(IN)TRANSCENDÊNCIA DA PENA: ANÁLISE DOS LIMITES DA SANÇÃO PENAL E SEUS EFEITOS SOBRE FAMILIARES E TERCEIROS

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17221406


Hugo Rocha Ramos Pinto1
Márcia Pruccoli Gazoni Paiva2


RESUMO
O presente trabalho analisa os limites da sanção penal, o princípio da intranscendência da pena e seus efeitos sobre familiares e terceiros. O objetivo foi investigar como a pena impacta pessoas próximas ao condenado e identificar formas de garantir o respeito à intranscendência. A metodologia envolveu pesquisa em Anuários de Segurança Pública, jurisprudência e doutrina pátria. Os resultados mostram que o sistema carcerário brasileiro atua como um “moedor”, na expressão popular, prejudicando familiares, terceiros e dificultando a ressocialização do apenado. Conclui-se que é possível humanizar a execução penal e reduzir seus efeitos indiretos por meio de penas alternativas, flexibilização normativa, atuação judicial consciente e projetos legislativos. Tais medidas conciliam punição e dignidade humana, evitando a penalização injusta de terceiros.
Palavras-chave: intranscendência da pena, efeitos sobre terceiros, dignidade da pessoa humana, sistema carcerário, penas alternativas, ADPF 374.

ABSTRACT
This paper analyzes the limits of criminal sanction, the principle of non-transcendence of punishment, and its effects on family members and third parties. The objective was to investigate how punishment impacts those close to the convicted individual and to identify ways to ensure respect for the principle of non-transcendence. The methodology involved research in Public Security Yearbooks, case law, and Brazilian legal doctrine. The results show that the Brazilian prison system operates as a “grinder,” in popular expression, harming families, third parties, and hindering the social reintegration of the inmate. It is concluded that it is possible to humanize criminal enforcement and reduce its indirect effects through alternative penalties, regulatory flexibility, conscious judicial action, and legislative initiatives. Such measures reconcile punishment with human dignity, preventing the unjust penalization of third parties.
Keywords: non-transcendence of punishment, effects on third parties, human dignity, prison system, alternative penalties, ADPF 374.

1 INTRODUÇÃO

A pena criminal, em sua função repressiva e preventiva, representa uma das formas mais incisivas de atuação do Estado sobre o indivíduo. No entanto, os efeitos de sua aplicação não se restringem à pessoa do condenado. Embora o artigo 5º, inciso XLV, da Constituição Federal consagre o princípio da intranscendência da pena — ou seja, de que ela não pode ultrapassar a pessoa do condenado —, a realidade concreta revela que o sistema penal brasileiro ainda produz efeitos profundos e danosos sobre familiares e terceiros, especialmente em contextos de vulnerabilidade social.

Este artigo tem como objetivo central analisar, à luz dos fundamentos constitucionais e da jurisprudência dos tribunais superiores, a tensão entre o ideal da pessoalidade da pena e sua transcendência fática. Em outras palavras, busca-se compreender como, mesmo diante de garantias constitucionais expressas, a pena acaba por atingir, de forma reflexa, pessoas que não participaram do fato criminoso, mas que arcam com seus efeitos colaterais.

A abordagem parte da conceituação da pena e de suas finalidades no Estado Democrático de Direito, com ênfase nas teorias retributiva, preventiva e mista, a fim de situar o problema no campo da teoria geral. Em seguida, são apresentados os princípios constitucionais que limitam a atuação punitiva do Estado, destacando-se a dignidade da pessoa humana, a pessoalidade da pena e a responsabilidade penal subjetiva. Na sequência, examina-se a transcendência fática da pena e suas repercussões sobre terceiros, em especial os impactos socioeconômicos, a estigmatização social e o rompimento de vínculos familiares.

Além da análise teórica e normativa, o trabalho também incorpora jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, com destaque para a ADPF 347, que reconheceu o estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, além de dados empíricos que evidenciam o alcance extrapatrimonial da pena. Por fim, propõem-se alternativas de atuação pautadas no garantismo penal e na proteção integral de direitos fundamentais, visando à construção de um sistema penal mais justo e humanizado.

A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica e documental, com base em doutrina especializada, legislação nacional, jurisprudência dos tribunais superiores e relatórios de organismos oficiais. A estrutura do trabalho foi organizada em seis capítulos: o primeiro introdutório; o segundo dedicado aos fundamentos e finalidades da pena; o terceiro, aos princípios constitucionais limitadores; o quarto, às repercussões da pena sobre terceiros; o quinto, à análise da jurisprudência e aos limites constitucionais da sanção penal; e o sexto, às considerações finais e propostas conclusivas.

2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS E FINALIDADE DA PENA

A pena é uma das mais tradicionais respostas do Estado ao crime, mas sua fundamentação e finalidade variam conforme o momento histórico e a concepção de justiça adotada. Este capítulo tem como objetivo apresentar os principais fundamentos teóricos que justificam a aplicação da pena, bem como discutir suas finalidades retributiva, preventiva e ressocializadora, destacando as tensões e contradições que emergem na prática do sistema penal.

2.1 CONCEITO E FINALIDADE DA PENA

A análise do conceito de pena é ampla, variando seu significado conforme cada cultura (ocidental e oriental), bem como para cada forma de organização de Estado (absolutista, democrático, Democrático de Direito), além de variar de doutrina para doutrina. Assim sendo, há toda uma disciplina concernente à Teoria Geral da Pena, que analisaremos de forma sucinta a fim de compreender a evolução histórica do significado de pena no Direito Penal.

Em se tratando do ordenamento jurídico pátrio, onde vigora o Império da Lei, isto é, o Estado Democrático de Direito, pode-se traduzir a pena como a sanção jurídica de natureza criminal, imposta pelo Estado através do Poder Judiciário, em decorrência da prática de uma infração penal, que tem como fundamentos a retribuição pelo ilícito cometido, a prevenção de novos delitos e a busca pela ressocialização do condenado, sempre em conformidade com os limites constitucionais e os princípios do direito penal.

“um ‘mal’ que se impõe ‘por causa da prática de um delito’: conceitualmente, a pena é um ‘castigo’. Porém, admitir isto não implica, como consequência inevitável, que a função — isto é, fim essencial — da pena seja a retribuição” (BITENCOURT, p. 108).

Aqui, entende-se, sim que a pena é um "castigo", ou seja, uma consequência do ato praticado pelo agente delitivo – e nesse sentido, diferenciando-se da Teoria Retributiva da Pena, há como bem menciona Roberto Bitencourt, uma finalidade reflexa a ser alcançada. Assim, temos a adoção da teoria mista, também chamada de eclética.

Em um Estado Democrático de Direito, a pena tem um viés muito mais preventivo que tão somente punitivo e, dessa maneira, tem duas vertentes: a prevenção geral – negativa e positiva – e prevenção especial. Objetiva-se, portanto, não somente punir aquele que eventualmente praticar um ato tipificado como delito no Código Penal, mas também evitar que se delinqua e, ainda, refrear penas arbitrárias do Estado – sim, porque estando a pena definida na lei, não há como o Estado abusar desse instituto. Nos termos do art. 59 do Código Penal, “o que seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.

Na Teoria Absoluta da Pena, ou Retributiva, entende-se a pena como retribuição ao mal causado por um delito, sendo que sua imposição se justifica tão apenas por punir o ato que feriu o ordenamento jurídico. Muito comum na Idade Média e nos Estados de sistema político absolutista que predominaram na Europa entre os séculos XVI e XIX, resume-se então na pena como fim de fazer justiça e só. A culpa do autor, por ferir a lei, é compensada com a imposição de um mal (a pena).

Abarcando a Teoria Relativa ou Preventiva da Pena, tem-se, então, a prevenção geral com a finalidade de prevenir delitos e incide diretamente sobre a sociedade – em seu sentido negativo, também chamado intimidatório, visa desestimular a prática de delitos futuros através da imposição da pena, prevendo um castigo; um mal. Aqui, se avisa aos cidadãos que as ações que venham a cometer e que atentem contra o ordenamento jurídico estarão sujeitas ao ricochete do Estado que, em aplicando a pena prevista, evidencia que tem capacidade (no sentido jurídico da palavra) e força suficiente para fazer valer a pena prevista.

Ataca, então, diretamente aquilo que a criminologia vem a definir como a Teoria da Escolha Racional, proposta por Ronald Clarke e Derek Cornish em 1987, onde o potencial delinquente pondera se cometerá um ato delitivo no viés da sanção prevista ser inferior aos benefícios resultantes do ato (Silva Sánchez). Havendo uma pena eficaz prevista para o delito a ser ponderado, a balança pesa negativamente e, nesse sentido, a prevenção negativa dissuadiria o potencial delinquente.

Por sua vez, a prevenção geral positiva vislumbra não reeducar o delinquente, nem dissuadir potenciais delinquentes, mas sim oferecer estabilidade ao ordenamento jurídico. Assim, objetiva-se atribuir consciência jurídica aos cidadãos da necessidade de obedecer a ordem vigente, bem como de respeitar os bens jurídicos por ela tutelados. Visa unificar a finalidade da pena com a promoção de condutas socialmente aceitas e, na lição de Bitencourt, em suas primeiras versões, foi duramente criticada porque, porque com a reafirmação da fidelidade ao sistema e com a imposição de “padrões éticos”, ocasionou na experiência do regime nazista.

Já na Teoria da Prevenção Especial, busca-se evitar a prática do delito, mas, ao invés de dirigir-se a toda a coletividade (como na prevenção geral), incide tão somente ao delinquente a fim de que não mais delinqua. São divididas, também, em duas: especial positiva, que intenciona a reeducação do delinquente, e a negativa, que visa neutralizar o delinquente tido como perigoso.

Na primeira, são utilizadas ferramentas pedagógicas a fim de reeducar o infrator a fim de reinseri-lo na sociedade devidamente ressocializado, reabilitado e, sendo o caso, tratado. Já na segunda, que vale mencionar, não se contrapõe à primeira e não são mutuamente exclusivas, concorrendo para o alcance do fim preventivo conforme a personalidade do agente, tem-se que a "neutralização" do agente infrator se resume em apartá-lo da sociedade a fim de que contra ela não mais cometa danos.

Alçando o primeiro parágrafo, temos por fim, a Teoria Mista, chamada também de Unificadora ou Eclética, que foi adotada pelo ordenamento jurídico pátrio. desenvolvida por Adolf Merkel e é a predominante no sistema jurídico das nações que adotam o regime democrático de direito. Assim sendo, a pena é uma retribuição ao condenado por seu delito, e também uma forma de prevenção a novos delitos. Agora que já foram expostas as teorias históricas da pena, é possível inferir o porquê do nome dessa teoria em específico ser "mista" ou "unificadora": unifica os objetivos das teorias retributivas e preventivas, adaptando-as aos moldes modernos.

Como mencionado anteriormente, ambas as teorias eram alvos de crítica, seja a retributiva por vir de um modelo já ultrapassado de concepção de pena e de visão unicamente punitivista, ou a preventiva, sobretudo em se tratando dos resultados no século XX por ela ocasionados. Inácio Carvalho Neto ensina que a Teoria Mista nasce daí, as unificando e aplicando os fins retributivos e preventivos de forma concorrente: “das críticas opostas a estas teorias surgiram às chamadas teorias mistas ou ecléticas, que tentam fundi-las, mesclando-se os conceitos preventivos com os retributivas” (CARVALHO NETO, p. 16).

2.2. POR QUE PUNIR?

Partindo da premissa de que o ordenamento jurídico pátrio adota a Teoria Unificadora da Pena, tem-se que a pena não tem um único significado – punitivista – nem tão somente educador, mas ambos em um conceito uno e indivisível, além de potencial limitador do poder punitivo estatal. Nesse sentido:

A pena se justifica, não para retribuir o fato delitivo cometido, mas, sim, para prevenir a sua prática. Se o castigo ao autor do delito se impõe, segundo a lógica das teorias absolutas, somente porque delinquiu, nas teorias relativas a pena se impõe para que não volte a delinquir. Ou seja, a pena deixa de ser concebida como um fim em si mesmo, sua justificação deixa de estar baseada no fato passado, e passa a ser concebida como meio para o alcance de fins futuros e a estar justificada pela sua necessidade: a prevenção de delitos. Por isso as teorias relativas também são conhecidas como teorias utilitaristas ou como teorias preventivas (BITENCOURT, p. 330)

Além das finalidades da pena, já explicitadas no tópico anterior, persiste uma questão de caráter sociológico: por que punir? Ou, ainda, por que o Estado tem o dever de punir? Se, na esfera histórica analisada, os séculos XVIII e XIX representam o início do Direito Penal sob a égide de um sistema laico, formal e abstrato, que intenciona regular conflitos sociais de modo que as pessoas vivam em paz e gozem da totalidade de seus bens jurídicos através do contrato social, os séculos XX e XXI indicam, com seus exemplos históricos – e com a história em andamento –, a construção de novos limites para o Direito Penal.

Entende-se como sociedade de risco uma mudança de paradigma na qual o foco do sistema punitivo desloca-se da repressão de danos efetivamente causados para a antecipação e prevenção de riscos potenciais. Essa lógica surge da crescente complexidade das sociedades contemporâneas, marcadas por tecnologias avançadas, fluxos globais e interdependência sistêmica, em que certas condutas — ainda que não tenham causado lesão efetiva — são consideradas suficientemente perigosas para justificar a intervenção penal (BICUDO, p. 129).

Trata-se, portanto, de uma concepção moderna que estuda a evolução da sociedade e do Estado, com suas características intrínsecas. A primeira, no modo como se estrutura socialmente e estabelece relações; o segundo, na forma como regula e direciona seus poderes a fim de promover condições suficientes para que se estabeleçam relações sociais — incluindo-se, nesse contexto, o Direito Penal.

Nesse cenário, o Direito Penal passa a atuar com base na gestão de riscos, criminalizando condutas que antes seriam consideradas irrelevantes, como forma de proteger bens jurídicos difusos. Surge então o chamado “Direito Penal do Inimigo”, que a doutrinadora traz como “Direito do Risco”, em que o sujeito é punido não tanto pelo que fez, mas pelo que representa como ameaça. Essa antecipação da tutela penal suscita intensos debates sobre os limites da legalidade, da presunção de inocência e da proporcionalidade da pena.

Ocorre que o pensamento articulador da visão do Direito Penal do risco se extrai de que o Direito Penal é a única forma de controle normativo do Estado suficiente para lidar com a questão dos riscos de uma sociedade contemporânea globalizada e tecnológica como a que estamos inseridos. Figura mais como uma caricatura da sociedade em que o Direito Penal e também como um

"instrumento simbólico, representando uma maneira de apaziguar ansiedades e inseguranças subjetivas, que se presentificam nos discursos catastróficos com relação aos riscos da vida no planeta" (BICUDO, p. 187).

Ainda nos ensinamentos da doutrinadora exposta acima, os problemas apontados em uma sociedade de risco não deveriam ter tratamento único no âmbito do Direito Penal. Em se tratando de uma sociedade globalizada, é certo que há a disposição de instrumentos normativos transnacionais e a possibilidade de políticas voltadas a contrapor as possibilidades de os riscos previstos, i.e., os eventuais delitos, se realizarem.

Um claro exemplo são os tratados internacionais, com a adesão de países de um mesmo continente, por exemplo, a fim de desenvolver programas de educação e políticas que minimizem a desigualdade social intra e entre países (BICUDO, 187).

Nesses moldes, é provável que a aplicação do Direito Penal seria tão somente residual – como, aliás, é previsto no ordenamento jurídico pátrio, sendo este a ultima ratio.

Assim, não se objetiva com esse tópico refutar a necessidade da punição do Estado em resposta à uma infração, porque ela é necessária, mas sim evidenciar ainda mais aquilo que já é latente nesse século: o Estado ainda pune – e muito – sobretudo porque, em se tratando de uma sociedade moderna, não acompanhou a evolução social e cultural dos cidadãos. Novos desafios foram lançados no século XXI e, com eles, novas ferramentas de enfrentamento: não há porquê limitar-se tão somente ao Direito Penal como forma tida como “mais eficaz”, tão somente porque foi a forma como, historicamente, foi convencionada como de praxe.

3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS LIMITADORES DA SANÇÃO PENAL

Conforme mencionado, o Direito Penal se põe como a ultima ratio do Estado no uso de seu poder estatal de regular as relações dos cidadãos componentes da sociedade, i.e., aqueles abrangidos pelo pacto social que se perfaz até hoje século moderno. Em outras palavras, só é legítima a intervenção do Estado pelo Direito Penal porque há uma concordata, ainda que subentendida, entre os indivíduos que compõem o Estado, ou seja, a sociedade, e a própria Administração.

Nesse sentido, é extremamente necessário que haja um mecanismo, uma espécie de freio, à pretensão punitiva estatal a fim de que ela não toque descomedidamente, nem sem algum critério como foi no passado. Assim sendo, houve por bem a Constituição Federal trazer em seu bojo alguns princípios com força normativa de caráter constitucional a fim de regular, também, a relação do Estado com os indivíduos sob sua égide. Inúmeros são os princípios constitucionais que limitam o poder sancionador da Administração Pública, a saber – com foco, o princípio da intranscendência da pena –, o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da presunção de inocência, da proporcionalidade, a vedação ao bis in idem, dentre tantos outros consagrados na Carta Magna.

3.1 Dignidade da pessoa humana como fundamento do Direito Penal

O princípio da dignidade da pessoa humana se encontra elevado ao patamar de fundamento constitucional do Estado Democrático de Direito logo no art. 1°, III da Carta da Primavera. Sua principal missão é a preservação do ser humano, do nascimento à morte, conferindo-lhe autoestima e garantindo-lhe o mínimo existencial (NUCCI, 2015, p.31) Figurando como fundamento da República, é por silogismo a afirmação de que a dignidade da pessoa humana também figure como fundamento do Direito Penal – e de outros ramos do Direito admitidos no Brasil.

Por assim estabelecer a Constituição Federal, tem-se que brotam desse fundamento uma série de garantias e direitos relacionados à pessoa submetida ao crivo do processo penal pelo Estado. Substancialmente, também dele deriva o devido processo legal – e tudo o que ele compreende, ou seja, o respeito aos Direitos Humanos, às prerrogativas de cada cidadão brasileiro e um tratamento digno no decurso do processo:

Para que se concretize a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais dos cidadãos, a cláusula principiológica do devido processo legal substancial desemboca na utilização do postulado ou princípio instrumental da razoabilidade/proporcionalidade, como recurso metodológico indispensável para a concretização hermenêutica de um direito processual mais legítimo e efetivo, de modo a realizar a noção de justiça mais adequada [...] (SOARES, p. 158)

Os bens tutelados pelo Direito Penal, como a vida, honra, integridade física, liberdade, privacidade, dentre outros, são tutelados por força do princípio da dignidade da pessoa humana, garantindo aos que atentarem contra esses bens jurídicos, as penas cominadas aos respectivos delitos. Como supramencionado, já na vertente do processo penal, que é constituído para servir de base ao justo procedimento da apuração da existência da infração penal e seu autor, dá-se especial relevo à dignidade da pessoa humana no decurso do devido processo legal, pela observância de pressupostos e garantias pessoais (NUCCI, 2015).

Por conseguinte, não há que se falar em Direito Penal sem respeito à dignidade da pessoa humana, que também dele se constitui como um princípio regente, fundamento, uma espécie de garantia basilar, sem a qual não há possibilidade de uma persecução penal justa:

Do fato de o país ser um Estado Democrático de Direito assentado no valor da dignidade humana, extrai-se pelo menos algumas regras básicas sobre como o processo penal deve ser construído e atuado: a) no processo deve-se proporcionar efetiva e contraditória participação das partes, a fim de que possam, de forma democrática, contribuir para o seu julgamento; b) na investigação, no processo condenatório, no processo de execução deve-se levar em conta a dignidade da pessoa submetida à persecução ou ao cumprimento da pena, sendo vedados atos atentatórios aos seus valores essenciais; c) em qualquer tipo de processo deve-se assegurar ao investigado, ao acusado ou ao condenado mecanismos para se defender contra atos violadores de sua dignidade humana, assegurando-lhe, por exemplo, meios para proteger a sua liberdade (FERNANDES, 2009).

A lição de Fernandes evidencia que a dignidade da pessoa humana não é apenas uma cláusula abstrata, mas um verdadeiro vetor interpretativo e prático do Direito Penal e Processual Penal. Ela exige que todo o sistema de persecução penal seja estruturado de forma a assegurar não apenas a repressão ao crime, mas também o respeito incondicional ao ser humano que figura como acusado, investigado ou condenado, de modo a preservar a legitimidade do próprio Estado Democrático de Direito.

3.2 Princípio da intranscendência da pena (art. 5º, XLV, CF/88)

O princípio da intranscendência da pena deriva do princípio da personalidade, também denominado princípio da responsabilidade pessoal. Este, por sua vez, estabelece que a punição deve concentrar-se exclusivamente na pessoa do autor do ilícito, sem alcançar outros indivíduos, independentemente do grau de proximidade que mantenham com ele. Conforme prevê o inciso XLV do art. 5º da Constituição Federal: "nenhuma pena passará da pessoa do condenado", destinando-se a ele – o condenado – as medidas adotadas pelo Estado-juiz ao proferir a sentença.

A doutrina classifica as consequências da sanção penal em prejudicialidades direta e indireta. Na modalidade direta, a pena restringe a liberdade individual do condenado, resultando no cumprimento de pena privativa de liberdade, restritiva de direitos ou, ainda, em medidas cominadas contra o patrimônio do infrator, como no caso de pena pecuniária.

De forma indireta, os reflexos da pena atingem terceiros, muitas vezes alheios ao ilícito cometido, que mantêm laços com o sentenciado. A família tem o convívio afetivo interrompido; em se tratando do provedor do lar, o sustento familiar é comprometido; além disso, são afetadas relações empregatícias, educacionais, amorosas e, em suma, todas as interações sociais estabelecidas ao longo da vida pregressa do infrator.

Tem-se, então, uma espécie de princípio da intranscendência da pena “temperado” ou mitigado – é admissível que direitos e garantias possam ser, excepcionalmente, restringidos ou reduzidos em situações especiais, uma vez que não possuem caráter absoluto. Contudo, extrai-se que, no âmbito das sanções penais, embora esse princípio se destine de forma exclusiva ao condenado – não havendo que se falar em intranscendência da pena sem um apenado –, a aplicação integral desse fundamento constitucional mostra-se, na prática, precária e quase inviável.

Não há como evitar completamente a transcendência da pena, uma vez que a própria condição de apenado gera reflexos inevitáveis sobre terceiros, conforme exemplificado e amplamente reconhecido pela doutrina. A realidade do sistema penal demonstra que, embora o ordenamento jurídico aspire à estrita pessoalidade da pena, seus efeitos indiretos transcendem o condenado e atingem seu entorno social, revelando uma tensão permanente entre o ideal normativo e a concretude fática.

O princípio tem por fim exclusivo assegurar que a punição direta do Estado em relação ao indivíduo não se espraie, atingindo terceiros, não participantes do delito. No mais, a nocividade relativa e indireta da pena, no contexto social, é um mal necessário, impossível de ser evitado, dada a natureza do crime e sua dimensão presente e incontornável (NUCCI, 2015).

Observa-se, portanto, que o princípio da intranscendência da pena, embora constitucionalmente garantido, encontra na realidade social um limite intransponível: a pena, ainda que destinada apenas ao infrator, inevitavelmente transcende, atingindo de forma reflexa sua família e seu círculo social, revelando a tensão entre norma e prática no âmbito penal.

3.3 Responsabilidade penal subjetiva e pessoalidade da pena

Vige no ordenamento jurídico pátrio o princípio da responsabilidade penal que a punição aplicada pelo Estado só deve ocorrer havendo dolo, ou seja, a intenção de cometer o crime - ou a culpa, caracterizada por negligência, imprudência ou imperícia por parte do sujeito ativo. Em linhas gerais, busca-se reservar a intervenção penal àqueles que, por vontade própria, atentaram contra bens jurídicos tutelados ou o fizeram por descuido ou incapacidade de agir corretamente. Assim, a garantia de que a pena não passa da pessoa do delinquente, bem como a impossibilidade de responsabilização penal sem dolo ou culpa, encontra plena consonância no sistema penal brasileiro.

Se, por um lado, é inviável promover ação penal generalizada contra várias pessoas apenas presumidamente vinculadas ao delito, sob pena de se violar o princípio da intrancendência e da presunção de inocência, uma vez que se imputaria responsabilidade objetiva, presumindo dolo ou culpa sem comprovação; por outro lado, é admissível a denúncia genérica quando se demonstrar, de forma detalhada, a atuação dolosa ou culposa de diversos agentes (NUCCI). Isso se deve justamente ao princípio da responsabilidade penal subjetiva, pois, havendo prova do dolo ou da culpa, em contexto de concurso de pessoas, é possível formular acusação abrangente, desde que cada conduta seja posteriormente individualizada e apreciada no curso do processo.

Nessa hipótese, a pena permanece restrita a cada autor ou participe, respeitando-se, portanto, a pessoalidade e subjetividade da responsabilidade penal.

4 TRANSCENDÊNCIA FÁTICA DA PENA: REPERCUSSÕES SOBRE TERCEIROS

Embora a Constituição proíba que a pena passe da pessoa do condenado (art. 5º, XLV), na prática, familiares e pessoas próximas ao preso sofrem consequências diretas da sanção penal. Esse capítulo serve para mostrar como e por que a pena atinge terceiros, e que isso precisa ser reconhecido, analisado e, quando possível, reparado ou evitado.

4.1. Impactos socioeconômicos sobre familiares de apenados

Levantamentos do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2025), revelam que, no Brasil, em 2024, havia 905.843 pessoas privadas de liberdade no sistema penitenciário, enquanto aproximadamente 5.989 pessoas encontravam-se sob custódia das polícias, totalizando 909.594 cidadãos com sua liberdade cerceada. Em um país de 212 milhões de habitantes, como o Brasil, isso representa uma taxa de 427,9 pessoas privadas de liberdade para cada cem mil habitantes.

Sob uma perspectiva otimista, considerando que para cada preso – tendo em vista que a população carcerária é majoritariamente masculina, conforme indicado pelo Anuário existam pelo menos duas pessoas diretamente afetadas (por exemplo, mãe e um filho), pode-se inferir que, em 2024, aproximadamente 2,7 milhões de pessoas sofreram impactos diretos e indiretos decorrentes do sistema carcerário. Esses efeitos incluem desde déficit econômico e isolamento social até o aumento do trabalho feminino para suprir os custos de sobrevivência da família – o que, consequentemente, reduz a atenção destinada às crianças, influenciando diretamente em sua educação e sociabilidade durante o período crucial de formação infantojuvenil.

Dados do Observatório Nacional de Direitos Humanos indicam que, em 2022, cerca de 41 milhões de famílias estavam cadastradas no CadÚnico, das quais 35.034 relataram ter um familiar preso há menos de 12 meses. Nesse contexto, as famílias inscritas no CadÚnico que possuem algum parente encarcerado enfrentam dificuldades ainda maiores – sendo que a renda média mensal por pessoa, segundo o ObservaDH, é de apenas R$ 182,56.

Cabe salientar que, durante a permanência no sistema penitenciário – que, como mencionado, é majoritariamente composto por pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica –, as famílias arcam custosamente com despesas como honorários advocatícios, visitas (incluindo transporte), alimentação e itens básicos de higiene e saúde, muitas vezes não providenciados adequadamente pelo Estado. Dessa forma, além de minar o poder econômico familiar uma vez que, em muitos casos, o preso era o principal provedor, o encarceramento impõe aos familiares a necessidade de suplementar financeiramente a subsistência do indivíduo privado de liberdade, agravando ainda mais a situação econômica do núcleo familiar e, não raro, aprofundando sua condição de pobreza e vulnerabilidade social.

4.2. Estigmatização, exclusão social e efeitos psicológicos

A prisão não atinge apenas o indivíduo condenado, mas irradia efeitos por toda a sua rede de relações, especialmente sobre a família, que frequentemente é submetida a processos de estigmatização e exclusão social. A sociedade tende a associar os familiares do apenado à prática delituosa, como se a responsabilidade penal se estendesse além do sujeito que cometeu a infração. Esse estigma social manifesta-se de múltiplas formas e produz impactos profundos na vida cotidiana de filhos, cônjuges, mães e demais pessoas próximas.

No caso de crianças e adolescentes, é comum a ocorrência de exclusão em ambientes escolares, seja por meio de bullying explícito, seja pela sutileza da rejeição e do isolamento social. O rótulo de "filho de preso" pode comprometer seriamente o desenvolvimento emocional, a autoestima e o desempenho acadêmico, uma vez que a criança passa a ser definida não por suas próprias características, mas pela condição de seu genitor. Essa experiência de marginalização precoce alimenta um ciclo de vulnerabilidade social com repercussões potencialmente duradouras.

As mulheres, em especial esposas e mães de pessoas presas, também sofrem severamente com a estigmatização. Frequentemente tornam-se alvo de olhares de desconfiança, comentários depreciativos ou mesmo discriminação direta em seus ambientes de trabalho. Além disso, podem perder o apoio da comunidade e até mesmo amizades próximas devido à associação automática com a figura do apenado. Em alguns casos, o estigma chega a comprometer a manutenção do emprego, ampliando as dificuldades econômicas já agravadas pela ausência do provedor ou pelos custos adicionais decorrentes do encarceramento, como despesas com visitas, assistência jurídica e envio de mantimentos.

No plano psicológico, a experiência de ter um ente querido encarcerado é frequentemente acompanhada por sentimentos de vergonha, dor e culpa. O preconceito social tende a intensificar essas emoções, levando os familiares ao isolamento ou ao ocultamento de sua realidade por medo da rejeição. Essa vivência, quando prolongada, favorece o desenvolvimento de transtornos como ansiedade, depressão, insônia e sintomas psicossomáticos. A ausência de políticas públicas voltadas ao acolhimento dessas famílias agrava ainda mais o cenário, uma vez que o suporte institucional é mínimo e os familiares acabam enfrentando o sofrimento em solidão.

Assim, a estigmatização e a exclusão social não apenas violam frontalmente o princípio da intranscendência da pena – segundo o qual a sanção deve recair exclusivamente sobre o condenado –, como também produzem efeitos psicológicos e sociais que comprometem a dignidade e os direitos fundamentais dos familiares. Reconhecer essa realidade é essencial para ampliar a compreensão dos efeitos colaterais do encarceramento e fomentar medidas que visem não apenas à ressocialização do preso, mas também à proteção e ao fortalecimento de sua família, que permanece injustamente penalizada pelo peso do estigma.

4.3. Encarceramento e rompimento de vínculos familiares

É notório que o principal efeito do encarceramento é o afastamento do indivíduo apenado do convívio social – e por mais que haja uma relação com a “salvaguarda da sociedade” a fim de preservá-la do potencial delinquente. Contudo, efeito reflexo também é aplicado no convívio familiar, que é exponencialmente tolhido à medida em que se assevera o regime de cumprimento da pena.

Essa medida extrema aplicada pelo Estado resulta em uma série de consequências que afetam diretamente o núcleo familiar, aumentando drasticamente o número de divórcios em relações com indivíduos apenados3. Junto do divórcio, quase sempre existe também o conflito entre os pais e esse fator influencia consideravelmente o bem-estar da criança fruto da relação, podendo causar transtornos na conduta, como a delinquência juvenil – o que pode alimentar o sistema carcerário –, o baixo desempenho escolar, ansiedade e, eventualmente, agressão (Grynch & Finchman, 1990), tudo isso por conta da perda da referência parental e da sensação de abandono que muitas crianças com pais divorciados experimentam.

Para além disso, é óbvio que o afastamento repentino causado pela prisão de um dos pais, ou de um dos filhos ou irmãos causa traumas nos entes familiares muitas vezes irreparáveis, ou que demandem acompanhamento frequente com psicólogos e psiquiatras – esbarrando, novamente, na barreira econômica que muitos núcleos familiares com componentes apenados enfrentam –, o que, muitas vezes, não ocorre, causando verdadeiro prejuízo à saúde dos familiares dos detentos.

Não obstante, muitas vezes a própria dinâmica do sistema carcerário impede, ou dificulta consideravelmente, o contato dos familiares com o preso, no sentido de que muitos dos que visitam os indivíduos em reclusão passam por procedimentos vexatórios, já reconhecidos, inclusive, pela Excelso Pretório do Brasil. Nesse sentido, muitos familiares optam por não visitar seus entes que estejam reclusos no sistema penitenciário, seja pelas barreiras encontradas ou, ainda, para não se submeterem à uma verdadeira humilhação e invasão de privacidade.

O contato com o detento, nesses casos, é ainda mais mitigado – muitas vezes acontecendo através de advogados, que por suas prerrogativas não precisam passar por tal procedimento – ou ainda por raros contatos telefônicos, correspondências (essas, minuciosamente analisadas, ainda que o próprio Código Penal e a Constituição Federal tratem da inviolabilidade da correspondência). Se trata de um verdadeiro, e penoso, isolamento total daquele que se encontra recluso no sistema penitenciário brasileiro, o que se faz necessário salientar que em nada contribui para a ressocialização do apenado.

5 JURISPRUDÊNCIA E OS LIMITES CONSTITUCIONAIS DA PENA

A análise jurisprudencial revela como os tribunais superiores têm interpretado e aplicado os limites constitucionais da pena, especialmente à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade e da intranscendência. A partir de decisões paradigmáticas, observa-se a tentativa de harmonizar a função punitiva do Estado com a proteção dos direitos fundamentais, evitando abusos e garantindo a legitimidade da sanção penal.

5.1. A ADPF 347 e o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional

Um marco relevante no debate acerca dos limites constitucionais da pena no Brasil é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2015. Nesse processo, a Corte reconheceu a existência de um estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário nacional, caracterizado pela violação massiva, generalizada e persistente de direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade. A priori, estado de coisa inconstitucional significa que um sistema público gere violações generalizadas e prolongadas de direitos fundamentais, quer pela inoperância do Estado, ou pela incapacidade deste em promover mudanças estruturais no referido sistema público.

Na referida ADPF restou constatado o tratamento desumano aos presos destinado, bem como celas superlotadas e com precariedade de insumos (higiene, alimentação, medicamentos). Além disso, foi elencado que o próprio ambiente carcerário, precário como está, colabora para a proliferação de doenças intramuros dos presídios, não ser eficaz para evitar agressões das mais variadas espécies (homicídios, lesões corporais, estupros), além da não existência de oportunidades de trabalho e estudos.

A decisão foi inspirada em precedente da Corte Constitucional da Colômbia, que já havia desenvolvido a categoria do estado de coisa inconstitucional, e sinalizou a necessidade de medidas estruturais de enfrentamento, incluindo a utilização de audiências de custódia, a destinação de recursos do Fundo Penitenciário Nacional e a adoção de políticas públicas interinstitucionais.

O reconhecimento das violações sistemáticas de direitos humanos nas prisões do Brasil por ocasião do julgamento da ADPF 347 resultou em um projeto da União e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a fim de criar medidas contra essas violações no sistema penitenciário. Chamado de "Plano Pena Justa", o projeto visa corrigir a “situação de calamidade nas prisões brasileiras”4 e promover uma responsabilização penal justa, focando na reinserção social dos reeducandos após o cárcere e na diminuição da reincidência criminal.

Em outras palavras, o pleno do STF, o Conselho Nacional de Justiça e a própria União concordam que há uma evidente e alarmante violação de direitos humanos e direitos fundamentais protegidos pela Constituição Federal e pelos tratados de direitos humanos os quais o Brasil é signatário. Esse reconhecimento explicita que a crise carcerária ultrapassa a esfera administrativa e se insere como um problema constitucional e estrutural, que compromete a legitimidade da própria execução penal. Trata-se, portanto, de um alerta não apenas jurídico, mas também político e social, no sentido de que o Estado deve adotar medidas efetivas e duradouras para enfrentar a violação sistêmica de direitos. Ao mesmo tempo, evidencia-se a necessidade de repensar o modelo punitivo vigente, a fim de que a pena não se converta em instrumento de degradação humana, mas cumpra sua função ressocializadora em consonância com os princípios constitucionais.

5.2. Decisões dos tribunais superiores sobre os efeitos da pena em terceiros

Embora a Constituição Federal assegure, em seu art. 5º, XLV, o princípio da intranscendência da pena — segundo o qual a sanção não pode ultrapassar a pessoa do condenado —, a realidade social revela um fenômeno distinto: a chamada transcendência fática da pena. Trata-se dos efeitos indiretos e inevitáveis do encarceramento que atingem familiares e pessoas próximas do apenado, ainda que estes não tenham qualquer vínculo com a prática delituosa. A retirada do indivíduo do convívio social gera repercussões econômicas, emocionais e sociais para seu núcleo familiar, que passa a suportar ônus que, em tese, deveriam ser exclusivos do Estado em relação ao condenado.

Nesse contexto, percebe-se que a transcendência fática da pena desafia a efetividade do princípio constitucional da intranscendência, ao evidenciar que a execução penal, tal como ocorre no Brasil, irradia consequências além da esfera do apenado. Famílias inteiras enfrentam estigmatização, exclusão comunitária, dificuldades financeiras e sofrimento psicológico, configurando uma espécie de penalização indireta. Esse contraste entre norma e realidade ressalta a necessidade de políticas públicas voltadas não apenas à dignidade do preso, mas também à proteção de seus familiares, a fim de mitigar os efeitos colaterais que o encarceramento produz e que acabam por fragilizar ainda mais o tecido social.

Além da ADPF 347, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm enfrentado essa problemática em diversos julgados. No ARE 959.620/RS (Tema 998 da Repercussão Geral), o STF tratou da revista íntima como condição para a visitação em estabelecimentos prisionais, reconhecendo que:

Em visitas sociais nos presídios ou estabelecimentos de segregação é inadmissível a revista íntima vexatória com o desnudamento de visitantes ou exames invasivos com finalidade de causar humilhação. A prova obtida por esse tipo de revista é ilícita, salvo decisões judiciais em cada caso concreto (BRASIL, STF, ARE 959620, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 02 abr. 2025, DJe 02 jul. 2025).

Esse precedente evidencia a centralidade da proteção dos vínculos familiares na execução penal e reforça que a dignidade da pessoa humana se estende também aos familiares e visitantes do preso, que não podem ser transformados em vítimas indiretas do sistema prisional.

No mesmo sentido, o STJ tem reafirmado a importância de resguardar o direito de visitas. No AgRg no AREsp 2.223.459/DF, a Corte concluiu que:

É entendimento desta Corte que o direito de visita tem objetivo de ressocialização do condenado, não podendo ser negado sob o fundamento de o visitante estar cumprindo pena em regime aberto, já que os efeitos da sentença penal condenatória não podem restringir o gozo de outros direitos individuais, ante as vedações constitucionais à perpetuidade e à transcendência da sanção penal (BRASIL, STJ, AgRg no AREsp 2.223.459/DF, Rel. Min. Jesuíno Rissato, Sexta Turma, julgado em 20 jun. 2023, DJe 21 jun. 2023)

Em outro precedente, o STJ apreciou o direito de o preso cumprir pena próximo à residência de sua família. No AgRg no RHC 207.529/DF, restou consignado:

O direito do preso de cumprir pena próximo à residência de sua família é relativo e depende da disponibilidade de vagas e da conveniência da administração da Justiça. A superlotação carcerária justifica a transferência de preso, desde que a decisão seja fundamentada e em conformidade com a jurisprudência (BRASIL, STJ, AgRg no RHC 207.529/DF, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 17 dez. 2024, DJe 31 dez. 2024).

Nessa mesma linha, a jurisprudência do STJ consolidada no Tema Repetitivo nº 1.274 firmou o entendimento de que o cumprimento de pena em regime aberto ou o gozo de livramento condicional não constituem, por si sós, fundamentos válidos para restringir o direito de visitação do preso por seus familiares. A manutenção desses vínculos é vista como essencial para a ressocialização, e sua supressão pode agravar os efeitos psicológicos sobre familiares, como ansiedade e depressão, demonstrando mais uma vez a transcendência fática da pena.

Essas decisões evidenciam que a execução penal deve ser compreendida de forma ampla, considerando não apenas a pessoa do condenado, mas também os reflexos sobre terceiros inocentes. Ao reconhecerem a proteção de familiares contra práticas degradantes, ao resguardarem o direito de visitas e ao afirmarem a importância da proximidade familiar, os tribunais superiores reforçam a urgência de políticas públicas e medidas estruturais que reduzam a transcendência fática da pena, garantindo a efetividade do princípio da intranscendência, a dignidade da pessoa humana e a função ressocializadora do sistema penal.

5.3. Perspectivas garantistas e alternativas à pena privativa de liberdade

O sistema penal brasileiro enfrenta limitações estruturais evidentes, especialmente no que se refere à execução da pena privativa de liberdade e seus efeitos indiretos sobre familiares e terceiros inocentes. Diante desse cenário, o ordenamento jurídico prevê alternativas à prisão, alinhadas a uma perspectiva garantista, que buscam conciliar a sanção penal com os direitos fundamentais do condenado e a proteção dos familiares. Essas alternativas visam não apenas a efetividade da pena, mas também a redução da transcendência fática, minimizando os impactos sociais, econômicos e psicológicos decorrentes do encarceramento.

Entre as medidas mais relevantes está a suspensão condicional da pena, prevista no art. 77 do Código Penal, que permite a substituição da pena privativa de liberdade por condições determinadas pelo juiz, como a reparação do dano, o cumprimento de obrigações ou a proibição de frequentar determinados lugares. Essa medida possibilita que o condenado permaneça em liberdade, mantendo vínculos familiares e sociais, reduzindo o sofrimento de terceiros e favorecendo sua reinserção social. Segundo Bittencourt, a suspensão condicional da pena tem sua origem em Massachusetts, Estados Unidos, no ano de 1846, com a criação da Escola Industrial de Reformas, destinada inicialmente a delinquentes primários menores, que, em vez de receberem a pena, eram encaminhados à escola para fins educativos e de ressocialização.

Outra alternativa significativa são as penas pecuniárias, que incluem multa ou outras formas de reparação financeira. Embora impliquem sanção ao condenado, essas penas não geram a interrupção do convívio familiar e diminuem os efeitos indiretos sobre dependentes, funcionando como instrumento de responsabilização econômica sem os efeitos deletérios da prisão.

As penas restritivas de direitos representam outro conjunto de alternativas, abrangendo a prestação de serviços à comunidade, a limitação de determinadas atividades ou a proibição de frequentar determinados lugares. Tais sanções permitem que o condenado cumpra a pena sem se afastar completamente do núcleo familiar, reduzindo a exclusão social e o estigma que frequentemente recai sobre familiares de presos.

Além dessas medidas, a justiça negocial introduziu instrumentos que também se alinham a uma perspectiva garantista. A suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei 9.099/95, permite ao acusado, em crimes de médio potencial ofensivo e preenchidos os requisitos legais, suspender o andamento da ação penal mediante o cumprimento de condições fixadas pelo juiz. Mais recentemente, o acordo de não persecução penal (ANPP), introduzido pela Lei Anticrime (Lei 13.964/20), possibilita ao investigado firmar compromisso com o Ministério Público, evitando a instauração da ação penal mediante condições ajustadas, como reparação do dano ou prestação de serviços à comunidade.

Ao comentar sobre o acordo de não persecução penal, dentre outras medidas desencarceradoras, observa Lopes Jr (2025):

Trata-se de mais um instrumento de ampliação do espaço negocial – um ‘negócio jurídico processual’ - pela via do acordo entre MP e defesa, que pressupõe a confissão do acusado pela prática de crime sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima seja inferior a 4 anos (limite adequado à possibilidade de aplicação de pena não privativa de liberdade), que será reduzida de 1/3 a 2/3 em negociação direta entre acusador e defesa.

Considerando seus requisitos e condições impostas, poderíamos estabelecer o seguinte escalonamento da justiça negocial:

1º transação penal
2º acordo de não persecução
3º suspensão condicional do processo
4º acordo de delação premiada

Se fizermos um estudo dos tipos penais previstos no sistema brasileiro e o impacto desses instrumentos negociais, o índice supera a casa dos 70% de tipos penais passíveis de negociação, de acordo. Portanto, estão presentes todas as condições para um verdadeiro “desentulhamento” da justiça criminal brasileira, sem cairmos na abertura perversa e perigosa de um plea bargaining sem limite de pena. Mas isso não representa, automaticamente, desencarceramento, diminuição da (super)população carcerária, na medida em que não atinge os principais crimes que conduzem à prisão (tráfico de drogas e suas variantes), roubo, latrocínio, furtos (qualificados) e homicídio. Então o ANPP pode significar diminuição do número de processos, com potencial de redução da população carcerária (pelas medidas desencarcerizadoras).

É um poderoso instrumento de negociação processual penal que requer uma postura diferenciada por parte dos atores judiciários, antes forjados no confronto, que agora precisam abrir-se para uma lógica negocial, estratégica, que demanda uma análise do que se pode oferecer e do preço a ser pago (prêmio), do timing da negociação, da arte negocial. Nesse terreno, é preciso ler Alexandre MORAIS DA ROSA e seus vários escritos sobre a “teoria dos jogos aplicada ao processo penal”. (LOPES JR., p.78).

Esses mecanismos reafirmam a necessidade de se buscar soluções penais menos encarceradoras e mais racionais, privilegiando a reparação, a prevenção e a ressocialização. Também demonstram que é possível compatibilizar a proteção de bens jurídicos com o respeito à dignidade humana, reduzindo os efeitos da transcendência fática da pena sobre familiares e a sociedade.

Apesar das vantagens das penas alternativas e dos instrumentos negociais, o Direito Penal brasileiro ainda estabelece condições rígidas para sua aplicação, o que limita significativamente o acesso a essas medidas. Regras como a exigência de penas inferiores a determinados patamares (por exemplo, pena mínimo inferior a quatro para o acordo de não persecução penal), a vedação de reincidência, mesmo em crimes leves, e a imposição de requisitos subjetivos e objetivos restritivos acabam por excluir muitos condenados desses benefícios. Como consequência, mesmo em situações em que alternativas seriam mais adequadas, a rigidez normativa contribui para o superencarceramento, agravando a crise prisional e ampliando os efeitos deletérios da pena sobre familiares e terceiros inocentes.

Portanto, é inegável que as perspectivas garantistas e as penas alternativas constituem instrumentos essenciais para conciliar a necessidade de punição com a proteção de direitos fundamentais. De forma articulada, a ampliação do acesso a esses mecanismos não apenas fortalece a responsabilização do infrator de maneira justa e proporcional, mas também atua na mitigação dos efeitos da pena sobre familiares e terceiros inocentes.

Dessa maneira, a flexibilização de critérios restritivos, aliada a políticas de acompanhamento, reparação e ressocialização, permite harmonizar a punição com a proteção de direitos fundamentais, promovendo um sistema penal mais humano, equilibrado e comprometido com a dignidade da pessoa humana, reduzindo de forma concreta a transcendência fática da pena e seus impactos sociais e familiares.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa evidencia que, apesar do princípio da intranscendência da pena previsto no art. 5º, XLV, da Constituição Federal, a realidade do sistema penal brasileiro demonstra que a sanção penal raramente se restringe ao condenado, atingindo familiares e terceiros inocentes. A prisão gera repercussões econômicas, sociais e psicológicas profundas, como perda de sustento, rompimento de vínculos familiares, exclusão social e estigmatização, comprometendo a dignidade da pessoa humana e o bem-estar de crianças, cônjuges e outros dependentes.

A análise aqui apresentada também evidencia a falência da pena como instrumento eficaz de ressocialização. O encarceramento, tal como praticado, não cumpre sua função de reinserir o indivíduo à sociedade; pelo contrário, acentua a marginalização e a vulnerabilidade, tanto do apenado quanto de sua família. Essa realidade reforça que o sistema punitivo brasileiro, baseado predominantemente na prisão, apresenta limitações estruturais que demandam reformas urgentes.

Diante desse cenário, é fundamental que o Estado, especialmente o Poder Judiciário e o Poder Legislativo, adote medidas que promovam o efetivo respeito à intranscendência da pena. O Judiciário deve interpretar a lei considerando a individualidade do caso concreto, favorecendo a aplicação de penas alternativas sempre que possível, de forma a preservar os vínculos familiares e reduzir os impactos extrapenais. Paralelamente, o Legislativo precisa flexibilizar critérios rígidos que hoje restringem o acesso a sanções menos gravosas, como a suspensão condicional da pena, as penas restritivas de direitos e as sanções pecuniárias, permitindo que a aplicação das medidas seja orientada pelo contexto subjetivo do condenado, e não apenas pela análise fria da lei.

Portanto, a efetividade do sistema penal não deve ser medida exclusivamente pela punição, mas pelo equilíbrio entre responsabilização, ressocialização e proteção de terceiros inocentes. Políticas públicas integradas que garantam acompanhamento social e psicológico de familiares, associadas à ampliação das penas alternativas e à manutenção de vínculos familiares, são essenciais para reduzir a transcendência fática da pena e mitigar os efeitos colaterais da execução penal.

Em suma, com a combinação de medidas estruturais, judiciais e legislativas é possível construir um sistema penal que respeite os princípios constitucionais, assegure a dignidade da pessoa humana e efetivamente cumpra sua função ressocializadora, sem transferir injustamente os ônus da pena para aqueles que não cometeram qualquer infração. A superação da falência da pena exige, portanto, uma visão garantista, humana e realista do papel do Direito Penal na sociedade.

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1 Graduando em Direito pela Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim – FDCI [email protected]

2 Professora Orientadora, Especialista em Ciências Criminais com Formação para o Ensino Superior pela Universidade Anhanguera-Uniderp, Pós graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Gama Filho, Advogada Criminalista. [email protected]

3 https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC4293638/

4 https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/plano-pena-justa/