A EVOLUÇÃO DOS INTERESSES ECONÔMICOS E SUA INFLUÊNCIA NA MUDANÇA DE PARADIGMAS DO STATUS DO INDIVÍDUO A PARTIR DA IDADE MODERNA

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10632566


Gerson Santana Arrais
Fabiene Ribeiro S. S. Arrais


RESUMO
Este artigo tem como escopo apontar, não de forma exaustiva, a influência de um fator praticamente nada ortodoxo ou recorrente no estudo da evolução ou inovação humana do indivíduo, os aspectos econômicos que surgiram, evoluíram e modificaram todos os rumos da história da humanidade. O indivíduo, neste contexto de inovação humana, quase sempre foi estudado somente com a ótica do humanismo, da política e das relações sociais, mas transcendendo esses paradigmas, tivemos os escopos econômicos, em todas as suas faces, instigando ou concitando, de algum modo, a inovação do indivíduo como sujeito de direitos e obrigações, mas não apenas sob os seus interesses, mas, fortemente, com interesses econômicos.
Palavras-chaves: constitucionalismo – antropocentrismo - individualismo – utilitarismo - contratualismo – burgueses – consumo

ABSTRACT
This article has the scope of pointing, not as a limited way, the influence of a fact, practically, unorthodox or common in the person evolution or innovation study, the economic matters those that came up, have developed and changed all the humanity history way. Person, in this context of human innovation, almost always was studied only under the humanism sight, the policy and the social relationships, but beyond those paradigms, there were the economics aims, with all its faces, prompting or urging, by anyway, the person innovation as subject of rights and obligations, but not so only under the personal interests, but, strongly, under the economic interests.
Keywords: constitutionalism – anthropocentrism – individualism – contractualism – utilitarianism – bourgeois - consumption

INTRODUÇÃO

A inovação do estado (status) do ser humano, passando de mero indivíduo servil aos propósitos do Estado e da realeza, no marcante regime feudal do período da Idade Média, para o estado de sujeito de direitos e obrigações, recorrentemente, é abordada somente sob a ótica da evolução dos direitos humanos, dentro de um prisma tão somente sociológico e permeado pelo caminho linear dos períodos históricos da evolução da humanidade, a partir da Pré-História, passando pela Antiguidade, pela Idade Média, pela Idade Moderna e até a Idade Contemporânea.

Pouco se fala e se perquire a respeito dos interesses sociais, econômicos e políticos que foram, prima facie, as reais molas propulsoras dessa transformação do indivíduo em detrimento do Estado e do núcleo familiar, este, por muito tempo, foi o todo aristotélico que prevalecia sobre uma de suas partes, o indivíduo.

Para atingirmos o presente escopo, será apresentado um estudo breve, sem intenção de esgotar a temática, acerca da evolução humana, no decorrer da História, dando ênfase ao movimento do Constitucionalismo, aos fenômenos ou óticas do individualismo, do contratualismo e do liberalismo econômico, fases históricas cruciais que, ao lado de outros contextos inatos ao ser humano, foram as principais amalgamas que amoldaram o novel perfil ou modelo do ser humano – o sujeito de direitos e obrigações.

1. CONSTITUCIONALISMO

Querer saber como surgiu no seio da Filosofia o “antropocentrismo” é indispensável conhecer do fenômeno do Constitucionalismo, movimento social, político e jurídico que, no iter da evolução da humanidade, nos conduziu cientificamente ao Direito Constitucional como o conhecemos nos dias atuais.

O antropocentrismo dispensou ao indivíduo a condição de ser o centro de todas as atenções políticas, sociais e jurídicas, conforme se pode analisar a partir de uma simples leitura da Magna Charta de 1215 e da Bill of Rights de 1689.

Destarte, abordar essa inovação de status do indivíduo considerando apenas os pontos filosóficos do constitucionalismo, cremos não seja suficiente para compreender de forma mais ampla os panos de fundo das aspirações dos direitos humanos que tiveram o seu apogeu a partir do Iluminismo. O fluxo histórico e filosófico dessa evolução ou inovação de status não deve ser pensado somente nas vertentes dos talvegues da História, mas sobretudo no volume de acontecimentos paralelos e escusos que pressionaram a História no sentido capcioso desses talvegues.

No estudo do constitucionalismo, há que se analisar, verbi gratia, os mais importantes movimentos nos quais o indivíduo, direta ou indiretamente, galgou limitar os poderes do Estado ou dos governantes trilhando, inconscientemente, os rumos da democracia. A partir dessa tendência e do crescimento desses movimentos, pode-se dizer que, em quase toda a Europa, iniciou-se um “êxodo rural” e as pessoas passaram a deixar os seus estilos de vida no âmbito dos feudos. Esse êxodo provocou o surgimento de pequenas cidades ou vilarejos que ora se posicionavam nas proximidades ou em volta de algum castelo ou em posições intermediárias entre estes e os campos. Os indivíduos comuns necessitavam de um meio de sobrevivência e o encontraram, coletivamente, vivendo próximos uns dos outros nos seios desses vilarejos denominados de burgos, praticando o escambo do excedente que produziam. Este acontecimento histórico marcou fortemente a transição da Idade Média para a Idade Moderna, o que ocorreu de forma bastante lenta. Como os atos de mercancia e de escambo eram, àquele período, considerados uma atividade vil ou vergonhosa, havia, por parte das camadas sociais mais altas (Igreja e nobres) uma relação de tolerância em relação à novel categoria de indivíduos, os burgueses. As negociações entre as classes mais altas com a burguesia ocorriam de forma discreta e, às vezes, secreta. A partir dessa escorreita relação, surgiu uma categoria de empresa que existe até os dias atuais – as comanditas.1

Assim, para se entender a evolução social, jurídica e política do indivíduo, no decorrer da História e no curso do movimento do constitucionalismo, há que se aprofundar de forma mais ampla no estudo das ideias do individualismo e do contratualismo que foram marcantes e cruciais na transição da Idade Média para a Idade Moderna, trazendo a lume uma forte eclosão de cunho econômico.

A inovação do indivíduo, obviamente, demandou uma crescente e incessante evolução jurídica porque o indivíduo é um ser social e, para tanto, necessita que um arcabouço jurídico regule o contrato social no qual ele está inserido.

2. LIBERALISMO ECONÔMICO

É notório e sabido que o liberalismo econômico é uma doutrina econômica que teve o seu nascedouro no Século XVIII. E os pilares do Liberalismo Econômico, em resumo, são a não intervenção do Estado na economia; o respeito e a defesa da propriedade privada e a livre concorrência.

O Estado Brasileiro (República Federativa do Brasil), como se infere, verbi gratia, de alguns de seus dispositivos constitucionais, detém características de Estado Liberal, e, neste contexto, também, de Estado Liberal Econômico, conforme se pode aperceber a partir de uma simples leitura do caput do artigo 173 da Constituição Federal Brasileira, e, obviamente, sem prejuízo ou embargo de uma necessária interpretação sistemática de seus demais dispositivos nesta temática. Assim são os preceptivos do citado dispositivo constitucional, in verbis:

“Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.” 2

De igual forma, mas obediente à sua cultura e estilo de vida herdado dos Anglo-Saxões, o Direito Econômico e o Direito Tributário Constitucional dos Estados Unidos da América, verbi gratia, apontam para um modelo de Estado Liberal Econômico. Stiglitz, assim, e indiretamente, leciona com a maestria que lhe é peculiar, listando características de um Estado que tem suas receitas dependentes, em grande parte dos tributos de seus cidadãos e contribuintes em geral, além dos gastos (despesas públicas) com a prestação dos serviços propriamente administrativos e impropriamente administrativos, além de serviços específicos de distribuição da receita aos interesses difusos de seus cidadãos. Então, Stiglitz assim enumerou essas atividades estatais que, indubitavelmente, dão indumentárias de liberalismo econômico ao Estado Norte-Americano:

“GOVERNMENT ACTIVITIES: ● Providing a legal system – required if a market economy is to function. ● Producing goods – defense, education, mail. ● Affecting what the private sector produces, through subsidies, taxes, credit, and regulation. ● Purchasing goods and services from the private sector, which are then supplied by the government to firms and households. ● redistributing income.” 3

Uma característica marcante do liberalismo econômico dos EUA é a sua cultura de pouca intervenção na economia. Assim, proporciona maior liberdade de ação por parte da iniciativa privada, e, também, no sentido de dar reforço ou estimular a economia privada, o governo estimula o agronegócio e a indústria com programas de redistribuição de recursos para esses setores, conforme arremata Stiglitz, litteris:

“[...]. The government also redistributes income in the guise of subsidy programs and quotas. Our agricultural programs in effect redistribute income to farms. The oil imports quotas of the 1950s redistributed income to owners of oil reserves. The alleged reason for the quotas was to ensure the energy independence of the United States; nonetheless, the redistributive effects were among the primary consequences, and they may indeed provide the true motivation for the legislation. […].” 4

Em que pesem os EUA manter regulação constitucional e infraconstitucional de certas atividades econômicas, a sua intervenção na economia, de uma maneira geral é bem grotesca e tênue. Obviamente, isso é fruto de uma democracia em um Estado liberal. Os fundadores da República nos EUA iniciaram um levante ou revolta tributária, em 1773, conhecido como “Boston Tea Party”, pela qual exigiram que a tributação sobre o chá tivesse um marco legal ou regulatório, para se evitar a tributação sem critério por parte do governo. A frase de efeito ou de ordem era “taxation without representation is tyranny”. Assim, o primeiro artigo da Constituição dos EUA previu que “The Congress shall have power to levy and collect taxes, duties, imposts, and Excises, to pay the Debts and provide for the Common Defense and General Welfare of the United States.” 5

Considerando que o liberalismo econômico teve o seu fortalecimento histórico no Século XVIII, e sob o lema laissez faire, laissez passer (deixai fazer, deixai passar), sob a ótica ou pano de fundo voltada para certas liberdades dos indivíduos (propriedade e livre concorrência), nota-se, claramente, uma transversalização dos interesses estatais em prol do indivíduo, como um meio de colocar este no centro das atenções e dos objetivos do Estado, além de fortalecer, por outra via, os interesses estatais. Destarte, a partir de então, ficaram mais claros e evidentes os distintos papeis de cada um desses entes – do ente estatal e do indivíduo.

Os principais atores, no Século XVIII, acerca do liberalismo e do liberalismo econômico, foram Adam Smith (1723-1790), Thomas Malthus (1776-1834) e David Ricardo (1772-1823). Sabe-se que David Ricardo, foi, segundo o Professor Doutor Paulo Singer, ao lado de Adam Smith, o principal representante da Escola Clássica de Economia Política.[6] Ricardo produziu muitas ideias sobre valores, capitais e trabalhos necessários para a produção de bens. Ricardo sempre, mesmo que de forma indireta, postou o indivíduo no centro de toda a movimentação econômica, fosse como trabalhador, fosse como consumidor. Assim, pregava o respeitável e renomado filósofo:

“O trabalho, como todas as outras coisas que são compradas e vendidas e cuja quantidade pode ser aumentada ou diminuída, tem seu preço natural e seu preço de mercado. O preço natural do trabalho é aquele necessário para permitir que os trabalhadores, em geral, subsistam e perpetuem sua descendência, sem aumento ou diminuição.

A capacidade que tem o trabalhador de sustentar a si e à família que pode ser necessária para conservar o número de trabalhadores não depende da quantidade de dinheiro que ele possa receber como salário, mas da quantidade de alimentos, gêneros de primeira necessidade e confortos materiais que, devido ao hábito, se tornaram para ele indispensáveis e que aquele dinheiro poderá comprar. O preço natural do trabalho, portanto, depende do preço dos alimentos, dos gêneros de primeira necessidade e das comodidades exigidas para sustentar o trabalhador e sua família. [...].” 7

Isto posto, nota-se que o indivíduo, a partir do Século XVIII, com a evolução agrícola, comercial e industrial, passou-se a entrelaçar, como um elo fundamental, no inter-relacionamento econômico e indispensável do empreendedorismo (capital), da produção, do trabalho necessário e, segundo o que está implícito nas teorias econômicas e tributárias de Ricardo, um indispensável consumidor.

3. INDIVIDUALISMO

O individualismo e o contratualismo sempre estiveram entrelaçados de forma interdependente no contexto da evolução do constitucionalismo e, por consequência, no processo de evolução do indivíduo no decorrer da História. Ambas as ideias foram determinantes para a transição da Idade Média para a Idade Moderna.

O individualismo é a condução do indivíduo por ele mesmo, tendo como balizamento ou direção a sua própria razão sem necessidade de ser dirigido, no real sentido de sua vida, pela razão de terceira pessoa. O individualismo tem como amalgama as liberdades de pensamento e de escolhas, dentre outras faculdades. Nesse diapasão, René Descartes professava que “[...] é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos como seriam, se tivéssemos o uso inteiro de nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido guiados senão por ela.8

A partir das lições de José Adércio L. Sampaio, infere-se que o individualismo sucedeu uma fase nebulosa de nossa História que subverteu a condição natural do indivíduo em benefício de criações jurídicas abstratas como a família e o Estado. Segundo o douto mestre, o indivíduo era, então, privado de sua autonomia moral e de sua autoconsciência as quais eram inconcebíveis aos olhos do Estado, da Igreja e da família. 9

Nessa esteira, é indispensável deixar registrado que durante a Idade Média houve um período conhecido como a Idade das Trevas (Séculos V e IX), período este em que o conhecimento e as ciências tiveram uma lacuna temporal. Praticamente, não há registros de inovações, descobertas ou produções científicas. Com isso, houve um recrudescimento da sujeição servil do indivíduo perante a sociedade da época, inibindo, por conseguinte, a tímida evolução social e política do indivíduo. Este, como nunca, se tornou um instrumento ou meio de consecução dos fins estatais e dos objetivos dos governantes.

O Iluminismo, pode-se dizer, foi o destacado período da História, na Idade Moderna, conhecido também como a Idade das Luzes, em que se fez florescer e fortalecer os ideais de liberdade, de igualdade e de fraternidade. O ícone histórico desse período foi a Revolução Francesa (1789). A partir desse período, houve uma frenética corrida do indivíduo em busca de mais e mais conhecimento. E ao contrário do homem alienado e preguiçoso configurado por Kant, o conhecimento foi um baluarte de consciência do papel natural do indivíduo na sociedade. O indivíduo, já orbitado pelo conhecimento, se pôs na busca da verdade, da razão e de Deus. Nesse período, as ideias epistemológicas de dialética e de retórica foram fortalecidas em todas as questões que envolviam os interesses da coisa pública em detrimento do poder dos reis. Estes, por conseguinte, já tinham esse poder bastante debilitado, há tempos, em razão do enfraquecimento dos feudos pela incessante formação dos burgos.

Nesse mesmo iter, o indivíduo burguês, pode-se dizer, foi um precursor da conscientização humana acerca dos ideais de antropocentrismo ou de inovação do status do indivíduo. Com as práticas comerciais se tornando mais e mais intensas no período transitório da Idade Média para a Idade Moderna, o indivíduo passara a ter mais contato com outras culturas, fazendo com que as relações sociais se tornassem um tanto quanto efervescentes e férteis. Frente a essa diversidade de relações, o indivíduo passou a ter mais consciência dos preceitos universais do direito natural. Um desses precursores do humanismo e do antropocentrismo, obviamente anterior ao período do Iluminismo, foi Thomas More, um filósofo com marcante perfil estoicista, inspirado nos ideais holandeses de Erasmo de Rotterdam. Isso é marcante em sua fantástica obra ficcional, A Utopia, na qual ele criticava sobremaneira o regime político e a sociedade de sua época (Século XV).

Na essência do individualismo, encontra-se, unicamente, a pessoa natural ou humana. A título de exemplo, desde a Magna Charta de 1215, do Rei João I (João Sem Terra), se pode inferir uma preocupação com a individualidade do ser humano, uma preocupação com a mudança de perfil do indivíduo na sociedade da época, principalmente a relevantes direitos fundamentais humanos, até então totalmente desprezados, tais como o direito de ir e vir; não ser preso ou detido senão com fundamento na lei da terra e o due process of law (o devido processo legal). É pacífica a ideia de que, desde então, os ordenamentos jurídicos têm colocado o indivíduo no centro das atenções do Estado, sendo, pois, o Estado destinado a servir aos interesses dos indivíduos vivendo em sociedade sob a égide de um contrato social, normalmente, uma constituição escrita. Tanto é verdade essa preocupação, que, nos dias atuais, não se concebe, no plano do Direito Internacional Público, um indivíduo sem vínculo a um Estado ou, no mínimo, a uma nação, ou seja, a Sociedade Internacional, através de seus organismos internacionais, luta e engendra esforços no sentido de diminuir ao máximo o número de apátridas, tendo em conta que um apátrida tem os seus direitos e garantias fundamentais individuais desvinculados de um ordenamento jurídico que os sustenta. Assim, definimos em nossa obra jurídica de Direito Internacional a definição formal de apátrida (stateless person):

“Apátrida. Pessoa que não possui nenhum laço de nacionalidade com nenhum Estado. Isto pode se dar em razão de condições nômades de um grupo racial ou em razão de choque de questões de nascimento em território que adota o critério de jus sanguini ao invés de jus solis e esta diferença tem como consequência a não-vinculação a nenhum dos territórios – o dos pais e o do nascimento.” 10

Como se pode depreender do que foi exposto acima, vê-se claramente que não basta ser titular de direitos e obrigações, mas, também, que haja garantia em um determinado ordenamento jurídico para o efetivo exercício desses direitos e obrigações.

4. CONTRATUALISMO

As noveis interações individuais e sociais, no tocante ao novo status do indivíduo em evolução, provocaram expressivas modificações jurídicas nas relações econômicas entre eles. O indivíduo, agora um ser social, passou a se relacionar no contexto de uma organização social por contrato em detrimento da legitimidade do Poder Divino que regulava inteiramente essa relação social.

Em rota de colisão a essa ideia de inovação de status do indivíduo, encontrava-se Benjamin Bentham (1748-1832), que via o indivíduo não como o centro das atenções em uma determinada sociedade, mas um indivíduo utilitarista. Bentham, em seus estudos, a partir desse seu dogma, sobrepôs a teoria utilitarista do indivíduo à teoria do direito natural. Alguns entendem que o seu posicionamento neste tema não era radical, mas sim eclético no sentido de mitigar os interesses do Estado, mas não é o que nos parece. Assim era o pensamento de Bentham, segundo uma análise de José Américo Motta Peçanha, verbi gratia:

Utilitarismo: o cálculo dos prazeres. O ponto de partida do utilitarismo de Bentham encontra-se nos seus estudos sobre a ciência do direito, especialmente a teoria do direito natural. Essa teoria supõe a existência de um contrato original e, a partir disso, sustenta que, se um príncipe não cumpre as suas obrigações para com os seus súditos, ainda assim, estes lhe devem obediência. Para Bentham, a doutrina do direito natural é insatisfatória por duas razões: primeiro, porque não é possível provar historicamente a existência de tal contrato; segundo, porque, mesmo provando-se a realidade do contrato, subsiste a pergunta sobre por que os homens estão obrigados a cumprir compromissos em geral. Em sua opinião, a única resposta possível reside nas vantagens que o contrato proporciona à sociedade. O cidadão, segundo Bentham, deveria obedecer ao Estado na medida em que a obediência contribui mais para a felicidade geral do que a desobediência. [...]. Para Bentham, o indivíduo somente possui direitos na medida em que conduz suas ações para o bem da sociedade como um todo, e a proclamação dos direitos humanos, tal como se encontra nos revolucionários franceses, seria demasiado individualista e levaria ao egoísmo. Este, segundo Bentham, já é muito forte na natureza humana; assim, o que realmente deve ser procurado é a reconciliação entre o indivíduo e a sociedade, mesmo que seja necessário o sacrifício dos supostos direitos humanos.” 11

Nesse mesmo diapasão, John Stuart Mill (1806-1873), fiel discípulo da filosofia de Bentham, amenizou ou relativizou um pouco a teoria do utilitarismo de Bentham, ao professar que o indivíduo, apesar de útil aos interesses de uma sociedade, deveria ser o principal foco dessa sociedade. No campo da filosofia política, Mill se destacou por aludir e valorizar de forma expressiva os direitos das mulheres, um sinal de sua convicção filosófica tendente ao antropocentrismo. Stuart Mill deixou emblemado uma de suas célebres frases: “Sobre o seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano.

David Ricardo (1772-1823), célebre economista e político inglês, adepto dos ideais econômicos da burguesia industrial, foi um grande apoiador da soberania popular no sentido de congregá-la à liberdade econômica do indivíduo e da empresa, à liberdade de propriedade e à rigidez tributária. 12

5. AS CONSTITUIÇÕES

Por óbvio que não se deve pensar o constitucionalismo como um evento ou fato histórico isolado, em nenhuma de suas facetas. O constitucionalismo foi um movimento ou fenômeno paralelo ao curso da História da Humanidade que sedimentou as células ou as bases do avanço da mudança de status do indivíduo e o surgimento da democracia nos moldes que hoje a conhecemos. Foi um construtivo processo gradual dos direitos humanos com viés de antropocentrismo que desenvolveu a atual configuração de uma constituição tal como a concebemos nos dias atuais. Foi a ousada mudança de status do indivíduo, em detrimento do poder dos reis, da supremacia do Estado e da Igreja, que provocou o movimento do constitucionalismo nos conduzindo ao Pacto Social como pensado por Russeau e até os dias atuais. O indivíduo, agora senhor de suas escolhas, sob o manto da loi de royume e das lois de roi, passou a dar rumos à sua vida, no que tange às escolhas sociais, profissionais e econômicas. As leis dos reinos (lois de royume) limitaram o poder dos governantes e deu maiores ares de liberdades econômicas aos indivíduos, conforme se pode depreender dos ensinamentos do ex-Ministro do STF, Oscar Dias Corrêa, que assim aduz, litteris:

“Sempre as constituições incluíram em seu texto normas, determinações e princípios econômicos: obviamente, cuidando da vida dos povos, que estruturam, organizam, não poderiam esquecer as que têm fundo ou matriz, ou influência econômica e que integram, fundamentalmente, a vida dos povos.” 13

Apesar da subsistência e predominância do absolutismo no linear e em meados da Idade Moderna, já no início do Século XVII, a Constituição de San Marino (ou ordenamento constitucional de San Marino) foi o primeiro documento a se referir a um importante elemento que provocou o individualismo com características antropocêntricas, a república (coisa pública).[14] Pois, somente a partir das diversas adoções da coisa pública é que se fortaleceu o indivíduo como sujeito de direitos e obrigações, sendo o centro das atenções e a razão de ser do Estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste trabalho, ficou evidente que, no decorrer da História da Humanidade, após o ciclo do Estado absolutista, no qual o indivíduo não passava de um instrumento de satisfação dos interesses dos governantes, da Igreja e dos fins militares de conquistas, e de manutenção das conquistas, o indivíduo, mesmo que inconscientemente, foi conduzido por esses atores, de forma instigadora, sem embargo das revoltas eclodidas pelo anseio popular, a se tornar um sujeito de direitos e obrigações, em menor ou maior grau a depender da época.

Por óbvio, após uma rápida viagem pelos anais históricos, apontando uma lupa para as evoluções econômicas dos Estados, notadamente a partir do Século XVIII – o Século das Luzes – nota-se não só uma evolução cultural, jurídica e política do Estado e do indivíduo, mas uma evolução econômica tendo como principal alvo o indivíduo.

Daí, após essa análise histórica, como seria possível conceber um avanço econômico das nações e dos Estados sem se ter um grupo elevado de consumidores? No estudo do individualismo e do contratualismo, é impossível dissociar a ideia de que o indivíduo foi elevado à condição de sujeito de direitos e obrigações do principal escopo de ser um consumidor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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STIGLITZ, Joseph E. Economics of the public sector. 3rd ed.- New York: Ed Parsons, 1999.


1 Comandita é uma palavra originária da Península Itálica (accomandita – guarda ou depósito). Em linhas gerais, na comandita há dois tipos de “sócios” – os comanditários, que entram com o capital, e os comanditados, que se encarregam da prática e da gestão dos atos empresariais. Na Idade Média, os comanditários entregavam o capital aos comanditados para que estes, diretamente, adquirissem mercadorias e bens para que fossem revendidos. Após as revendas, discretamente, de forma velada, o lucro era repartido entre comanditários e comanditados.

2 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil, DF: Senado Federal, 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 21 março 2023.

3 STIGLITZ, Joseph E. Economics of the public sector. 3rd ed.- New York: Ed Parsons, 1999, p. 36.

4 Ibidem, p. 36.

5 Ibidem, p. 43.

6 RICARDO, David, 1772-1823. Princípios de economia política e tributação. Introdução de Piero Sraffa; apresentação de Paulo Singer; trad. de Paulo Henrique Ribeiro Sandroni.- São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 7.

7 Ibidem, p. 82.

8 DESCARTES, René [1596-1650]. Discurso do método; [tradução Maria Ermantina Galvão].- São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 6.

9 SAMPAIO, José Adércio Leite. Teoria da Constituição e dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p. 8.

10 ARRAIS, Gerson Santana. Arraisjuris: dicionário de termos e expressões de direito internacional (inglês-português, português-inglês) / Gerson Santana Arrais e Fabiene R. S. Santana Arrais.- Goiânia: Kelps, 2013, p. 65.

11 BENTHAM, Jeremy, 1748-1832. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação / Jeremy Bentam; tradução de Luiz João Baraúna. Sistema de lógica dedutiva e indutiva e outros textos / John Stuart Mill; traduções de João Marcos Coelho, Pablo Rubén Mariconda.- 3. ed.- São Paulo: Abril Cultural, 1984, pp. 9-10.

12 ESCOLA, Equipe Brasil. "David Ricardo"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/biografia/david-ricardo.htm. Acesso em 17, março de 2023.

13 CORRÊA, Oscar Dias. Globalização e constituição econômica. in As vertentes do direito constitucional contemporâneo / Ives Gandra da Silva Martins [Coord.].- Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 229.

14 MARTINS, Flávio. Curso de direito constitucional. 6. ed.- São Paulo: Saraiva, 2022, p. 127.


- Prof. Me. Gerson Santana Arrais – advogado, mestre em direito das relações internacionais, doutorando em direito tributário (PUC-Buenos Aires), aluno do MBA em Gestão Tributária (USP-Piracicaba/SP), autor de diversos livros e artigos jurídicos, comendador jurídico-docente pela OAB/GO, membro associado da American Economic Association (AEA), membro efetivo da Academia de Letras de Jataí.

 - Profa. Esp. Fabiene Ribeiro S. S. Arrais – advogada, especialista em direito do trabalho e em língua portuguesa, mestranda em direito das relações internacionais, professora nos cursos de direito, de administração, de ciências contábeis, de gestão comercial e de gestão do agronegócio da FGI-Jataí/GO, membro da Comissão da Mulher Advogada e da comissão da Saúde, da OAB/GO (Subseção Jataí).