A EXECUÇÃO PENAL E A REINTEGRAÇÃO DO CONDENADO: ANÁLISE DO ART. 1º DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL SOB A PERSPECTIVA DE SUA EFETIVIDADE
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17479625
Luiza Surce Souza1
Lorena Borsoi Agrizzi2
RESUMO
A presente pesquisa analisará a possível contradição entre a promessa normativa de reintegração social do condenado e a realidade excludente do sistema penitenciário brasileiro. O objetivo central consiste em examinar, à luz do artigo 1º da Lei de Execução Penal (Lei nº. 7.210/1984), de que modo a finalidade ressocializadora da pena se apresenta na teoria e se frustra na prática, em virtude de um modelo de encarceramento centrado na punição. A visão punitivista ainda se sobrepõe ao caráter ressocializador, de modo que, em grande parte dos casos, a execução da pena se limita a uma perspectiva de contenção e repressão, negligenciando sua função constitucional e legal de possibilitar ao condenado um retorno digno ao convívio social. Para tanto, adotou-se uma metodologia qualitativa, exploratória e descritiva, com abordagem dedutiva, utilizando-se pesquisa bibliográfica e documental em legislações, jurisprudências, relatórios de órgãos oficiais e 11 artigos acadêmicos selecionados por sua relevância científica.
Palavras-chave: Execução Penal; Ressocialização e Reintegração Social; Dignidade da Pessoa Humana.
ABSTRACT
This research will analyze the possible contradiction between the normative promise of social reintegration for convicted individuals and the exclusionary reality of the Brazilian prison system. The central objective is to examine, in light of Article 1 of the Penal Enforcement Law (Law No. 7,210/1984), how the resocializing purpose of the sentence is presented in theory and frustrated in practice, due to an incarceration model centered on punishment. The punitive vision still overrides the resocializing nature, so that, in most cases, the execution of the sentence is limited to a perspective of containment and repression, neglecting its constitutional and legal function of enabling the convicted person to return to society with dignity. To this end, a qualitative, exploratory, and descriptive methodology was adopted, with a deductive approach, utilizing bibliographic and documentary research in legislation, case law, reports from official bodies, and 11 academic articles selected for their scientific relevance.
Keywords: Criminal Enforcement; Resocialization and Social Reintegration; Human Dignity.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo central analisar o artigo 1º da Lei de Execução Penal (LEP) – Lei nº. 7.210/1984 –, dispositivo que estabelece, em sua essência, a finalidade primordial da execução da pena: efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado (Brasil, 1984). Nesse contexto, busca-se compreender a relevância desse comando normativo, não apenas no âmbito da ordem jurídica, mas sobretudo em sua efetivação prática, verificando em que medida a execução penal cumpre ou falha em promover a reintegração do apenado.
Seguindo esse raciocínio, a pergunta que norteia a pesquisa é: de que forma a execução penal, na prática, tem contribuído para a reintegração do condenado? A resposta a essa indagação exige o reconhecimento de que o sistema atual enfrenta falhas estruturais, organizacionais e políticas que inviabilizam o cumprimento pleno da lei. Entre os desafios mais evidentes estão a superlotação carcerária, a ausência de programas consistentes de educação e trabalho, a precariedade da assistência à saúde e o ambiente de violência constante, todos fatores que contrariam frontalmente os princípios da dignidade da pessoa humana e da função ressocializadora da pena.
Importante observar que a presente pesquisa caracteriza-se como qualitativa, exploratória e descritiva, tendo em vista que busca compreender criticamente a aplicação prática do art. 1º da LEP e sua relação com a reintegração social do condenado. Optou-se por esse delineamento em razão de o objeto de estudo não se restringir a quantificação de dados, mas sim a análise interpretativa dos fenômenos jurídicos e sociais que envolvem o sistema penitenciário brasileiro. O método de abordagem adotado é o dedutivo, partindo-se de princípios gerais estabelecidos pela Constituição Federal e pela LEP para se chegar a análise específica das contradições entre o que prevê a legislação e o que se observa na realidade das prisões brasileiras.
É sabido que o sistema penitenciário brasileiro tem sido objeto de intenso debate acadêmico e jurídico, sobretudo em razão da sua incapacidade de assegurar os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. O art. 5º da Carta Magna, em seus incisos XLVII a XLIX, garante o respeito a integridade física e moral dos presos, proibindo penas cruéis e assegurando condições dignas de cumprimento da pena (Brasil, 1988). Contudo, a realidade prática distancia-se de tais garantias, evidenciando um cenário de violação sistemática.
Nesse sentido, a presente pesquisa propõe-se a discutir, sob a ótica do artigo 1º da Lei de Execução Penal, a contradição existente entre a promessa normativa de reintegração social e a realidade excludente do sistema penitenciário brasileiro. Busca-se demonstrar que a distância entre lei e prática não decorre apenas de falhas pontuais, mas de um modelo estrutural de encarceramento que privilegia a punição em detrimento da ressocialização. Ao final, pretendeu-se contribuir para o debate jurídico e acadêmico sobre a efetividade da execução penal e a urgência de repensar políticas públicas que concretizem o princípio da dignidade da pessoa humana e promovam, de fato, a reintegração do condenado.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DO TEMA PROPOSTO
O sistema penitenciário brasileiro tem sido objeto de intenso debate acadêmico e jurídico, sobretudo em razão da sua previsível incapacidade de assegurar os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. O art. 5º da Carta Magna, em seus incisos XLVII a XLIX, garante o respeito a integridade física e moral dos presos, proibindo penas cruéis e assegurando condições dignas de cumprimento da pena (Brasil, 1988). Contudo, a realidade prática distancia-se de tais garantias, evidenciando um cenário de violação sistemática.
Ainda, considerando a realidade dos presídios brasileiros, é notória a existência de uma herança cultural marcada por estigmas e preconceitos, que impactam diretamente na forma como a sociedade enxerga e trata os indivíduos que cometeram infrações penais.
A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) surge como marco normativo destinado a assegurar a efetividade da pena em consonância com a dignidade da pessoa humana. Em seu art. 1º, define como objetivo primordial da execução penal proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado (Brasil, 1984). No entanto, a distância entre a norma e a prática revela-se abissal, como apontam pesquisas que retratam presídios superlotados, insalubres e incapazes de cumprir a função ressocializadora.
De acordo com dados recentes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2023), mais de 40% das unidades prisionais brasileiras operam acima da capacidade projetada, o que agrava problemas como insalubridade, proliferação de doenças, altos índices de violência e deficiências de infraestrutura. Nessas condições, dificilmente se vislumbra um ambiente minimamente propício para a reintegração social, revelando-se uma distância considerável entre o ideal normativo da Lei de Execução Penal e a realidade material das prisões brasileiras.
Dessa forma, ao não garantir condições básicas de dignidade no cumprimento da pena, o Estado assume responsabilidade direta pelo possível e iminente agravamento da marginalização do indivíduo privado de liberdade. O cárcere, em tais circunstâncias, deixa de ser instrumento de cumprimento da legalidade e se transforma em mecanismo de exclusão social, aprofundando desigualdades e dificultando sobremaneira a retomada da vida em sociedade após o cumprimento da sanção.
Nesse sentido, Cervini (2002) observa que a prisão, embora historicamente concebida para punir e controlar condutas ilícitas, foi também justificada como um meio de reabilitação do indivíduo, contudo, na prática contemporânea, as instituições prisionais não conseguem cumprir essa dupla finalidade, uma vez que a estigmatização social, o caráter criminógeno do ambiente carcerário e a escassez de recursos humanos e materiais impedem qualquer perspectiva real de tratamento eficaz. Os altos índices de reincidência criminal no Brasil são reflexo direto desse fracasso institucional.
Em tal panorama, é imperativo compreender que a ressocialização transcende o âmbito estritamente jurídico-penal e se configura como um problema de ordem política e social, e que há evidente constatação da ausência de vontade política em priorizar a execução penal, como política pública estruturante, perpetuando o ciclo de encarceramento em massa e exclusão, e ainda, tornando insolúvel, ao menos no curto prazo, o ideal de reintegração social previsto na legislação.
2. ANÁLISE DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 347, reconheceu a existência de um estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro. Nessa decisão paradigmática, ficou registrado que:
O estado de desconformidade constitucional do sistema carcerário brasileiro expressa-se por meio: (i) da superlotação e da má-qualidade das vagas existentes, marcadas pelo déficit no fornecimento de bens e serviços essenciais que integram o mínimo existencial; (ii) das entradas de novos presos no sistema de forma indevida e desproporcional, envolvendo autores primários e delitos de baixa periculosidade, que apenas contribuem para o agravamento da criminalidade; e (iii) da permanência dos presos por tempo superior àquele previsto na condenação ou em regime mais gravoso do que o devido. Tal situação compromete a capacidade do sistema de cumprir seus fins de ressocialização dos presos e de garantia da segurança pública (Brasil, STF, ADPF 347/DF, 2023).
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) demonstra que o problema carcerário extrapola a esfera administrativa e se converte em violação estrutural de direitos fundamentais, exigindo soluções interinstitucionais. Trata-se de um reconhecimento inédito de que o sistema prisional brasileiro apresenta falhas pontuais, bem como encontra-se em estado de colapso crônico.
Guilherme de Souza Nucci (2014) já alertava para o descaso estatal quanto à execução da pena, apontando que:
Na prática, no entanto, lamentavelmente, o Estado tem dado pouca atenção ao sistema carcerário, nas últimas décadas, deixando de lado a necessária humanização do cumprimento da pena, em especial no tocante à pena privativa de liberdade, permitindo que muitos presídios se tenham transformado em autênticas masmorras, bem distantes do respeito à integridade física e moral dos presos, direito constitucional imposto (Nucci, 2014, p. 942).
A crítica de Nucci demonstra que, apesar da previsão constitucional e legal de respeito à dignidade humana, o que se observa na prática é a negação desse direito fundamental. Tal realidade é corroborada por dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública, ao qual revelaram que o Brasil, no ano de 2016, apresentava taxa de ocupação carcerária de 197,4%, ultrapassando significativamente o limite máximo de 137,5%, estabelecido pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, significando que o país contava, à época, com 726.712 presos para apenas 368.049 vagas, evidenciando que o sistema operava com quase o dobro de sua capacidade formal (Brasil, 2017).
Outro aspecto relevante para o estudo é a reincidência criminal, fator que amplia o ciclo de encarceramento e contribui para a superpopulação, pois a reincidência constitui fator determinante para a superlotação prisional, visto que a ausência de atividades laborais e educacionais no cárcere compromete a reinserção social do indivíduo. Muitos egressos deixam o sistema sem qualificação profissional, sem acesso a educação formal e ainda marcados pelo estigma do encarceramento, circunstâncias que os empurram novamente ao ciclo da criminalidade.
Nesse contexto, Marcos Rolim (2003) pontua que:
O Brasil, como a maioria dos países latino-americanos, assiste imobilizado ao desenvolvimento de uma crise crônica em seu sistema penitenciário. Especialmente nesta última década, os indicadores disponíveis a respeito da vida nas prisões brasileiras demonstram de maneira inconteste um agravamento extraordinário de problemas já muito antigos como a superlotação carcerária, a escalada de violência entre os internos, as práticas de abusos, maus-tratos e torturas sobre eles, a inexistência de garantias mínimas aos condenados e o desrespeito sistemático e institucional à legislação ordinária e aos princípios dos direitos humanos (Rolim, 2003, p. 121).
A análise de Rolim reforça que o sistema penitenciário acaba falhando em sua função primordial de ressocializar, ao mesmo tempo em que também se torna ambiente fértil para a violação de direitos humanos e para a expansão da violência organizada.
Muraro (2017), também critica severamente a ausência de efetividade na execução penal, ao destacar que:
Sabemos que a realidade é outra, não só pela impossibilidade absoluta de ressocialização por meio da pena, mas também porque o sistema carcerário brasileiro está falido. A execução da pena, na prática, afronta os direitos fundamentais previstos pela Constituição de 1988 (Brasil, 1988), dispositivo legal que prevê que ninguém será submetido a tratamento degradante ou cruel, nos termos do art. 5º, inciso III, da Magna Carta (Muraro, 2017, p. 126).
Nesse sentido, observa-se que a análise crítica de Muraro confirma que a falência do sistema penitenciário viola diretamente os direitos fundamentais assegurados pela Constituição, tornando a execução da pena uma prática incompatível com os valores do Estado Democrático de Direito.
Na esteira dessas perspectivas, Vieira (2023) destaca os entraves concretos que comprometem a aplicação efetiva do art. 1º da LEP: a superlotação prisional, insuficiência de políticas públicas e precariedade das unidades, que inviabilizam práticas ressocializadoras. Ao confrontar com Bitencourt (2012), percebe-se tensão entre o ideal normativo e a realidade prática, evidenciando o abismo entre o comando legal e sua execução material, haja vista que enquanto Bitencourt enfatiza a primazia da reinserção social como imperativo de legalidade e dignidade, Vieira evidencia as dificuldades sistêmicas que frustram esse escopo.
O estudo de Oliveira (2020), aponta a autonomia do ramo da execução penal, cuja individualização da pena deve se pautar por necessidades do apenado, incluindo assistência educacional, trabalho e vínculo social. Nessa linha, o modelo de execução penal é concebido como um subsistema jurídico com princípios próprios, como dignidade humana e ressocialização, dialogando diretamente com o escopo do art. 1º da LEP.
No campo jurisprudencial, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) enunciou que a reincidência constitui condição pessoal, não individual das condenações, devendo ser considerada em todas as execuções unificadas de pena. Essa interpretação amplia o escopo do juízo da execução, exigindo atenção para a individualidade do condenado – o que converge com a lógica ressocializadora do art. 1º, mas potencialmente reforça um viés punitivo ao tolerar agravamento de regime sem contrabalanço ressocializador (Brasil, 2025).
A partir de tais análises, evidencia-se que a doutrina, representada por autores como Bitencourt (2012), Valois (2012) e Vieira (2023), valoriza sobremaneira a execução penal como instrumento educativo e transformador, devendo ser pautada em princípios humanitários e sociais. Entretanto, a jurisprudência atual, sobretudo dos tribunais superiores, privilegia uma leitura restritiva da legislação, centrada na literalidade e na segurança pública, em detrimento da reinserção social. Essa divergência, meramente teórica, impacta diretamente a vida do condenado, que, em vez de usufruir de políticas de reeducação, se vê submetido a barreiras legais para a progressão de regime.
A análise comparativa entre Bitencourt (2012) e Valois (2012) revela que a finalidade ressocializadora da execução penal é constantemente mitigada pela rigidez normativa aplicada nos tribunais, sobretudo quando da interpretação de dispositivos como o art. 112 da LEP. Para Bitencourt, a reintegração social deve ser considerada elemento indissociável da execução, não podendo ser negligenciada em prol de um viés meramente sancionatório. Valois (2012), por sua vez, reforça que a execução penal precisa equilibrar a retribuição e a pedagogia, de modo a não esvaziar o objetivo do art. 1º. Em contraste, a jurisprudência frequentemente privilegia a segurança pública e a literalidade da lei, relegando o caráter humanitário a um segundo plano.
Segundo o CNJ (2023) e Takayanagi (2010) a concretização do art. 1º da LEP exige instrumentos materiais claros, como assistência jurídica integral, programas educacionais, inserção no mercado de trabalho e manutenção dos vínculos familiares. Esses mecanismos, previstos de forma expressa na legislação, deveriam operar como ferramentas centrais para a integração social do condenado. Contudo, a realidade carcerária brasileira demonstra a precariedade desses dispositivos: faltam políticas consistentes, os projetos de estudo e trabalho são insuficientes e, muitas vezes, os vínculos familiares são enfraquecidos pelo próprio sistema penitenciário. Em confronto com a jurisprudência, percebe-se que a aplicação do art. 112 da LEP tem se tornado prioridade na análise judicial, relegando ao segundo plano esses instrumentos ressocializadores.
O entendimento exposto de Takayanagi (2010) reforça a competência do juízo da execução penal para valorar as condições pessoais do condenado, mesmo que estas não tenham sido expressamente tratadas na sentença condenatória. Essa interpretação, embora pareça ampliar as possibilidades de ressocialização, em muitos casos é utilizada para agravar a situação do preso, como no reconhecimento da reincidência em todos os processos unificados. Se, por um lado, tal postura judicial dialoga com a individualização da pena, princípio basilar do art. 1º da LEP, por outro, acaba reforçando a faceta punitiva da execução, visto que a reincidência é utilizada mais como obstáculo do que como dado a ser compreendido em um processo de reeducação.
Por outro lado, segundo acórdão relatado pela Des. Sonia Regina de Castro, do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), firmou-se o entendimento de que a aplicação da fração de 60% do art. 112, inc. VII, da LEP abrange reincidentes não específicos, considerando-se a ausência de distinção no texto legal entre reincidência específica ou genérica (Brasil, 2020). Essa postura realça a literalidade do dispositivo legal, porém se contrapõe a perspectiva de analogia in bonam partem adotada pelo STF, que permite aplicar a fração mais benéfica em casos ambíguos (Brasil, 2021).
O estudo de Cabral & Rocha (2025), oferece uma contribuição substancial ao debate ao identificar como as alterações legislativas recentes – especialmente a Lei 14.843/2024 – impuseram uma exigência formal de exame criminológico para progressão de regime, assim como restrições para as saídas temporárias, fatores que tendem a restringir, e não ampliar, as oportunidades de reintegração social. Ao comparar com as análises de Bitencourt (2012) e Valois (2012), nota-se que, anteriormente, o foco maior recai sobre a promessa de individualização e assistência (educação e trabalho), sem exigências tão burocráticas; já Cabral & Rocha (2025) mostram que tais exigências normativas criam entraves práticos, inclusive pela ausência de estrutura estadual para cumprir os exames criminológicos em larga escala.
No STJ/TJDFT, a interpretação literal do art. 112, inc. VIII, da LEP em casos de reincidência específica com resultado morte, impede a aplicação de percentuais inferiores, a despeito de déficit legal, pois a norma exige 70% da pena para progressão do regime (Brasil, 2021). Aqui se observa, novamente, uma divergência interpretativa marcante: enquanto advogados e doutrinadores apresentam propostas mais humanas, os tribunais superiores mantêm postura estrita, reforçando o caráter punitivista e legalista da execução, o que pode vir a comprometer o princípio da humanidade subjacente ao art. 1º. Assim sendo, a execução penal acaba funcionando mais como mecanismo de exclusão social do que de ressocialização, evidenciando a tensão entre o texto normativo e a realidade prática.
3. POSSÍVEIS SUGESTÕES DE APLICABILIDADE EFICIENTE DA LEI
A análise empreendida permitiu constatar que o artigo 1º da Lei de Execução Penal encerra uma dupla finalidade: assegurar a execução da sanção penal e, simultaneamente, promover a reintegração social do condenado. Esse panorama, embora juridicamente harmônico, revela-se contraditória na prática, em razão da prevalência de um modelo punitivista e excludente que inviabiliza a efetividade do escopo ressocializador. Assim, a promessa normativa de integração social permanece, em grande medida, como um ideal abstrato, frustrado pelas condições materiais e estruturais do sistema prisional.
Importante destacar que embora a legislação preveja instrumentos concretos de assistência, como trabalho, educação e acompanhamento social, a efetividade dessas medidas é comprometida por fatores estruturais, como superlotação, insuficiência de recursos e ausência de políticas públicas consistentes.
Ramos Netto (2006) examina decisões jurisprudenciais que envolvem remição por estudo, acessos escolares e o direito fundamental à educação, assim como as raízes históricas e constitucionais desse mandamento, demonstrando que o direito à educação prisional não é apenas instrumento de remição ou de progressão de regime, mas deve ser concebido como parte do conjunto de direitos infraconstitucionais e constitucionais que asseguram dignidade, cidadania e rompem ciclos de exclusão. Comparado com autores que veem a educação sobretudo como instrumento funcional de reintegração, Ramos Netto enfatiza sua dimensão emancipatória: educação como reconstrução de subjetividades, não só de habilidades técnicas.
Nesse sentido, observou-se que mesmo em estados considerados mais estruturados, a oferta de educação prisional apresenta deficiências significativas, como a ausência de adaptação pedagógica perante as peculiaridades do público encarcerado, a restrição de disciplinas, a dificuldade de acesso ao material didático e a inconsistência no registro e fiscalização das horas de estudo. Constata-se, ainda, que muitos presos que ingressam em programas educacionais veem seus estudos interrompidos ou pouco valorizados para fins de remição, progressão de regime ou efetiva reinserção social. Em contraposição, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido, em julgados recentes, a validade da remição pelo estudo na modalidade a distância, mesmo sem fiscalização direta da unidade prisional, desde que haja certificação formal. Desse modo, evidencia-se um contraste evidente entre a evolução normativa e jurisprudencial, que amplia as possibilidades de acesso à educação, e as limitações estruturais concretas que comprometem a materialização desses direitos no cotidiano carcerário (Pinto, 2021).
Sobre a relevância do trabalho, Matos Júnior (2023), a considera como vetor essencial da reintegração social no âmbito da execução penal, e destaca que a atividade laboral contribui para a redução da ociosidade, a elevação da autoestima e a aquisição de habilidades relevantes para o mercado de trabalho. Diferentemente de análises puramente normativas – como a de Bitencourt –, que se concentram no discurso legal e constitucional, o autor evidencia que o trabalho penitenciário é instrumento concreto de ressocialização, desde que implementado de forma estruturada e acompanhado por políticas públicas de inserção profissional. A dialética entre lei e prática, aqui, revela que iniciativas localizadas podem mitigar a desarmonia, mas dependem fortemente de gestão local, recursos humanos, convênios sociais e da abertura do mercado de trabalho para ex-detentos.
A Lei de Execução Penal, em seus Arts. 22 a 24, também estabelece a assistência social como direito do condenado, compreendendo o amparo ao preso e a sua família, bem como o auxílio para o retorno ao convívio comunitário, contudo, a análise da realidade prisional brasileira revela que tal assistência é frequentemente ineficaz, marcada pela ausência de programas estruturados e pela insuficiência de políticas públicas integradas. Esse descumprimento normativo compromete a função essencial da execução penal, que deveria ser orientada para a reintegração social, conforme dispõe o art. 1º da LEP. Em comparação com a doutrina que ressalta a necessidade de uma abordagem integral e multidisciplinar para alcançar a ressocialização, observa-se que a prática estatal permanece restrita a medidas pontuais, incapazes de produzir os efeitos transformadores esperados (Machado; Barbiani; Rocha, 2024).
Para além do que já foi exposto, a pesquisa de Silva (2024) destaca que multas( sanções pecuniárias), frequentemente recaem sobre aqueles com menor poder aquisitivo, repercutindo negativamente na vida dos egressos, que já enfrentam estigma social, dificuldade de recolocação no mercado e ausência de moradia estável. A autora mostra que essas desigualdades penalizam determinado grupo social mesmo após o cumprimento da pena, minando a sensação de reabilitação e reinserção, pois essas pessoas acabam retornando para a criminalidade ou marginalização. Dessa forma, o entendimento doutrinário que, geralmente, enfatiza trabalho e educação como caminhos de reintegração, esse estudo chama atenção para o fato de que medidas financeiras (multas, taxas) ou condições de execução penal que exigem recursos do preso ou de sua família (como deslocamento, custeio de material educacional) são barreiras estruturais menos debatidas, mas de alta relevância prática.
O modelo de execução penal desenvolvido pela Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) é considerado uma inovação no sistema prisional brasileiro, por priorizar a humanização da pena e oferecer uma alternativa diferenciada ao cárcere comum. A proposta se materializa nos Centros de Reintegração Social, que buscam garantir condições dignas de cumprimento da pena e possibilitar maior acompanhamento do condenado em seu processo de transformação, distanciando-se da lógica meramente punitiva, ao enfatizar práticas que favorecem a recuperação e a ressocialização (Gonçalves, 2024).
4. RESULTADOS, PROPOSTA DE REFLEXÃO E MUDANÇA
O presente estudo surgiu do reconhecimento da necessidade de reflexão sobre a real efetividade da LEP e os questionamentos motivadores foram: é possível reinserir no convívio social aquele que foi segregado em condições tão adversas e degradantes? A pena privativa de liberdade, tal como executada atualmente, cumpre sua função ressocializadora ou, ao contrário, fomenta ainda mais a exclusão e o agravamento das condutas ilícitas?
Diante do estudo, constatou-se evidente que a execução penal brasileira permanece marcada por um descompasso estrutural entre norma e realidade: a lei assegura direitos e finalidades ressocializadoras, mas a prática institucional os esvazia, transformando a execução em instrumento de exclusão social. Assim, reafirma-se a necessidade de políticas integradas e de uma interpretação judicial que efetive o caráter humanitário e constitucional do instituto.
Constatou-se ainda, que a doutrina representada por autores como Bitencourt, Valois e Oliveira, destaca a dignidade da pessoa humana, a individualização da pena e a pedagogia penal como fundamentos indissociáveis da execução. Entretanto, o confronto com a jurisprudência revelou uma tendência majoritária dos tribunais em privilegiar a literalidade da lei e a segurança pública em detrimento da ressocialização, acentuando a desarmonia entre norma e realidade.
Os dados empíricos e normativos demonstraram, ainda, que entraves estruturais – como superlotação, déficit de políticas educacionais e laborais, ausência de assistência social efetiva e exigências burocráticas inviáveis – contribuem para a falência dos objetivos ressocializadores. O cenário atual evidencia que o Estado brasileiro não cumpre integralmente os dispositivos da própria LEP, perpetuando, assim, ciclos de exclusão, reincidência e estigmatização.
Nesse contexto, torna-se imprescindível a compreensão dos operadores do Direito, da execução penal não como um mecanismo de cumprimento da sanção, mas como um subsistema jurídico autônomo, com princípios constitucionais que exigem concretização prática. A reintegração social não deve ser tratada como elemento acessório, mas como núcleo essencial da execução, capaz de legitimar a pena diante da ordem constitucional. Assim, o fortalecimento de políticas públicas integradas, a valorização do trabalho e da educação prisionais e a garantia de assistência social e jurídica efetivas constituem medidas indispensáveis para reduzir o abismo entre a norma e a realidade.
Dessa forma, diante da análise do quadro atual, constatou-se que a aplicabilidade prevista na Lei, na verdade, aponta para um descompasso entre a teoria normativa e a realidade empírica. A Constituição e a LEP estabelecem parâmetros de dignidade, mas as prisões brasileiras seguem convertendo-se em espaços de degradação, violando o princípio da dignidade da pessoa humana e fomentando a reincidência criminal.
A reflexão proposta no decorrer do trabalho de pesquisa indicou que a mudança demanda o reconhecimento de que a reintegração não se concretiza apenas dentro dos muros do cárcere, mas depende da criação de condições sociais, econômicas e políticas que favoreçam a inclusão do egresso no meio social. O que foi apresentado até aqui, deveria ser o modelo de ressocialização que o Brasil busca implementar, porém, para que se concretize tal idealização, é preciso que os operadores do Direito definam se a reintegração social almejada se limita a prevenção de novos delitos por meio do medo e da contenção, ou se efetivamente objetiva formar cidadãos aptos a exercer um papel produtivo e digno na sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo 1º da Lei de Execução Penal (LEP) consagra uma inovadora dualidade de finalidades: a efetivação das disposições da sentença criminal e a promoção da harmônica integração social do condenado. Bitencourt (2012) ressalta que essa dupla finalidade não pode ser dissociada, sob pena de se fugir ao escopo constitucional da execução penal. Valois (2012) vai além ao afirmar que a execução penal deve conciliar o rigor imposto pela sanção com a ressocialização, entendendo que a efetividade da pena pressupõe o respectivo acompanhamento humanitário e pedagógico.
Ao enfatizar a autonomia do Direito de Execução Penal, o artigo de Oliveira (2020) ressalta a importância de se compreender esse ramo como um sistema normativo autônomo, dotado de princípios próprios, como a dignidade da pessoa humana, a proporcionalidade e a individualização da pena.
Nesse contexto, a reintegração social idealizada no art. 1º da LEP surge como expressão formal de um objetivo constitucionalmente consagrado, mas que, na prática, enfrenta obstáculos estruturais e culturais. Como vimos, a superlotação dos presídios, a falta de recursos e a escassez de programas de trabalho e educação reduzem significativamente a efetividade da norma. Ainda que a legislação preveja mecanismos concretos de assistência, a ausência de políticas públicas adequadas e a resistência institucional inviabilizam a implementação desses direitos.
Comparando a doutrina humanista de Bitencourt (2012) com a crítica pragmática de Vieira (2023), constata-se que ambos reconhecem o descompasso entre lei e realidade, ainda que por enfoques distintos: enquanto o primeiro foca na necessidade de respeitar a dignidade humana, a segunda expõe os entraves práticos e administrativos que bloqueiam essa realização. Assim, o art. 1º permanece como uma promessa jurídica incompleta.
Diante dos dados analisados, mas sem a intenção de esgotar o tema, ressalta-se que a presente pesquisa se propôs e entregou importante reflexão diante do problema enfrentado pelo Estado em relação à reintegração social do condenado. Nesse sentido, observou-se que a execução penal brasileira encontra-se marcada por uma profunda dissonância entre texto legal e prática institucional. Ou seja, se de um lado, a LEP enuncia objetivos humanitários e ressocializadores, de outro, a prática estatal ainda se orienta pela lógica da segregação e do controle social.
Seguindo esse mesmo raciocínio, a superação da evidente desarmonia exige uma mudança estrutural de paradigma: da centralidade na punição para a primazia da reintegração social, em consonância com a Constituição Federal e com o princípio da dignidade da pessoa humana. Apenas assim será possível transformar a promessa do art. 1º da LEP em realidade concreta, garantindo que a execução penal cumpra sua finalidade constitucional e social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1 Bacharelanda em Direito – FDCI. E-mail: [email protected]
2 Professora Orientadora – FDCI. E-mail: [email protected]