TRANSFORMANDO VIDAS: UMA ANÁLISE DE "ESCRITORES DA LIBERDADE"
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10888997
Danilo Américo Pereira da Silva
Elizabeth Miranda M. R. Pinto
Liliane Cristina de Mesquita
Lúcia Maria Martins Molinaroli
Nadylla Calixto Resende
"Escritores da Liberdade", lançado em 2007 e dirigido por Richard LaGravenese, cativou tanto o público quanto os críticos, estabelecendo-se como um ponto significativo na história do cinema. Adaptado do best-seller "The Freedom Writers Diaries," o filme amplifica as experiências da professora recém-formada Erin Gruwell e de seus alunos, oferecendo uma narrativa poderosa sobre superação e transformação através da educação.
O caso que culminou nas manifestações raciais, envolvendo negros e latinos, em Los Angeles, completando 31 anos em 2023, tem suas raízes na violenta repressão policial sobre o homem negro Rodney King em 1991. Inicialmente tratado como um episódio isolado de brutalidade policial, o incidente tornou-se um símbolo marcante da discriminação contra negros, provocando um dos maiores conflitos raciais em Los Angeles das últimas décadas. Essas manifestações coletivas demonstraram a revolta reprimida de milhões de pessoas não apenas contra a violência policial, mas também contra o racismo sistêmico, a intolerância e as disparidades étnicas e raciais presentes nos bairros pobres, guetos e gangues. Este episódio destaca, assim como o filme aborda, a relevância do papel da educação como uma força poderosa capaz de instigar transformações profundas e significativas na sociedade.
A personagem central, a professora Erin Gruwell, interpretada por Hilary Swank, é uma recém-formada que ministra aulas de Inglês e Literatura em uma escola localizada na periferia de Long Beach, Califórnia (Los Angeles). Nessa região, a escola implementa um programa de integração apoiado pelo governo dos Estados Unidos, destinado a fornecer assistência educacional aos jovens provenientes das classes sociais mais desfavorecidas. Esses jovens são considerados em situação de risco para a segurança pública, sendo obrigados a frequentar a escola como uma alternativa à privação de liberdade.
Assim como Freire (1996) destaca a importância de estabelecer relações que fomentem estímulo e motivação na interação entre professor e aluno, Erin, no início do filme, se apresenta formalmente à sua turma e inicia uma aula tradicional que, infelizmente, não suscita o interesse dos alunos. Apesar das boas intenções de Erin e de sua abordagem perspicaz e sensível, ao longo do tempo, Erin observa claramente as diferenças notáveis entre os estudantes e as suas visões individuais e coletivas sobre o seu potencial educacional e para a vida. Erin, nesse processo, começa a compreender os desafios que terá que enfrentar ao lidar com adolescentes desmotivados, aparentemente sem nenhum interesse nos estudos. Assim, a reflexão sobre o diálogo proposto por Freire se torna relevante, destacando a necessidade de estabelecer uma abordagem mais participativa e envolvente no ambiente educacional, visando superar as barreiras da desmotivação e desinteresse dos alunos.
Buscando respaldo para realizar um trabalho efetivo com seus alunos, enfrentando o comportamento autoritário e excludente da diretora, que se recusava a emprestar livros literários sob a alegação de que os estudantes não seriam capazes de zelar por eles e, consequentemente, não teriam meios para substituí-los posteriormente.
Inspirada pela paixão pela profissão e com o objetivo de encontrar maneiras envolventes de captar a atenção de seus alunos, Erin empreendeu esforços para explorar alternativas. Ao ajustar sua metodologia de ensino, ela se tornou um exemplo notável de comprometimento e perseverança. Mesmo diante da resistência da escola e da comunidade, Erin não desistiu de sua missão de proporcionar uma experiência educacional mais envolvente para seus alunos. Assim como disse Bernard Charlot (2012)
[...] não se pode falar do professor sem falar dos alunos. Não se entende nada de professor, se não se pensa a relação entre o professor e o aluno. Alguns professores pensam que se tornar professor seria um trabalho extraordinário, maravilhoso, se não existissem alunos. Porém, existem alunos. Existem alunos e, portanto, temos que pensar a relação dos dois para pensarmos na mobilização dos professores [...] (p.11)
Perrenoud (2003), afirma que para desenvolver um ensino estratégico e uma pedagogia diferenciada e para lutar eficazmente contra o fracasso escolar, é preciso ter objetivos claros e estáveis, de modo que os professores possam consagrar sua energia e inteligência para ajudar todos os alunos a alcançá-los.
"O que você faz aqui? O que vai fazer não vai mudar minha vida...", diz um aluno a professora Erin, que ao perceber que se as aulas continuassem seguindo o currículo padrão da escola não conseguiriam responder aos questionamentos dos alunos sobre o propósito do estudo, confrontando assim a realidade. Essa constatação a levou a reconhecer a necessidade de conferir significado ao seu ensino. Inspirada na convicção de que o estudo poderia ser uma ferramenta para transformar as vidas dos estudantes, ela buscou mostrar que não estavam predestinados a uma existência marcada por violência, intolerância, discriminação e preconceito.
Diante dos questionamentos pertinentes dos alunos contemporâneos sobre a finalidade da educação, Charlot (2012) questiona:
[...] só aprende quem estuda e, portanto, de imediato, vem a pergunta: por que será que o aluno vai fazer o esforço de estudar e continuar estudando? Porque não se concebe estudo sem esforço. Qual o sentido para ele ir à escola? Será que a escola tem um sentido ligado ao fato de aprender? (p.11)
Nesse contexto, as palavras de Perrenoud (2003) ganham relevância, pois destacam a importância de os alunos compreenderem claramente as expectativas depositadas sobre eles para alcançar o sucesso na escola. Contudo, surge o desafio quando as exigências são mutáveis e as mensagens dos adultos se mostram contraditórias. Erin, ciente desse contexto, enfrentou não apenas a resistência da estrutura curricular padrão, mas também a necessidade de tornar as expectativas claras e consistentes para que seus alunos pudessem vislumbrar um futuro diferente por meio da educação.
Sacristán (2003) nos referenda com a seguinte fala: o currículo desempenha o papel de moldar a trajetória educacional do estudante, orientando o caminho a ser percorrido, abrange um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes que os alunos devem adquirir ao longo de sua jornada escolar. No currículo se reforçam as fronteiras (muralhas) que delimitam seus componentes curriculares. Ao associar conteúdos, graus e idade dos estudantes, o currículo também se torna um regulador de pessoas. Ao considerar que o currículo visa organizar o que os alunos precisam aprender e superar, podemos perceber a aparente "rigidez" inerente aos currículos escolares.
Nas concepções de Apple (1994, p. 59) currículo nunca é um conjunto neutro de conhecimentos.... Ele sempre é parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo. É produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas. Apropriando-nos dessa premissa, fica claro nossa análise do currículo daquela unidade escolar e todo seu momento histórico.
No filme, é possível observar a capacidade da professora em adaptar à realidade de seus estudantes, demonstrando flexibilidade e sensibilidade em sua abordagem educacional, uma realidade muitas vezes negligenciada nas escolas, onde professores enfrentam desafios enormes ao tentar educar alunos que vivem em áreas de conflito e violência.
A professora tentou encontrar meios que trouxessem um ambiente acolhedor, buscando conhecer os estudantes individualmente, onde poderiam mostrar seus sofrimentos, medos, frustrações e esperanças, escrevendo em diários o seu dia a dia, como um desabafo, os quais muitos deles não possuíam em casa.
Perrenoud acrescenta que para levar em conta as diferenças e pensar as regulações individualizadas, no quadro de um dispositivo e de sequências didáticas, é necessário enfrentar uma complexidade que descarta definitivamente receitas, modelos metodológicos prontos para uso. Portanto, aceitar romper com as necessidades de grande parte dos professores, assumir o risco de lhes propor procedimentos que não correspondem nem à sua imagem da profissão, nem ao seu nível de formação. E aceitar sem dúvida também entrar em conflito com uma classe política e com autoridades escolares que não pedem tanto e das quais, ao menos uma parcela, se conforma muito bem com a relativa ineficácia das pedagogias em vigor.
No momento em que a Professora Erin se permite conhecer o sujeito do seu currículo, que começa a dar voz àquele que ninguém ouvia, a mostrar que ele era o sujeito de sua jornada, ela desperta neles o sentimento de pertencimento, ao grupo, a escola, a sociedade, a sua própria vida, e incute neles o sentimento de merecimento e direito que lhe é devido. Com esse movimento, temos o que Tomás T. da Silva, 1999, nos embasa o currículo como nossa trajetória, como um percurso, como um documento de identidade (em construção).
E partindo dos ensinamentos do Freire, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou construção.” (FREIRE, 1988, p.25). Com esse posicionamento de FREIRE
Uma das partes mais marcantes do filme é a criação deste diário, onde os alunos são encorajados a escrever sobre suas vidas e experiências. A importância dada à escrita da vivência dos alunos pode ser compreendida na afirmativa de Freitas (2023): "é por meio de textos que conseguimos analisar os signos que são motivados e escolhidos para atingir determinada finalidade, dentro de um contexto de situação, com a finalidade de executar uma função social (ou mais funções) em uma cultura". Esse exercício de expressão pessoal retratado no filme, se torna uma ferramenta terapêutica para os estudantes, ajudando-os a enfrentar traumas e a compreender suas próprias emoções.
Esta abordagem que se preocupa com o estado emocional dos alunos, alinha-se com a visão educativa de Freire (1974), quando este preocupa-se que não basta apenas ensinar, é preciso conhecer. Como dito em uma de suas mais célebres frases: “Não basta saber ler que 'Eva viu a uva'. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho”. Portanto, parafraseando Freire: “não basta ensinar, é preciso saber a quem está ensinando”.
A professora através do livro O diário de Anne Frank, da visita ao museu do holocausto, sensibiliza os alunos com a tragédia dos judeus diante da perseguição na época do nazismo. E com o depoimento da senhora Miep Gies, mulher que deu abrigo a família de Anne Frank, busca convencer os jovens que o preconceito transcende todo tipo de barreira e pode atingir pessoas pela cor da pele, pela origem étnica, pela religião ou até mesmo pela classe social, fazendo que eles entendam que muitas outras pessoas, em diferentes tempos e lugares, sofreram discriminações e violência, mas que depende de cada um a forma de enfrentar essas situações. Cabe a cada um a escolha de como fazê-lo!
O filme também ressalta o poder da literatura e da história como ferramentas para a compreensão e a empatia. Para Sacristán (2000), “o professor assume a função de guia reflexivo, ou seja, é aquele que ilumina as ações em sala de aula e interfere significativamente na construção do conhecimento do aluno
A partir dessa conscientização, os adolescentes revoltados, desmotivados e agressivos perceberam que, como Anne Frank fez, poderiam reagir de maneira diferente às hostilidades sofridas, e que a violência e o desprezo não eram um mecanismo de defesa.
Freire (1992) defende que o professor somente ensina de forma verdadeira, quando conhece o conteúdo que ensina, ou seja, conforme se apropria dele, conseguindo compreendê-lo e interpretá-lo. Desta maneira, ao ensinar o educador reconhece o objeto que já conhece, e no caso do filme, a realidade dos alunos. Assim a adaptação curricular, o redirecionamento dos conteúdos, tomado pela professora no filme demonstra a importância de se repensar o currículo escolar, não deixá-lo engessado, preso a normas preestabelecidas. É necessário aproximar os alunos do currículo, isto é, aproximar o que é ensinado dos sujeitos, como dito por Chizzoti e Ponce (2012):
“Não há como pensar o currículo sem os seus sujeitos. É na prática pedagógica que o currículo ganha vida. Ele é um instrumento social que supõe a participação de cada um quando visa: a autonomia do indivíduo em comunidade; a preparação para viver e (re) criar a vida com dignidade; e a construção permanente de uma escola que valorize o conhecimento, que seja um espaço de convívio democrático e solidário e que prepare para a inserção na vida social pelo trabalho.”
Para Freire (1992) “O ato de ensinar e de aprender, dimensões do processo maior – o de conhecer – fazem parte da natureza da prática educativa. Não há educação sem ensino, sistemático ou não, de certo conteúdo. E ensinar é um verbo transitivo-relativo. Quem ensina, ensina alguma coisa – conteúdo – a alguém – aluno”. Assim, aliar a realidade do aluno às suas necessidades valoriza o conteúdo escolar, direciona a didática e potencializa uma das finalidades da educação, a de formar cidadãos críticos.
Ao longo do filme, vemos o crescimento e a transformação dos alunos, que passam de desinteressados e desmotivados a jovens engajados e inspirados a fazer a diferença em suas comunidades. Isso ilustra como a educação pode ser uma ferramenta poderosa para a superação de desafios e a promoção da mudança social. Ensinar é assim a forma que toma o ato de conhecimento que o(a) professor(a) necessariamente faz na busca de saber o que ensina para provocar nos alunos seu ato de conhecimento também (Freire, 1992)
"Escritores da Liberdade" é um filme que nos faz refletir sobre a importância da empatia, da compreensão e da educação na construção de um mundo mais justo e igualitário. Mostra que, mesmo diante das circunstâncias mais difíceis, a perseverança e a dedicação dos educadores podem gerar resultados notáveis na vida dos estudantes. A ação da professora Erin se legitima na íntegra, pois ela permitiu que indivíduos antes relegados do Sistema, se desenvolvessem e se tornassem autônomos em seus processos de busca e evolução, pois a educação autônoma é uma construção cultural que depende das relações com outros e com o conhecimento, é um processo fundamental, mas não natural ao ser.
Conclusão
Em conclusão, o filme "Escritores da Liberdade" destaca a transformação potente que a educação pode promover na vida dos estudantes quando aliada à empatia e compreensão. A narrativa, baseada em eventos reais, retrata a jornada desafiadora da professora Erin Gruwell e seus alunos, originários de uma comunidade marcada por conflitos, intolerância e desigualdades.
A resistência inicial dos alunos à abordagem tradicional de ensino revela a necessidade de repensar o currículo escolar, aproximando-o da realidade dos estudantes. Erin demonstra flexibilidade ao adaptar seu método, reconhecendo a importância de trazer significado às aulas para inspirar os alunos a transformarem suas próprias vidas. A criação do diário como uma ferramenta terapêutica reflete a preocupação com o estado emocional dos estudantes, alinhando-se à visão de Paulo Freire sobre a necessidade de conhecer os alunos além do conteúdo acadêmico.
A professora, ao envolver os alunos com a literatura e a história, ilustra o poder dessas disciplinas como ferramentas para compreensão e empatia. A conscientização dos alunos sobre a capacidade de reação frente às adversidades, inspirados pelo exemplo de Anne Frank, ressalta a importância de uma educação que vá além da mera transferência de conhecimento.
O filme destaca a relevância de professores comprometidos e dedicados na promoção da mudança social. A história de Erin Gruwell e seus alunos evidencia como a educação, quando alinhada a uma abordagem sensível e adaptativa, pode ser uma força transformadora, capacitando os estudantes a se tornarem agentes de mudança em suas comunidades. "Escritores da Liberdade" é, portanto, uma reflexão sobre a importância da perseverança e dedicação dos educadores na construção de um mundo mais justo e igualitário.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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