para elaboração do trabalho, foram utilizados o levantamento bibliográfico, compilando trabalhos de autores renomados e atuais no campo do Direito do Trabalho e da Sociologia, - como Sérgio Pinto Martins, Alexandre de Moraes e Nancy Fraser. Em segundo lugar, optou-se por pesquisa documental, examinando detalhadamente as legislações pertinentes (a Constituição Federal de 1988, a Emenda Constitucional nº 72/2013 e a Lei Complementar nº 150/2015), bem como relatórios governamentais pesquisas do DIEESE e do Ministério do Trabalho e Emprego). O critério de seleção do material pautou-se na relevância e na proximidade com a temática abordada, priorizando fontes atualizadas e reconhecidas no meio acadêmico.
De acordo com Gil (2019), a pesquisa bibliográfica se baseia em materiais já publicados, a exemplo de livros e artigos acadêmicos. Já a pesquisa documental utiliza fontes que não foram analisadas previamente ou que podem ser revistas, dependendo das metas do pesquisador.
As plataformas utilizadas para a busca dos materiais foram: SciELO, Catálogo de Teses e Dissertações, jornais, e Google Acadêmico, onde foram identificadas produções científicas, artigos, notícias, livros e trabalhos pertinentes ao objeto de estudo.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
A análise realizada demonstrou que, apesar dos avanços jurídicos conquistados nas últimas décadas, as trabalhadoras domésticas ainda enfrentam profundas desigualdades nas relações de trabalho. Essas desigualdades manifestam-se especialmente quando comparadas a outros segmentos de trabalhadores formais, tanto em termos de acesso a direitos quanto de reconhecimento social e valorização econômica.
De acordo com dados recentes do Ministério do Trabalho e Emprego (2025), o número de vínculos formais no setor doméstico caiu 18% entre 2015 e 2024, passando de 1,64 milhão para 1,34 milhão. Esse dado destoa das expectativas criadas com a promulgação da Lei Complementar nº 150/2015, que buscava incentivar a formalização da categoria. A queda na formalização demonstra que a legislação, embora necessária, não é suficiente para alterar práticas enraizadas, sobretudo diante da resistência de empregadores em arcar com encargos trabalhistas e da falta de fiscalização adequada.
A informalidade permanece como o maior entrave. Segundo o DIEESE (2025), 76,4% das trabalhadoras domésticas exercem suas atividades sem carteira assinada, estando privadas de direitos básicos como férias, 13º salário, FGTS e aposentadoria. Esse índice evidencia que a realidade ainda está distante do ideal de igualdade material preconizado pela Constituição de 1988 e reafirma que, no Brasil, há uma diferença entre direitos previstos em lei e sua efetiva aplicação.
Além da informalidade, há também um expressivo abismo salarial. A remuneração média das domésticas (R$ 1.225,00) é 56% inferior à média recebida por outras mulheres no mercado formal (R$ 2.783,00). Quando se introduz o recorte racial, a desigualdade se agrava: as mulheres negras recebem, em média, R$ 1.150,00, enquanto as não negras alcançam R$ 1.376,00. Esses números reforçam a análise de Carneiro (2011) sobre o impacto da interseção entre gênero, raça e classe social, que condena mulheres negras a posições historicamente precarizadas e desvalorizadas.
Outro aspecto que merece destaque é o impacto da precarização sobre a saúde e a qualidade de vida. De acordo com pesquisa realizada pela Secretaria Nacional da Política de Cuidado e Família em conjunto com a OIT (FOLHA DE S. PAULO, 2025), cerca de 70% das trabalhadoras domésticas relataram exaustão contínua, causada pelo excesso de responsabilidades e pela ausência de tempo e recursos para cuidar de si mesmas e de suas famílias. Esses dados revelam como a desigualdade ultrapassa a dimensão econômica e atinge o campo do bem-estar físico e emocional, perpetuando a condição de vulnerabilidade social.
Tais elementos confirmam a reflexão de Fraser (2008): não basta redistribuir recursos financeiros (como salários ou benefícios); é necessário também garantir reconhecimento social e cultural ao trabalho doméstico, rompendo com a visão de que essa atividade é “menor” ou “natural” das mulheres. O fato de ser um trabalho realizado em espaço privado, longe da visibilidade social e sindical, contribui para a perpetuação da sua invisibilidade e dificulta a organização coletiva da categoria.
A ausência de sindicatos fortes e de ampla cobertura sindical é outro desafio. Segundo o Ministério do Trabalho (BRASIL, 2025), apenas 32 sindicatos de trabalhadores domésticos estão registrados no país, e somente 22 possuem vínculo com a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD). Isso significa que, em grande parte do território nacional, a categoria não conta com representação organizada, o que enfraquece sua capacidade de reivindicação e dificulta a negociação coletiva.
Por fim, é importante destacar o papel do Judiciário e da fiscalização estatal. Embora a legislação tenha avançado, a efetividade dos direitos depende da atuação de órgãos de inspeção e do Judiciário trabalhista. A Resolução nº 492/2023 do CNJ, que introduziu a perspectiva de gênero nas decisões judiciais, é um passo relevante para garantir maior sensibilidade às desigualdades estruturais. Contudo, ainda há grande distância entre a norma e sua aplicação cotidiana nos tribunais, especialmente diante da baixa judicialização de conflitos trabalhistas no setor doméstico, em razão do medo da perda do emprego e da falta de conhecimento das trabalhadoras sobre seus direitos.
Em síntese, os resultados evidenciam que a efetividade da legislação trabalhista para as domésticas está condicionada a fatores que transcendem o texto normativo. É preciso enfrentar a informalidade estrutural, a discriminação de gênero e raça, a fragilidade sindical e a ausência de fiscalização, para que a igualdade formal prevista em lei se converta em igualdade real no cotidiano das trabalhadoras domésticas.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo evidenciou que a proteção jurídica das empregadas domésticas constitui um elemento central para a valorização da profissão e para a promoção da igualdade no mercado de trabalho. A equiparação de direitos com os demais trabalhadores formais, alcançada especialmente após a Emenda Constitucional nº 72/2013 e a Lei Complementar nº 150/2015, representa um marco histórico na luta contra a exclusão social e jurídica dessa categoria. Ao conferir às trabalhadoras domésticas acesso a garantias como FGTS, seguro-desemprego, jornada regulamentada e proteção previdenciária, o ordenamento jurídico brasileiro deu um passo importante no sentido de corrigir injustiças históricas e afirmar a dignidade humana dessas profissionais.
Contudo, a análise demonstrou que a mera existência de dispositivos legais não é suficiente para assegurar a plena efetividade desses direitos. Persistem obstáculos estruturais que limitam a concretização da igualdade material, tais como: a informalidade ainda predominante, a ausência de fiscalização eficaz, a fragilidade das organizações sindicais e, sobretudo, os preconceitos sociais profundamente enraizados que continuam a desvalorizar o trabalho doméstico. Tais barreiras revelam a distância entre o avanço normativo e sua aplicação prática, reforçando a necessidade de uma atuação integrada do Estado e da sociedade civil.
Nesse cenário, a proteção legal deve ser compreendida como ponto de partida, e não como ponto de chegada. Para que os direitos conquistados saiam do plano abstrato e ingressem na realidade cotidiana das trabalhadoras, é imprescindível que sejam acompanhados por políticas públicas eficazes. Entre essas medidas, destaca-se a criação de estratégias modernas de fiscalização, que podem se valer da tecnologia e da análise de dados cruzados a fim de identificar irregularidades e combater o trabalho sem carteira assinada.
Da mesma forma, a atuação sindical tem papel essencial. Além da defesa coletiva, os sindicatos podem contribuir por meio de ações educativas, oferecendo cursos de capacitação e orientação jurídica, especialmente voltados à conscientização sobre direitos trabalhistas e previdenciários. Esses cursos devem considerar, ainda, a realidade socioeconômica de grande parte das trabalhadoras, com a inclusão de informações sobre gratuidade de justiça e acesso facilitado aos mecanismos de denúncia, elementos fundamentais para estimular a judicialização de casos de descumprimento da lei.
Outro aspecto indispensável é a implementação de políticas sociais de apoio, com destaque para a expansão da rede de creches e escolas em tempo integral. Tais políticas não apenas aliviam o peso da jornada dupla enfrentada por muitas trabalhadoras, como também ampliam suas oportunidades de inserção no mercado formal e de ascensão social. Ao mesmo tempo, reforçam a corresponsabilidade do Estado e da sociedade no cuidado, rompendo com a lógica de que esse encargo deve recair exclusivamente sobre as mulheres.
Por fim, é necessário promover uma mudança cultural profunda. A valorização do trabalho doméstico passa não apenas pela garantia de prerrogativas jurídicas, mas pela transformação da forma como a sociedade a enxerga. É urgente abandonar a visão de que o serviço familiar é “insignificante” ou “dispensável” e reconhecê-lo como atividade essencial à vida coletiva e ao funcionamento da economia. Esse processo de reconhecimento simbólico é tão importante quanto a redistribuição de direitos, pois contribui para superar discriminações históricas e construir uma cultura de equidade.
Assim, a proteção jurídica das empregadas domésticas deve ser entendida como parte de um projeto maior de justiça social, no qual se conjugam legislação eficaz, políticas públicas inclusivas, atuação sindical fortalecida e transformação cultural. Somente por meio dessa conjugação será possível garantir que essas trabalhadoras não apenas tenham direitos reconhecidos no papel, mas que os vivenciem plenamente em seu cotidiano, alcançando, de fato, a cidadania plena e a dignidade que lhes é devida.
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1 Graduanda do Curso de Direito da Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim (FDCI). E-mail: [email protected].
2 Mestre em Políticas Públicas pela EMESCAM - Vitória. Professor Universitário. Possui graduação em Direito - FEVIT (2009). Atualmente é advogado administrador - Real e Cereza Advogados Associados com especialidade em Direito Previdenciário, Tributário e Trabalho. Especialista em Direito Previdenciário e Trabalho pela Verbo Jurídico. Ex-Presidente da Comissão de Direito Previdenciário da OAB/ES 2022-2024. Coordenador Estadual do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário.