A IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM NA LUTA ANTIRRACISTA

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12697321


Daniane Rafaela de Oliveira1


RESUMO
Falar sobre a história e a cultura negra implica, também, considerar os usos sociais da linguagem. Nesse sentido, tomo como referência alguns aspectos da visão bakthiniana de linguagem, para mostrar particularidades dos discursos, avaliando o lugar e a posição ocupados pelos sujeitos. A linguagem está atravessada pelas relações de poder e pelas relações de alteridade, portanto, ela age sobre o outro. Ela é social e produz significados e sentidos compostos por ideologias, identidades e jogos de poder. Desse modo, este trabalho reflete sobre as ideologias linguísticas e o racismo, entendendo que a linguagem contribui com a modelagem de sujeitos sociais, sendo uma grande aliada da luta antirracista.
Palavras-chave: Linguagem. Ideologias. Racismo. Antirracismo.

ABSTRACT
Discussing black history and culture also implies considering the social uses of language. In this sense, I take as a reference some aspects of Bakhtin's view of language, to show particularities of discourses, evaluating the place and position occupied by subjects. Language is permeated by power relations and relations of otherness, therefore, it acts on the other. It is social and produces meanings and senses composed of ideologies, identities and power games. Thus, this work reflects on linguistic ideologies and racism, understanding that language contributes to the modeling of social subjects, being a great ally in the anti-racist struggle.
Keywords: Language. Ideologies. Racism. Anti-racism.

1. INTRODUÇÃO

Este ensaio, cujo nome é “A importância da linguagem na luta antirracista” e tem como foco a relação da linguagem com as questões raciais. Ele está inserido na Linguística Aplicada, que considera a atividade de pesquisa algo voltado à valorização, à heterogeneidade, à fragmentação e à mutabilidade do sujeito social (Moita Lopes, 2018), sendo assim, contempla a possibilidade política de construção de outras histórias e de outras formas de sociabilidade.

Uma vez que, para a Linguística Aplicada Interdisciplinar, as vidas consideradas marginalizadas, do ponto de vista dos atravessamentos identitários, devem ser colocadas no centro. Sobre isso, Moita Lopes (2018) mostra a preocupação em fazer com que as áreas de investigação abracem um projeto ético de renovação ou de reinvenção de nossa existência e que sejam diferentes de muitas tradições que separam a produção do conhecimento do ser social.

Segundo Gonçalves de Jesus e Costa (2017), no Brasil, o racismo se molda de acordo com o contexto com o contexto histórico e permace como instrumento de dominação. Assim, é preciso refletir sobre as ações que emergem da relação de produção entre capital e trabalho e sobre como as especificidades sócio-históricas do Brasil se concretizam. Uma vez que os processos de produção e sócio-históricos e constituíram as posições sociais para negros e brancos. Dessa forma, não há como separar o racismo da realidade social, histórica e economica do país, pois o racismo produz desigualdades.

Desse modo, enquanto pesquisadora da Linguística Aplicada, analisar a linguagem e a luta antirracista é algo de grande valor, uma vez que, além de atuar como professora de língua portuguesa, também sou uma mulher negra, portanto, são duas questões que me atravessam. E dentro desse lugar a luta antirracista está implicada em minha vida. Sempre olho para o pensamento de bell hooks (2017), que em sua trajetória escolar como professora, mulher, negra, ativista, escritora reconhecida, fez elos entre pedagogia crítica e budismo engajado, pensamento feminista, erotismo, sexualidade e embates de classe social em sala de aula, entre outros temas que pudessem surgir dessa interação.

Segundo Moita Lopes e Fabrício (2019), a Linguística Aplicada apresenta uma abordagem crítica, cujo centro é a reflexão de língua e linguagem que se oponha a certezas epistemológicas e que vá em direção do enfrentamento dos inúmeros acasos que compõem a vida social. É, preciso, então, pensar a linguagem como algo vinculado ao corpo e ao mundo social. Assim, o racismo em suas diferentes formas, também, está relacionado à linguagem. A “maneira como lidamos com línguas tem a ver como reproduzimos as visões sobre as pessoas negras”. (Nascimento.2022, p. 320).

2. A LINGUAGEM E A COLONIALIDADE

No período do final dos anos 1980 e início dos anos 1990, o sociólogo peruano Anibal Quijano introduziu o conceito de “colonialidade”, dando um outro sentido ao termo colonialismo, que segundo Mignolo e Oliveira (2017) foi compreendido durante a Guerra Fria junto com a compreensão do que é a descolonização. A colonialidade sustenta os desdobramentos da lógica da civilização ocidental constituída pelo ‘colonialismo histórico’. Desse modo, Quijano (1997) trouxe o conceito de colonialidade como algo para se analisar aquilo que vai além do colonialismo histórico, pois, não desaparece com a independência e a descolonização. Ou seja, o conceito de colonialidade elucida os desdobramentos sociopolíticos consoantes ao desenvolvimento de uma sociedade moderna e capitalista.

De acordo com Veronelli e Daitch (2021), a colonialidade traz uma classificação básica sobre raça extensiva a toda população, sendo ela, algo fundamental para produzir entre as pessoas uma conexão baseada nos sentidos de superioridade e inferioridade de maneira a-histórica e natural. Desse modo, a colonialidade consegue naturalizar as relações de superioridade e inferioridade sem nenhum questionamento maior e mais profundo e a importância de pensarmos nela é a de analisarmos a quais relações pertencemos, ainda, uma vez que, vivemos em uma sociedade estruturada pelas ações da colonialidade.

Podemos perceber que a colonialidade, então, provoca muita influência no mundo em nossa volta, inclusive na linguagem, podendo tê-la como uma grande aliada, já que, ela faz com que os sentimentos, os pensamentos, as emoções sejam modelados. É preciso problematizar as práticas de linguagem entendendo-a como instrumento que cria inteligibilidades.

Indaga-se, desse modo, acerca de como a colonialidade condiciona o que se considera como língua humana na sua acepção plena, como as classificações da população em raças superiores e inferiores por natureza vem, em parte, acompanhada de representações de suas ferramentas de expressão igualmente em termosde superioridade e inferioridade naturais. (Baptista. 2022, p.54)

Quando o assunto é a linguagem, vale ressaltar que ela é essencial no tocante aos aspectos mais importantes da cultura de uma nação ou mesmo de um pequeno grupo de habitantes. Ela faz parte dos processos que levam a difusão de signos e símbolos relativos à cultura. Isto pressupõe que a linguagem é constituída, essencialmente, pela interação, sendo que, tal interação é primordial ao revelar o seu caráter social. Para Bakhtin (1999), a linguagem nunca está completa, ela é uma tarefa, um projeto sempre inacabado. Desse modo, a linguagem não pertence ao falante unicamente, é necessário considerar o papel do “outro, pois, ela está penetrada em todas as relações sociais, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, entre outros.

Segundo Nascimento (2019) há séculos a linguagem é representada como um fetiche para o mundo ocidental e isso vai além da normatização e idealização das línguas nacionais baseadas no mundo brancocêntrico greco-latino, mas pela própria reprodução da linguagem na modernidade mediada por uma ideia do projeto romântico, liberal, cristão e idealista das línguas nacionais europeias. Essa idealização foi utilizada para criar uma definição para o mundo todo, com conceitos operados a partir da Europa, isso mostra o quanto o mundo colonizador influencia a nossa cultura como um todo e a nossa língua. Assim, não se pode separar a linguagem das influências da colonialidade.

No Brasil, o processo histórico de colonização colaborou para construções sociais que mantêm essas desigualdades e o status quo da elite branca. A “colonialidade” é a reprodução das relações coloniais mesmo com o fim do colonialismo. Ela se expressa em uma dominação ideológica e está baseada na ideia de raça, desumanização dos não-brancos usada pelas elites eurocêntricas para justificar a desigualdade e exploração no trabalho. (Freitas; Santos; Jacinto. 2022, p. 48)

Para Bakhtin (2011), o homem se constrói por meio da linguagem. A linguagem, a forma de falar e de escrever, são implicados com o modo de pensar e agir sobre o mundo, por isso a relação do colonialismo com a linguagem e consequentemente com a sociedade deve ser analisada e investigada. Quijano (2007) ao explicar o padrão de poder capitalista global-autocentrado, coloca a presença de dois eixos articuladores: colonialidade e modernidade. Nesse sentido, as significações e as formas de controle e dominação feitas nos espaços e experiências sociais seriam organizadas por esses eixos. É por meio da colonialidade que uma classificação básica e universal da população mundial é introduzida e a invenção da raça é fundamental para a transformação das relações de superioridade e inferioridade.

A colonialidade é um fenômeno que atravessa todas as pessoas e os aspectos da existência social, durante a distribuição das hierarquias, lugares e papéis sociais e diferenciada geograficamente. A modernidade acaba se tornando uma grande aliada do capitalismo global eurocêntrico, pois é um universo específico ancorado por relações intersubjetivas de dominação correspondente às estruturas hegemônicas das instituições europeias brancas.

Sabemos que a linguagem pode estar a serviço do colonizador, uma vez que ela também é uma forma de pensar, de ser e de estar no mundo. Segundo Fanon (2020), os negros, por possuírem um sentimento de inferioridade, acabam desejando seguir os modos de vida dos europeus e isso se expande na linguagem. O colonizador é visto como o evoluído e detém um controle incessante do lugar de inferioridade do negro. Desse modo, o negro, na tentativa de chegar na posição de igualdade, acaba por apropriar-se dos hábitos e características dos brancos por meio da utilização de roupas, móveis e formas europeias de trato social.

Quijano (2010) define o colonialidade como uma estrutura de dominação/exploração onde prevalece o controle da autoridade política, da produção, do trabalho, de determinada população causando o domínio de outras identidades diferentes. Deve-se destacar que para o autor, quando pensamos numa perspectiva sob o olhar da colonialidade refletimos sobre três aspectos: colonialidade do poder, do saber e do ser, em que são fatores estruturantes da sociedade moderna e produtores de desigualdades. Portanto, a colonialidade traz exclusão e desigualdade às pessoas, desse modo devemos ressaltar a forma como acontece o acesso e a distribuição do saber, uma vez que vivemos numa realidade em que o conhecimento vem sido para poucos com forma de manutenção eurocêntrica.

A colonialidade do saber se organiza em conhecimentos e legitima a razão eurocêntrica como universal, ocultando por assim dizer, de forma natural outros conhecimentos racionais que não fazem parte da epistemologia eurocêntrica, legitimando a referência do caráter eurocentrado em que se desenvolvem a construção curricular brasileira e as demandas dele advindas. Quando pensamos a colonialidade do ser engendrada no campo educacional, encontramos um currículo e materiais didáticos da educação básica que invisibilizam o protagonismo civilizatório e histórico do povo negro na construção desse pais, abordando a história africana e afro-brasileira a partir da mercantilização e escravização de negras e negros, com imagens de correntes, açoites e todo o tipo de humilhação sofrida na escravidão, sem considerar a influência de literários, abolicionistas, juristas, intelectuais, cientistas, médicos, engenheiros, jornalistas negras e negros que atuam em diversas áreas neste país. (Oliveira; Gomes. 2019, p. 21)

Pensar na colonialidade do saber é também pensar nas situações de poder que afeta a linguagem e consequentemente, as identidades, as línguas e os sujeitos. A linguagem é, além de uma ferramenta de comunicação, um lugar de ação e interação, assim o sujeito, a ação, as situações de interação e os contextos constituem a linguagem. Portanto, não podemos desconsiderar que a linguagem dá existência à raça, pois, ela constitui as denominações de si e do outro de forma política, ideológica e socialmente determinada.

Contemporaneamente, a perspectiva colonial de conhecimento, caracterizada por uma relação hierarquizada de saberes e de produção de conhecimento, que passou a assinalar, de forma binária, saberes de ordem superior e inferior, respectivamente, dominantes e subordinados ou subalternizados, se vê confrontada como perspectiva única e legítima de conhecimento, sobretudo por meio de uma crítica do processo histórico de silenciamento e de violência epistêmica erigido na modernidade/colonialidade e consolidado a partir do colonialismo. (Baptista. 2019, p.125)

Corpos nascem, também, da linguagem e adquirem existência devido ao reconhecimento de outros. Segundo Butler (2018) a existência de alguém ocorre pela capacidade de ser reconhecível e não apenas por ser reconhecido, por isso deve-se ter responsabilidade quanto aos resultados que nossos discursos podem fazer. Assim, estudar a linguagem é essencial para a compreensão do funcionamento das performances naturalizadas pelos discursos.

Pensar na performatividade é refletir sobre o agir com e pela linguagem, sem deixar de considerar os efeitos sociais que essas ações produzem no mundo. Com a teoria Austiana direcionamos um olhar de desvalidação da linguagem como algo neutro e vamos para uma dimensão o qual, o falar está relacionado ao existir para o mundo e a fazer com que o mundo exista para você, por meio de ações e de resultados.

Mas, os resultados, as consequências dos atos de fala, segundo a noção do uptake, não são de domínio pleno do falante: dependem também da apreensão daquele(s) com quem se interage, da propriedade que temos (ou não) para realizar cada ato; elementos que vão construindo uma visão de linguagem opaca, imprecisa, que também não depende apenas do sujeito e suas subjetividades, mas de um contexto de interação. Nesse sentido, os discursos não são mais entendidos como produtos, mas processos; mais modos de ação do que reprodução. (Araújo; Muniz. 2016, p. 28)

A linguagem é social e se constitui como um processo que produz efeitos infinitos, uma vez que nada é por acaso nos significados e sentidos produzidos dentro do contexto de interação, sendo sempre atravessados por ideologias, identidades e jogos de poder. Para Fanon (2020) em “Pele Negra, Máscaras Brancas”, o falar vai além do emprego de determinada sintaxe e do ato de se apossar da morfologia, mas também, é assumir uma cultura e carregar o peso de uma civilização. Assim, quando se possui a linguagem, se possui também um mundo manifestado por ela, o que torna necessário a todo ser colonizado se confronte com a linguagem, uma vez que, o colonizado é tido como aquele que quanto mais se aproximar dos valores culturais da metrópole mais se evadirá da própria selva.

A linguagem não é que algo que possa se distanciar das construções sociais. Consoante a isso, para a concepção bakhtiniana, “a linguagem encarna e abre acesso às várias fases da experiência humana.” (Renfrew.2017, p. 16). A linguagem para Bakhtin está relacionada as variadas formas de experiência humana e esse pensamento fez com que Bakhtin e seus colaboradores apresentem uma teoria que busca uma compreensão mais profunda sobre o assunto. Sua teoria gira em torno da enunciação como marca de uma língua viva que se opõe às regras da língua como sistema.

Uma língua unitária não é algo dado, mas é sempre , essencialmente, algo proposto/postulado__ e em cada momento de sua vida ela se opõe às realidades da heteroglossia[...] Estamos tornando a língua não como um sistema de categorias gramaticais abstratas, mas, ao contrário, a língua não como concebida como ideologicamente saturada, língua como uma visão de mundo, mesmo como uma opinião concreta, garantindo o máximo de compreensão mútua em todas as esferas da vida ideológica. Assim, uma língua unitária dá expressão a forças que operam na direção da unificação e centralização sociopolítica e cultural. (Bakhtin. 1981, p. 270)

Portanto, a linguagem é uma atividade social, situada, ligada à interação e às formas de comunicação. Contudo, quando relacionamos a linguagem à colonialidade estamos, também, considerando a complexidade e as interações da vida social e cultural que ditam o lugar e a posição que os sujeitos devem ocupar.

2.2. CONTRIBUIÇÕES BAKTHINIANAS

Segundo Renfrew (2018), Mikhail Mikhaiovich Bakhtin (1895-1975) foi o pensador mais frutífero nas ciências humanas vindo da Rússia Soviética e um dos mais significativos teóricos da literatura no século XX. A linguagem é o fenômeno que reveste e liga os diversos elementos da obra de Bakhtin abrindo aproximação às várias fases da experiência humana como, no contexto do dia a dia, na fala de pessoas reais, ou na de pessoas menos reais que seriam os heróis e autores bakthiianos e nas obras literárias.

A relevância de trazer Bakhtin para esse trabalho está no fato de que a teoria dialógica do discurso se tem apresentado rica no desenvolvimento de várias noções que se referem ao estudo da linguagem e essa reflexão pode ser observada na dimensão com que Bakhtin se dedica ao funcionamento da língua. Com base no que foi já foi dito a cima, trago alguns conceitos do Círculo de Bakhtin, pois quando o assunto é linguagem, é fundamental compreender as principais contribuições desse círculo, as quais trazem uma boa base teórica para essa pesquisa. Para Bakhtin, a linguagem é imbuída de significação material e o signo,

é uma unidade material discreta, mas a significação não é uma coisa e não pode ser isolada do signo como se fosse uma realidade independente, tendo uma existência à parte do signo. É por isso que, se a atividade mental tem um sentido, se ela pode ser compreendida e explicada, ela deve ser analisada por intermédio do signo real e tangível (Bakhtin. 1999, p. 51).

A linguagem para o Círculo de Bakhtin é compreendida como atividade concreta, portanto, é diferente da concepção da concepção abstrata estruturalista de Ferdinand Saussure. Segundo Brait (2016) a obra bakhtiniana não pode ser entendida nem como uma proposta de análise do discurso formal, nem como uma crítica radical à Linguística e ao seu objeto de estudo. Apesar de Bakhtin ter sido conhecido no Ocidente pela teoria literária e cultural nos anos 1970, 1980 e 1990, seu pensamento caminha em uma direção diferente de tradição hermenêutica presente nos paradigmas teóricos como, o estruturalismo, o marxismo, a psicanálise e a desconstrução.

Estes paradigmas, contudo, por conta de todos os muitos e profundos modos em que divergem e até se contradizem, estão conectados por uma característica comum: são, todos eles, amplamente hermenêuticos, isto é, todos eles supõem a existência de outro “texto” abaixo da superfície ou nos interstícios do texto ou discurso sob interpretação. O sentido de todo enunciado foi cada vez mais encarado como jazendo num lugar abaixo ou além da intenção de superfície de seu enunciador ou autor – a ponto de a presença real de um autor de uma obra literária ou de um “sujeito” de discurso ser questionada. Já para Bakhtin, porém, a presença e a autoconstituição do sujeito falante (por vezes, é claro, um autor) jaz no núcleo de todo processo de entendimento humano, esse é o âmago inalienável de seu pensamento. (Renfrew. 2018, p. 14 e 15)

Os principais membros do Círculo são: Mikhail Bakhtin (1895-1975), Valentin Volóchinov (1895-1936) e Pável Medviédev (1892-1938). Segundo Coelho (2022) os três estudiosos russos se uniram, possivelmente, na Universidade de Petrogrado. Eles estavam vivenciando um tempo em que era comum a criação de Círculos para estudos e produções e antes de irem para o Seminário Kantiano, o qual ficou conhecido como círculo de Bakthtin, também, participaram de outros grupos.

A relação entre a produção de sentidos e o diálogo entre interlocutores foram duas contribuições filosóficas e sociológicas importantes do Círculo, pois nelas podemos ver que o sentido se constrói na interação entre os interlocutores, por meio de enunciados concretos. Portanto, a linguagem e a sociedade são inseparáveis, uma vez que a comunicação discursiva se dá pelos enunciados que circulam socialmente. Desse modo, o meio social, o qual circula o sujeito, formará a linguagem. E a linguagem por sua vez deve se preocupar com a interação verbal.

Segundo Volóchinov (2018) é no exterior que está o centro organizador de qualquer enunciado, de qualquer expressão e não no interior. Ou seja, é no meio social que circunda o indivíduo que os enunciados são organizados. Assim, para existir sentido é necessário que exista interação e essa interação acontece por meio de enunciados construídos numa relação interna com os elementos extraverbais (história, tempo, espaço) da prática de linguagem em que estão inseridos. De acordo com Tilio e Schlude (2020) o autor citado acima se opôs à psicologia social da época, considerando-a metafísica, ao alicerçar seu método e reforça-lo como primeira perspectiva para a delineação sociológica.

Para Volóchinov (2018) a palavra funciona como uma ponte ligando o eu ao outro, pois ela apoia uma das extremidades no locutor e a outra no interlocutor. É na palavra que circulam o falante e o interlocutor. O enunciado é uma conexão que se constitui e é constituído pela interação entre sujeitos e entre discursos. Assim, o desenvolvimento do diálogo entre sujeitos e entre discursos se dá por meio do enunciado e, ao mesmo tempo, o diálogo dá sentido aos enunciados produzidos.

A interação depende da compreensão e para que isso aconteça os sentidos precisam ser produzidos por todos os sujeitos, por isso é importante analisar a situação enunciativa e o contexto histórico e social. A situação em que os enunciados são produzidos é importante porque é o que constitui um enunciado. Vale ressaltar que “todas essas formas de interação discursiva estão estreitamente ligadas às condições de dada situação social concreta, e a reagem com extrema sensibilidade a todas as oscilações do meio social” (Volochínov, 1929 [2017, p. 107-8]).

Isso está ligado, também, a relação do enunciado com o tempo e com o espaço, uma vez que para Volochinov (2019, p.121) “todo enunciado cotidiano é um entimema objetivo social”. É como se fosse uma ‘senha’, conhecida apenas por aqueles que pertencem ao mesmo horizonte social”.

Por exemplo, um enunciado produzido em um século X e em um lugar Y pode não ser compreendido da mesma forma por um sujeito que tenha acesso a esse enunciado em um século Y e em um lugar X. A localização espaço- temporal do enunciado também nos dá insumos para produzir sentidos, por isso é importante contextualizá-los. Isso não significa que dois sujeitos inseridos no mesmo espaço e no mesmo tempo compreendem os enunciados da mesma forma, pois se os sentidos não forem igualmente produzidos por todos os envolvidos na situação de enunciação, a interação não ocorre. (Coelho. 2022, p. 38)

É importante destacar também que a interação não estabelece relação somente com o tempo e com o espaço do momento presente em que um enunciado se realiza, mas que sofre influência de épocas e de lugares diferentes. É na interação que acontece a relação entre sujeitos, é nela que acontece a interlocução, por isso ela traz o fundamento do sentido, ao mesmo tempo em que é da interlocução que vem o sentido. Assim, a interação não é só o que acontece no momento atual da fala: ela vai da conversa face a face à relação entre sujeitos de lugares distintos e mesmo de épocas distintas. Dessa forma, para Bakhtin, (2003, p. 272), “o enunciado é um elo na cadeia complexamente organizada de outros enunciados”.

O dialogismo é o início da constituição da linguagem acontece sempre entre discursos. É importante destacar que as relações dialógicas de Bakhtin se localizam em contínuos embates de posições axiológicas. Ou seja, os sujeitos envolvidos no enunciado atribuem valores à linguagem por meio de um posicionamento ideológico. Em vista disso, “[...] todo enunciado emerge sempre e necessariamente num contexto cultural saturado de significados e valores e é sempre um ato responsivo, isto é uma tomada de posição.” (Faraco. 2009, p.25).

Falar sobre o dialogismo é falar de uma constante comunicação com o outro. Uma comunicação pressuposta por uma propriedade polivalente, cujo o processo não comporta observações estanques. A comunicação dialógica é o que dá vida à linguagem fazendo a materialidade do discurso. É a comunicação de sentidos que dá existência à linguagem. Ou seja, a linguagem se realiza num constante movimento comunicativo entre os sujeitos em um constante vir-a-ser, pois, não apresenta um fim e configura uma inconclusividade dentro de uma pluralidade de sentidos.

Outra questão importante a se pensar sobre o Círculo para a sociologia do discurso é o conceito de ideologia. O conceito de ideologia foi descrito como, “entendemos por ideologia todo o conjunto de reflexos e refrações no cérebro humano da atividade social e natural, expressa e fixada pelo homem na palavra, no desenho artístico e técnico ou em alguma outra forma sígnica”. (Volóchinov. 2019, p.243). O círculo trouxe, então, o pensamento ideológico para a linguagem, pois mostra que as práticas de linguagem refletem e refratam as ideologias dos sujeitos da interação discursiva. Nesse sentido, as práticas de linguagem são ideológicas por natureza.

Com base nisso e voltando-nos para a prática de discriminação racial realizada por meio do discurso racista, a ideologia racista, então, pode ser colocada nos gestos de interpretação. Já que a produção do discurso materializa verbalmente as posições axiológicas, que são desveladas como vozes sociais (Bakhtin; Volochinov. 2006). São esses valores ideologicamente constituídos que definem o discurso na interação, “[...] vozes sociais, em confronto no horizonte dialógico, se constituem a partir da relação com vozes anteriores e, por sua vez, dirigem-se a outras vozes, ou seja, suscitam uma resposta” (Sipriano; Gonçalves. 2017, p. 65).

Os signos ideológicos são produtos da história humana que refletem e difundem a vida social. De acordo com Volóchinov (2018, p. 91), podemos afirmar que “qualquer produto ideológico é não apenas parte da realidade natural ou social [...] mas também, reflete e refrata outra realidade que se encontra fora dos seus limites”. Portanto, o produto ideológico reflete e refrata outras realidades além da vivenciada pelos sujeitos do enunciado.

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1 Mestranda em Linguística Aplicada Interdisciplinar do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e-mail: [email protected]