A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E A RESERVA DO POSSÍVEL

PDF: Clique aqui


REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17862216


Rafael Alem Mello Ferreira1
Dhyordan Kyovanny Gomes de Souza2


RESUMO
O presente artigo possui como objetivo analisar alguns dos desafios que dificultam a implementação de políticas públicas que visam a efetivação dos direitos fundamentais sociais. Para tanto, serão apresentados os obstáculos estruturais, institucionais e socioeconômicos que frustram a concretização de tais políticas, bem como as possíveis soluções para superá-los. Ademais, será considerada sempre a reserva do possível, princípio que delimita a atuação estatal baseado na disponibilidade de recursos, procurando um equilíbrio entre a garantia dos direitos e a viabilidade financeira e administrativa. A pesquisa tentará contribuir para o debate acerca da importância da efetivação desses direitos como uma pedra angular para a promoção da justiça social e da cidadania. O trabalho utiliza uma abordagem analítica por meio de revisão literária. Concluiu-se que a garantia dos direitos fundamentais sociais é comprometida por fatores políticos, limitações orçamentárias e má gestão pública, o que leva o Judiciário a intervir para evitar a supressão desses direitos.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais Sociais, Constituição, Justiça, Reserva do Possível.

ABSTRACT
This article aims to analyze some of the challenges that hinder the implementation of public policies aimed at realizing fundamental social rights. To this end, the structural, institutional, and socioeconomic obstacles that frustrate the implementation of such policies will be presented, as well as possible solutions to overcome them. Furthermore, the reserve of the possible will always be considered, a principle that delimits state action based on the availability of resources, seeking a balance between the guarantee of rights and financial and administrative viability. The research will attempt to contribute to the debate on the importance of realizing these rights as a cornerstone for the promotion of social justice and citizenship. The research used an analytical approach through a literature review. It was concluded that the guarantee of fundamental social rights is compromised by political factors, budgetary limitations, and poor public management, which leads the Judiciary to intervene to prevent the suppression of these rights.
Keywords: Fundamental Social Rights, Constitution, Justice, Reservation of the Possible.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho foi objeto de pesquisa bibliográfica e tem como objetivo principal analisar os desafios para a efetivação dos direitos fundamentais sociais por meio de políticas públicas, considerando as limitações impostas pela reserva do possível. Além disso, busca identificar estratégias e alternativas que possam contribuir para a superação desses desafios, garantindo a implementação eficaz desses direitos dentro das possibilidades financeiras e administrativas do Estado.

O presente trabalho é pertinente à área de concentração do Programa de Pós Graduação em Direito "Constitucionalismo e Democracia" e à linha de pesquisa "Efetivação dos Direitos Fundamentais Sociais", pois ele aborda os desafios e os limites para efetivação dos direitos fundamentais sociais no Estado Democrático de Direito, observando a reserva do possível e o mínimo existencial. A discussão sobre a efetividade dos direitos fundamentais sociais está diretamente ligada à necessidade de equilíbrio entre as obrigações estatais e a disponibilidade de recursos, bem como ao papel dos poderes constituídos na garantia da dignidade humana. Ao analisar a atuação do Poder Judiciário na concretização desses direitos e os riscos do protagonismo judicial, o texto contribui para a compreensão da interação entre Constituição, políticas públicas e democracia, elementos centrais para o estudo do constitucionalismo contemporâneo.

Na Constituição da República Federativa do Brasil de 19883, os direitos sociais ganharam um capítulo próprio. Presentes desde o art. 6º e seguintes da Constituição Federal de 1988, alguns dos Direitos Sociais estão assim elencados:

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Parágrafo único. Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária. [..]”

Para José Afonso da Silva, esses direitos podem ter 06 (seis) classificações4:

  1. direitos sociais relativos ao trabalhador;

  2. direitos sociais relativos à seguridade, compreendendo os direitos à saúde, à previdência e assistência social;

  3. direitos sociais relativos à educação e à cultura;

  4. direitos sociais relativos à moradia;

  5. direitos sociais relativos à família, criança, adolescente e idoso;

  6. direitos sociais relativos ao meio ambiente.

Também existe para o autor, uma classificação dos direitos sociais do homem como produtor e como consumidor, dentro desses temos os seguintes direitos:

  1. Direitos sociais do homem produtor: a liberdade de instituição sindical, o direito de greve, o direito de o trabalhador determinar as condições de seu trabalho, o direito de cooperar na gestão da empresa e o direito de obter um emprego (são os previstos do art. 7º ao 11º).

  2. Direitos sociais do homem consumidor: Direito à saúde, à segurança social, ao desenvolvimento intelectual, acesso igual das crianças e adultos à uma instrução, à formação profissional, à cultura e ao desenvolvimento da família (são previstos no art. 6º).

Esses direitos são classificados também como direitos fundamentais, pois visam garantir condições mínimas de dignidade de bem estar a todos, tornando possível o exercício da cidadania de maneira completa. Ainda segundo José Afonso da Silva, referência do Direito Constitucional:

“Podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se conexionam com o direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que por sua vez, porporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.”5

Entretanto, a efetivação de tais direitos, esbarra no princípio da reserva do possível. Essa expressão, surgida na Alemanha na década de 1970, versa sobre a possibilidade de se limitar a efetivação dos direitos sociais, considerando principalmente a disponibilidade dos recursos financeiros do Estado. O português J.J. Canotilho é contrário a esse princípio e ensina:

“Rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen) para traduzir a ideia de que os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos. Um direito social sob “reserva dos cofres cheios” equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica.”6

Assim surgem os primeiros problemas da reserva do possível, quando o Estado passa a visar apenas os recursos financeiros e se esquece de garantir os direitos fundamentais sociais.

2. DESAFIOS E LIMITES NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

A Constituição de 1988, possui em seu art. 3º os objetivos fundamentais da República, sendo um deles a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das igualdades sociais e regionais. O constituinte expressou nitidamente nesse artigo, a sua preocupação com o bem estar da população, entretanto, são muitos os desafios encontrados para a promoção dos direitos que visam atender também, os objetivos da República. Assim ensina Paulo Bonavides7:

“Tocante aos direitos sociais básicos, a Constituição define princípios fundamentais, como os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa; estabelece objetivos fundamentais para a república como o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais e, de último, em capítulo próprio, enuncia os direitos sociais, abrangendo genericamente a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desempregados.”

Um dos principais obstáculos enfrentados é a questão política do país, principalmente se considerarmos os diversos escândalos já ocorridos e os processos enormes envolvendo corrupção, que causam um efeito cascata e acarretam em problemas para os direitos sociais.

Ainda dentro da questão política, temos o embate constante entre os Poderes da República, que em tese, deveriam ser independentes e harmoniosos entre si. A separação dos poderes, proposta por Montesquieu8, já não funciona como deveria, causando assim, mais um óbice aos direitos sociais.

Também é necessário mencionar a falta de capacidade das gestões em administrar os recursos públicos, o que acaba deixando brechas para existência da corrupção, tudo isso tolhe os direitos sociais, pois sem orçamento, inexistem tais direitos. Esses fatores contribuem e muito para a passividade estatal, que anula as expectativas constitucionais no tocante aos direitos sociais, mostrando o descaso com a população. Assim ensina Celso de Mello:

“O fato inquestionável é um só: a inércia estatal em tornar efetivas as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela Constituição e configura comportamento que revela um incompreensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República. Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.”9

Somado a isso, existe o obstáculo financeiro, mais especificamente, a reserva do possível, que é frequentemente, um limite para a efetivação dos direitos fundamentais sociais. Quando é invocada, quase sempre esbarra no mínimo existencial, esse é atrelado intimamente aos direitos fundamentais, tal conceito se refere ao conjunto das condições mínimas necessárias que visam garantir uma vida digna a todos. Sobre tal instituto, ensina Ingo Wolfgang Sarlet:

"Sem que se pretenda aprofundar o tópico, é possível afirmar que a atual noção de um direito fundamental ao mínimo existencial, ou seja, de um direito a um conjunto de prestações estatais que assegure a cada um (a cada pessoa) uma vida condigna, arranca da ideia de que qualquer pessoa necessitada que não tenha condições de, por si só ou com o auxílio de sua família, prover o seu sustento, tem direito ao auxílio por parte do Estado e da sociedade."10

Daí surge a questão: -Quem deve se sobressair quando a reserva do possível vai de encontro ao mínimo existencial?

Na letra fria da lei, não encontraremos respostas exatas. Aparece então a necessidade de o Poder Judiciário regular tal tema. Quando chamado a se manifestar sobre essa questão, entendeu assim o STF, no Recurso Extraordinário 639.337:

E M E N T A: CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - SENTENÇA QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXIMAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDEREÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁVEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA POR CRIANÇA NÃO ATENDIDA - LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DAS “ASTREINTES” CONTRA O PODER PÚBLICO – DOUTRINA – JURISPRUDÊNCIA - OBRIGAÇÃO ESTATAL DE RESPEITAR OS DIREITOS DAS CRIANÇAS - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) – LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO - INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES – PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” – RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL - PRETENDIDA EXONERAÇÃO DO ENCARGO CONSTITUCIONAL POR EFEITO DE SUPERVENIÊNCIA DE NOVA REALIDADE FÁTICA – QUESTÃO QUE SEQUER FOI SUSCITADA NAS RAZÕES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO – PRINCÍPIO “JURA NOVIT CURIA” – INVOCAÇÃO EM SEDE DE APELO EXTREMO - IMPOSSIBILIDADE – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. (grifei)

Nesse julgamento, a mais alta corte do Poder Judiciário entendeu que o Estado não pode invocar a teoria da reserva do possível quando se trata de direitos que são inerentes a dignidade da pessoa humana e quando tal teoria traz retrocesso social, o que é vedado no ordenamento jurídico brasileiro.

Entretanto, mesmo nas ocasiões nas quais o mínimo existencial sai a frente da reserva do possível, muitas vezes a prestação dos serviços por parte do poder público, a fim de garantir tais direitos, é insuficiente, causando assim o que podemos chamar de crise da garantia dos direitos. Ensina Paulo Bonavides:

“Para tais prestações, o aparelho público detém um poder de resposta insuficiente, à míngua de recursos e disponibilidades materiais. Fica, assim, patente a crise de garantia desses direitos, a saber, direitos de três gerações subseqüentes à primeira, dos quais os mais sacrificados têm sido os direitos sociais, em virtude dos retrocessos havidos por derradeiro e configurativos de toda uma tragédia que ameaça desabar sobre o Estado social contemporâneo.”11

Trazidos alguns dos vários desafios e limites existentes e enfrentados para efetivação dos direitos fundamentais sociais, é necessário apresentar algum(uns) caminho(s) que pode(m) lograr êxito nesses enormes desafios.

3. CAMINHOS PARA A SUPERAÇÃO DOS DESAFIOS

Quando os Poderes Executivo e Legislativo falham em promover os direitos fundamentais sociais, muitas das vezes é necessário recorrer ao Poder Judiciário, que exercendo suas funções atípicas, promove o que podemos chamar de Judicialização da política, isso significa que questões políticas estão sendo decididas em caráter final, através do Judiciário. Sobre tal fenômeno, ensina Boaventura de Souza Santos (2003, n.p.):

A judicialização da política conduz à politização da justiça (...) há judicialização da política sempre que os tribunais, no desempenho normal de suas funções, afetam de modo significativo as condições políticas. (Santos, 2003, n.p.)12

Chamado então a se manifestar, o Judiciário decide determinadas matérias dos direitos sociais. Vejamos alguns exemplos recentes de decisões da Suprema Corte acerca dos direitos fundamentais sociais:

  1. Reconhecimento da União Homoafetiva: No ano de 2011, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o Supremo entendeu que é possível a união estável entre duas pessoas de um mesmo sexo, sendo-lhes garantidos todos os direitos e deveres das relações entre os heterossexuais.

  2. Política de Cotas Raciais em Universidades: No ano de 2012, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, o Supremo decidiu como constitucional a adesão de cotas raciais para o ingresso nas instituições públicas do ensino superior no país, ao entender que tal política promove a igualdade no ambiente acadêmico.

  3. Fornecimento de Medicamentos de Alto Custo: Em muitas decisões, como por exemplo na Suspensão de Tutela Antecipada (STA) 175, o Supremo garantiu e fixou que o Estado é obrigado a garantir o fornecimento de medicamentos de alto custo aos pacientes que não têm condições financeiras, nesses julgados, o STF reafirma que o direito à saúde é um direito fundamental.

  4. Pesquisa com Células-Tronco Embrionárias: No ano de 2008, no julgamento da ADI 3510, o Supremo considerou constitucional a realização de pesquisas científicas que utilizam células-tronco embrionárias, entendendo que são importantes para o devido avanço científico e tecnológico da saúde e da dignidade da pessoa humana.

  5. Programa Mais Médicos: No ano de 2017, na ADI 5035, o Supremo julgou válido o Programa Mais Médicos, que visa o aumento e ampliação da oferta de atendimentos médicos em regiões carentes do Brasil, destacando novamente o caráter fundamental do direito à saúde.

  6. Reformas Trabalhistas e a Proteção ao Trabalhador: No ano de 2017, na ADI 5794, o Supremo analisou a reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017) e julgou constitucionais os dispositivos que flexibilizam as relações de trabalho, porém, também reafirmou a importância da proteção à saúde, segurança e direitos dos trabalhadores.

  7. Direito à Moradia – Reintegração de Posse e Proteção contra Despejos na Pandemia: No ano de 2021, na ADPF 828, o Supremo determinou a suspensão de despejos e remoções forçadas em áreas urbanas e rurais durante a pandemia do covid-19, essa decisão demonstrou a busca pela garantia do direito à moradia, previsto no art. 6º da Constituição, considerado um direito fundamental social.

Podemos observar então, que o Poder Judiciário é uma ferramenta poderosa na efetivação dos direitos fundamentais sociais, principalmente quando os outros poderes falham e se omitem em garantir tais direitos.

Entretanto, é necessário cuidado constante ao dar tanto controle a um só poder em detrimento dos demais, pois, isso pode levar a problemas graves, como por exemplo ao protagonismo judicial, que surge quando o Judiciário assume um papel mais ativo nas interpretações constitucionais e infraconstitucionais, valendo-se em muitos casos, dos princípios gerais do Direito e buscando preencher lacunas deixadas pelo Legislativo ou suprir a inércia do Executivo13. Tal protagonismo pode acabar levando ao decisionismo judicial, no qual os magistrados, não apenas aplicam a Lei, mas também criam normas e políticas públicas através de suas decisões. Isso pode parecer até interessante, mas é um ato que nasce com vício de origem, pois não é papel do Judiciário. Assim ensina Lênio Streck:

Não se pode olvidar a “tendência” contemporânea (brasileira) de apostar no protagonismo judicial como uma das formas de concretizar direitos. Esse “incentivo” doutrinário decorre de uma equivocada recepção daquilo que ocorreu na Alemanha pós-segunda guerra a partir do que se convencionou a chamar de Jurisprudência dos Valores (Streck, 2017, p. 18).14

Assim, mesmo que o Judiciário possa ser um caminho interessante para efetivação dos direitos fundamentais sociais, é necessário que se tenha cuidado para que isso não leve ao protagonismo judicial e consequentemente ao decisionismo, que acarretam na invasão de competências entre os poderes, o que faz mal à Democracia.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A efetivação dos direitos fundamentais sociais representa um enorme e complexo desafio no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente em face da reserva do possível e dos obstáculos financeiros e administrativos do Estado. Mesmo com a identificação constitucional e a necessidade de garantir a todos os cidadãos condições mínimas de dignidade, a implementação de tais direitos encontra dificuldades, que vão da falta de recursos públicos até a corrupção enraizada e a incapacidade administrativa.

A reserva do possível, ainda que tenha sido criada com intuito de frear a atuação estatal considerando suas capacidades orçamentárias, não deve ser utilizada como justificativa para omissões estatais acerca dos direitos fundamentais sociais. Deve o Estado buscar o equilíbrio entre a questão orçamentária e a efetivação das necessidades básicas e fundamentais do povo, de forma a garantir a realização plena do mínimo existencial. As decisões do Supremo Tribunal Federal que foram mencionadas nesse trabalho, demonstram a importância de impedir os retrocessos no tocante aos direitos sociais e reforçam o papel do Poder Judiciário na proteção desses direitos.

O protagonismo e o decisionismo judicial surgem quando o Judiciário tenta dar uma resposta à inércia do Executivo e do Legislativo nas execuções de políticas públicas. Entretanto, tal atuação deve se dar nos limites constitucionais, para que não haja usurpação de funções entre os Poderes e consequentemente, o enfraquecimento da Democracia. É fundamental que os Poderes atuem de maneira pacífica e harmônica, presando por suas competências e limites e assim garantindo a plena efetivação das políticas públicas que protegem os direitos fundamentais sociais.

A implementação eficaz dos direitos fundamentais sociais também vem da necessidade de que se tenha uma administração pública mais eficaz e transparente. O esbanjamento de recursos públicos, a falta de planejamento e a corrupção são fatores que atrapalham diretamente a concretização desses direitos. Providências como o aprimoramento da gestão pública, o uso de mecanismos de controle e principalmente a participação popular na fiscalização dos gastos públicos são essenciais para reversão desse quadro.

Outro quadro importante é o fortalecimento das políticas públicas que visam promover a inclusão social no país. Os programas como Mais Médicos, o Bolsa Família e também as políticas das cotas raciais e socioeconômicas, mostram que é plenamente plausível a criação de soluções concretas que visam reduzir as desigualdades, e ampliação do acesso aos direitos fundamentais sociais. Porém, tais políticas devem ser frequentemente avaliadas e melhoradas para garantir seu alcance e sua eficácia.

É necessário mencionar também a importância da sociedade civil na busca pela efetivação dos direitos fundamentais sociais. Os movimentos sociais, as ONG’s e a própria população possuem um papel importante na cobrança de medidas eficazes e na fiscalização da atuação do poder público. A conscientização e o engajamento social são ferramentas poderosas para construção de um país mais justo e mais igualitário.

Em resumo, a efetivação dos direitos fundamentais sociais requer uma abordagem mais complexa, que envolve gestão pública mais eficiente, atuação dos três poderes dentro de suas competências, políticas públicas mais eficazes e a participação da população de maneira ativa. Com a concentração mútua de esforços e com o compromisso de todas as esferas sociais será possível garantir a efetivação dos direitos fundamentais sociais e que os princípios constitucionais serão efetivamente respeitados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 10 de fevereiro de 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4277, Distrito Federal. Relator: Min. Ayres Britto. Julgado em 5 de maio de 2011. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 14 out. 2011. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635. Acesso em: 11 de fevereiro de 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.510, de 29 de maio de 2008. Relator: Min. Carlos Ayres Britto. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 29 maio 2008. Disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=ADI%203.510&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1. Acesso em: 11 de fevereiro de 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 5035, de 30 de novembro de 2017. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 29 jul. 2020. Disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=ADI%205035&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1. Acesso em: 11 de fevereiro de 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extraordinário n.º 639.337, de 23 de agosto de 2011. Relator: Min. Gilmar Mendes. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 30 ago. 2011. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=627428. Acesso em: 10 de fevereiro de 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 132, Distrito Federal. Relator: Min. Ayres Britto. Julgado em 5 de maio de 2011. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 14 out. 2011. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docID=628633&docTP=AC&pgF=25&pgI=21. Acesso em: 11 de fevereiro de 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 186, Distrito Federal. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Julgado em 26 de abril de 2012. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 20 out. 2014. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastfarquivo/anexo/adpf186.pdf. Acesso em: 11 de fevereiro de 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 488.208, de 15 de maio de 2013. Relator: Min. Gilmar Mendes. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 23 ago. 2013. Disponível em: https://site.mppr.mp.br/sites/hotsites/arquivos_restritos/files/migrados/File/juris/stf_obrigacao_do_municipio_implementar_conselhos_tutelares.pdf. Acesso em: 10 de fevereiro de 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada n.º 175, de 30 de abril de 2010. Relator: Min. Gilmar Mendes. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 30 abr. 2010. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docID=610255&docTP=AC. Acesso em: 11 de fevereiro de 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 828. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Brasília, DF, 3 de junho de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15359285428&ext=.pdf. Acesso de 13 de fevereiro de 2025.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2004.

MONTESQUIEU. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

SANTOS, Boaventura de Souza. Judicialização da política. Centro de Estudos Sociais. Universidade de Coimbra, mai. 2003. Disponível em: https://www.publico.pt/2003/05/27/jornal/a-judicializacao-da-politica-201706. Acesso em: 11 de fevereiro de 2025.

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito ao mínimo existencial não é uma mera garantia de sobrevivência. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-mai-08/direitos-fundamentais-assim-chamado-direito-minimo-existencial. Acesso de 12 de fevereiro de 2025.

SCHLESINGER JR., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune, v. 35, n. 73, jan. 1947.

SILVA. José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 37ª edição, São Paulo, Malheiros Editora, 2013.

STRECK, L.L. O que é isto – decido conforme minha consciência? 6ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.


1 Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA-RJ). Professor do Programa de Pós-Graduação stricto sensu da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM).

2 Advogado, Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM), na área de concentração “Constitucionalismo e Democracia”. E-mail: [email protected], lattes: http://lattes.cnpq.br/3014486759051656.

3 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF

4 SILVA. José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 37ª edição, São Paulo, Malheiros Editora, 2013, p.288

5 SILVA. José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 37ª edição, São Paulo, Malheiros Editora, 2013, p.288.

6 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2004, p. 481.

7 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 374.

8 MONTESQUIEU. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

9 Voto do Ministro Celso de Mello no Recurso Extraordinário 208-SANTA CATARINA. STF, 2013.

10 SARLET, Ingo Wolfgang. O direito ao mínimo existencial não é uma mera garantia de sobrevivência.

11 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 30

12 SANTOS, Boaventura de Souza. Judicialização da política. Centro de Estudos Sociais. Universidade de Coimbra, mai. 2003

13 SCHLESINGER JR., A. M. The Supreme Court: 1947. Fortune, v. 35, n. 73, jan. 1947.

14 STRECK, L.L. O que é isto – decido conforme minha consciência? 6ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017, p. 18