PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO E A BASE NACIONAL CURRICULAR COMUM: ENTRE A NORMATIZAÇÃO CURRICULAR E A AUTONOMIA ESCOLAR
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17137290
Harley Charles de Oliveira Santos
RESUMO
A educação brasileira passou por profundas transformações nas últimas décadas, refletidas na relação entre o Projeto Político-Pedagógico (PPP) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O PPP, previsto na LDB (Lei nº 9.394/1996), expressa a identidade da escola, seus objetivos e práticas, sendo construído coletivamente. Já a BNCC, homologada em 2017, define os direitos de aprendizagem comuns a todos os estudantes do país, com foco em competências e equidade educacional. A relação entre ambos é marcada por tensões: enquanto a BNCC propõe uma padronização curricular, o PPP representa a autonomia e a contextualização escolar. A incorporação crítica da BNCC ao PPP exige análise coletiva, formação docente e participação da comunidade. O risco de tecnicismo e perda de identidade escolar é real, mas também há potencial para fortalecer práticas pedagógicas e garantir um currículo democrático e plural. Conclui-se que o alinhamento entre PPP e BNCC deve ocorrer com reflexão crítica, valorizando a diversidade e a autonomia escolar, promovendo uma educação de qualidade, inclusiva e transformadora, capaz de articular diretrizes nacionais com as realidades locais.
Palavras-chave: Projeto Político-Pedagógico. Base Nacional Comum Curricular. Autonomia escolar. Gestão Democrática.
ABSTRACT
Brazilian education has undergone significant transformations in recent decades, reflected in the relationship between the Political-Pedagogical Project (PPP) and the Nacional Comum Curricular Base (NCCB). The PPP, established by the LDB (Law No. 9.394/1996), expresses the school's identity, objectives, and practices, and is built collectively. The NCCB, approved in 2017, defines the learning rights common to all students in the country, focusing on competencies and educational equity. The relationship between the two is marked by tensions: while the NCCB proposes curricular standardization, the PPP represents school autonomy and contextualization. Critically incorporating the NCCB into the PPP requires collective analysis, teacher training, and community participation. Although there is a real risk of technicism and loss of school identity, there is also potential to strengthen pedagogical practices and ensure a democratic and plural curriculum. It is concluded that the alignment between the PPP and NCCB must occur through critical reflection, valuing diversity and school autonomy, and promoting quality, inclusive, and transformative education capable of connecting national guidelines with local realities.
Keywords: Political-Pedagogical Project; National Common Curricular Base; School Autonomy; Democratic Management.
1. INTRODUÇÃO
A educação brasileira tem passado, nas últimas décadas, por um intenso processo de reorganização normativa e pedagógica, refletindo as mudanças sociais, culturais e políticas que atravessam o país. Neste cenário, dois instrumentos se destacam pela sua centralidade na definição dos rumos da educação básica: o Projeto Político-Pedagógico (PPP) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Ambos exercem papéis fundamentais, ainda que distintos e complementares, no desenho curricular, na gestão escolar e na garantia do direito à educação de qualidade.
O PPP, instituído pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN (Lei nº 9.394/1996), constitui-se como um documento que expressa a identidade da escola, sua concepção de ensino, seus objetivos, valores e estratégias de atuação. É, portanto, uma construção coletiva e democrática, que deve envolver todos os atores escolares, incluindo gestores, professores, estudantes, pais e comunidade local. Seu caráter político refere-se ao compromisso com a formação de sujeitos críticos e emancipados; o pedagógico, à definição de métodos, conteúdos e avaliações; e o projeto, à sua função propositiva, orientada para o futuro (Fênix Educação, 2023).
Já a BNCC, aprovada em 2017 pelo Ministério da Educação, é um documento normativo que define os direitos de aprendizagem e desenvolvimento para todas as etapas da Educação Básica, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio. Seu objetivo é garantir a equidade na oferta curricular em âmbito nacional, promovendo a aprendizagem essencial e comum a todos os estudantes brasileiros, respeitando as especificidades locais e regionais (BRASIL, 2017).
A relação entre PPP e BNCC não é meramente técnica ou administrativa. Trata-se de uma interação complexa entre uma orientação centralizada e obrigatória — a BNCC — e uma construção autônoma e contextualizada — o PPP. Este artigo propõe-se a discutir essa relação a partir de uma perspectiva crítica e fundamentada, explorando suas interfaces, tensões e possibilidades. Para tanto, serão analisados os conceitos fundamentais de cada instrumento, seu contexto de formulação, sua função na estrutura escolar e as formas como o PPP pode (e deve) incorporar as diretrizes da BNCC sem perder sua essência democrática e formadora.
A relevância do tema se justifica pela necessidade de compreender como o currículo nacional e os projetos escolares podem dialogar de maneira produtiva, respeitando a diversidade do país e promovendo a qualidade social da educação. Como argumentam Azevedo, Basso e Morais (2022), “a implementação da BNCC, se por um lado busca padronizar os conteúdos essenciais, por outro impõe desafios à autonomia das escolas, exigindo uma reinterpretação crítica por meio do PPP”.
Este trabalho está estruturado em sete seções, incluindo esta introdução. Na sequência, será apresentada a fundamentação teórica que embasa os conceitos de PPP e BNCC; em seguida, discorrer-se-á sobre o histórico e o contexto de elaboração de ambos os instrumentos. Posteriormente, será analisada a relação entre PPP e BNCC, com destaque para estratégias de alinhamento e os desafios dessa integração. O artigo será concluído com uma reflexão sobre os caminhos possíveis para uma educação democrática, plural e de qualidade.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEORICA
Para compreender a relação entre o Projeto Político-Pedagógico (PPP) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), é fundamental estabelecer os marcos teóricos que sustentam cada um desses instrumentos. Essa seção aborda os fundamentos conceituais, legais e filosóficos que embasam o PPP como expressão da autonomia escolar e da gestão democrática, bem como a BNCC como política de padronização curricular no contexto da Educação Básica brasileira.
2.1. Projeto Político-Pedagógico: conceito e princípios
O Projeto Político-Pedagógico é definido como o documento orientador que sistematiza a proposta educativa de uma instituição escolar. De acordo com Veiga (2001), o PPP expressa a identidade da escola, configurando-se como instrumento organizador das práticas pedagógicas e da gestão escolar. Sua natureza é política, por envolver escolhas ideológicas, valores e compromissos com uma determinada concepção de sociedade, ser humano e educação; pedagógica, por sistematizar os fundamentos teóricos e metodológicos da ação educativa; e projetual, por propor um plano de ação voltado para objetivos comuns.
A LDB (Lei nº 9.394/1996) determina, em seu artigo 12, inciso I, que os estabelecimentos de ensino têm a incumbência de “elaborar e executar sua proposta pedagógica” (BRASIL, 1996), reconhecendo o PPP como expressão da autonomia pedagógica, administrativa e financeira das escolas. Essa autonomia, porém, não significa isolamento ou descompromisso com as diretrizes nacionais, mas sim a adaptação criativa e crítica dessas diretrizes à realidade local.
Segundo a Fênix Educação (2023), um PPP eficaz articula cinco pilares: identidade institucional, objetivos educacionais, organização curricular, gestão democrática e avaliação contínua. Sua construção deve ser participativa, envolvendo a comunidade escolar em todas as suas etapas, para que represente de fato um projeto coletivo e contextualizado.
2.2. Base Nacional Comum Curricular: normatividade e intencionalidade
A Base Nacional Comum Curricular, aprovada pelo Conselho Nacional de Educação e homologada pelo Ministério da Educação em 2017, é um documento normativo que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os estudantes brasileiros têm o direito de desenvolver ao longo da Educação Básica (BRASIL, 2017). Estruturada por áreas do conhecimento e competências gerais, a BNCC visa garantir a equidade educacional, promover a mobilidade dos estudantes e assegurar o direito à aprendizagem, independentemente da região ou rede de ensino.
Entre os princípios que orientam a BNCC estão: a promoção de uma educação integral, a valorização da diversidade, o respeito aos direitos humanos e o estímulo ao protagonismo juvenil. No entanto, autores como Azevedo, Basso e Morais (2022) alertam para os riscos de um currículo excessivamente prescritivo, que possa limitar a autonomia pedagógica das escolas e reduzir a educação a um conjunto de competências técnicas e comportamentais.
A BNCC também se relaciona com os documentos curriculares estaduais e municipais, exigindo das redes e das escolas a reelaboração de seus currículos e projetos pedagógicos à luz das competências e habilidades descritas na Base. Como observa Sacristán (2000), todo currículo oficial deve ser interpretado, traduzido e adaptado pelas escolas, sob pena de se tornar uma imposição descontextualizada e ineficaz.
2.3. Currículo, autonomia e contexto
O conceito de currículo, fundamental para o entendimento do PPP e da BNCC, ultrapassa a simples seleção de conteúdos. Para Moreira e Silva (1994), currículo é um campo de disputas, onde se definem não apenas o que ensinar, mas também como, para quem e com que finalidade. Assim, a construção do PPP representa uma oportunidade para que a escola exerça sua autonomia de forma crítica, contextualizada e democrática, dialogando com as diretrizes da BNCC sem se submeter de forma acrítica a elas.
Nesse sentido, o PPP não pode ser um documento burocrático ou meramente formal, mas sim um instrumento político de transformação da realidade educacional, que considere as particularidades dos sujeitos escolares, as demandas da comunidade e os desafios da sociedade contemporânea. Como reforça Freire (1996), a prática educativa deve ser dialógica, crítica e comprometida com a emancipação dos sujeitos.
3. HISTÓRIAS E CONTEXTO DE ELABORAÇÃO DO PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO E DA BASE NACIONAL CURRICULAR COMUM.
Compreender a trajetória histórica e o contexto de formulação do Projeto Político-Pedagógico (PPP) e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é essencial para analisar suas finalidades e implicações na organização do trabalho pedagógico das escolas. Ambos os instrumentos surgem como respostas a demandas sociais e educacionais específicas, refletindo concepções de educação, currículo e Estado em diferentes momentos da história da educação brasileira.
3.1. A origem do Projeto Político-Pedagógico
O conceito de PPP ganhou relevância no Brasil a partir dos anos 1990, em um contexto de redemocratização e de reformas educacionais baseadas nos princípios da autonomia, da gestão democrática e da participação comunitária. A promulgação da Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) n.º 9.394/1996 foram marcos fundamentais para a institucionalização do PPP como exigência legal e instrumento de planejamento escolar.
A LDB estabelece que os estabelecimentos de ensino têm o dever de elaborar sua proposta pedagógica, em consonância com os princípios de liberdade e gestão democrática do ensino público (BRASIL, 1996). Nesse sentido, o PPP surge como um mecanismo de concretização da autonomia escolar, permitindo que cada instituição construa seu projeto educativo em diálogo com sua realidade social, cultural e econômica (VEIGA, 2001).
A década de 1990 também foi marcada pela influência de organismos internacionais como o Banco Mundial e a UNESCO, que passaram a enfatizar a importância da qualidade da educação, da descentralização administrativa e da avaliação por resultados. Tais orientações influenciaram a estruturação dos sistemas educacionais e, consequentemente, os parâmetros para a elaboração dos projetos pedagógicos (SAVIANI, 2008).
3.2. A formulação da BNCC: trajetória e disputas
A Base Nacional Comum Curricular começou a ser concebida oficialmente em 2015, embora sua origem remonte à Constituição Federal de 1988, que já previa a definição de um conteúdo mínimo comum para a Educação Básica (Art. 210), e à própria LDB, que em seu Art. 26 determina a existência de uma base nacional comum a ser complementada por uma parte diversificada, adaptada às realidades regionais.
A elaboração da BNCC envolveu uma série de consultas públicas, audiências, contribuições de professores, especialistas e organizações da sociedade civil. Três versões preliminares foram publicadas entre 2015 e 2017, com ajustes significativos em resposta às críticas e debates públicos. Sua versão final foi homologada pelo Ministério da Educação em dezembro de 2017, tornando-se referência obrigatória para a elaboração dos currículos das redes de ensino e para os materiais didáticos e avaliações externas (BRASIL, 2017).
O processo, contudo, não esteve isento de tensões. Como argumenta Oliveira (2018), a BNCC é produto de disputas políticas e ideológicas em torno de concepções distintas de currículo: uma mais tecnicista, voltada para competências e habilidades mensuráveis; outra mais crítica, centrada na formação cidadã e na diversidade cultural. Essas tensões evidenciam o caráter contraditório da BNCC como política pública: ao mesmo tempo em que busca promover a equidade e garantir o direito à aprendizagem, pode também induzir à padronização curricular e à perda de autonomia das escolas (AZEVEDO; BASSO; MORAIS, 2022).
Além disso, o contexto político de sua aprovação, em meio a instabilidades institucionais e disputas ideológicas, acentuou o caráter controverso do documento. A exclusão de temas como gênero, sexualidade e direitos humanos, por exemplo, foi alvo de duras críticas por parte de setores acadêmicos e movimentos sociais, que denunciaram retrocessos no campo das políticas educacionais (UNISINOS, 2020).
3.3. Do currículo mínimo à gestão por competências
A trajetória histórica da BNCC reflete uma mudança no paradigma curricular da educação brasileira. Enquanto as primeiras diretrizes curriculares, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) da década de 1990, priorizavam competências cognitivas e temas transversais, a BNCC consolida uma abordagem orientada para competências gerais e específicas, organizadas por áreas do conhecimento e etapas de ensino.
Esse modelo está alinhado com a lógica da gestão por resultados e da avaliação de desempenho, características do gerencialismo educacional contemporâneo. Segundo Dourado (2019), a implementação da BNCC ocorre em meio à consolidação de uma nova racionalidade educacional, baseada na responsabilização, no controle e na mensuração de resultados, em detrimento da formação integral e do reconhecimento das diferenças.
Nesse contexto, a função do PPP torna-se ainda mais relevante, pois representa o espaço institucional onde as escolas podem reinterpretar as diretrizes da BNCC à luz de suas realidades, resistindo à padronização e afirmando sua identidade pedagógica. Como defende Sacristán (2000), o currículo oficial precisa ser "contextualizado" e não simplesmente "aplicado", sob pena de se tornar ineficaz e alienante.
4. A RELAÇÃO ENTRE O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO E A BASE NACIONAL CURRICULAR COMUM
A integração entre o Projeto Político-Pedagógico (PPP) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é uma questão central no contexto atual da educação brasileira. Ambos os instrumentos têm funções distintas, mas interdependentes: enquanto a BNCC estabelece parâmetros nacionais obrigatórios para os currículos escolares, o PPP é o documento institucional que organiza a proposta pedagógica da escola em diálogo com sua realidade local (Fênix Educação, 2023). Essa relação, entretanto, não está isenta de tensões, especialmente no que diz respeito à conciliação entre normatividade nacional e autonomia escolar.
4.1. BNCC como marco normativo e o PPP como mediação contextual
A BNCC foi concebida para garantir o direito à aprendizagem e à equidade na oferta curricular em todo o território nacional, definindo o que deve ser aprendido por todos os alunos, independentemente de onde estudam (BRASIL, 2017). Dessa forma, ela serve como um documento orientador obrigatório, com o objetivo de reduzir as desigualdades educacionais e alinhar políticas públicas como a formação docente, os livros didáticos e as avaliações externas (Dourado, 2019).
Por outro lado, o PPP se constitui como um instrumento de construção coletiva da identidade pedagógica da escola. Ele organiza a gestão curricular, administrativa e avaliativa de acordo com os princípios da comunidade escolar e as necessidades dos estudantes. Segundo Veiga (2001), o PPP deve refletir a singularidade de cada instituição, funcionando como o elo entre os princípios educacionais gerais e as práticas concretas do cotidiano escolar.
Nesse contexto, a BNCC não substitui o PPP, mas deve ser incorporada a ele de forma crítica e contextualizada. Como destacam Azevedo, Basso e Morais (2022), “a BNCC precisa ser reelaborada pelas escolas no interior de seus projetos pedagógicos, respeitando a diversidade cultural e as especificidades regionais e locais”.
4.2. Tensões entre padronização e autonomia
Apesar de sua proposta de garantir equidade, a BNCC tem sido criticada por seu caráter tecnicista e normativo. Ao estabelecer um currículo mínimo comum com detalhamento de competências e habilidades, corre-se o risco de padronizar excessivamente o processo de ensino-aprendizagem e de limitar a liberdade criativa e pedagógica das escolas e professores (Oliveira, 2018).
Essa tensão é especialmente problemática em contextos escolares marcados por grande diversidade sociocultural. A obrigatoriedade de aderência à BNCC pode levar à adoção acrítica de modelos prontos, dificultando a construção de um currículo que dialogue com a realidade vivida pelos sujeitos escolares (Sacristán, 2000).
A crítica não é à existência de uma base comum — que é legítima e prevista legalmente desde a Constituição de 1988 —, mas sim à forma como essa base tem sido implementada, muitas vezes de forma verticalizada, com pouca participação das comunidades escolares. Como destaca o Repositório Canvas da Unisinos (2020), “a centralização curricular pode comprometer a gestão democrática da educação, prevista legalmente como um dos fundamentos da escola pública”.
4.3. Convergências possíveis: complementaridade e diálogo
Apesar das tensões, é possível estabelecer uma relação dialógica e complementar entre o PPP e a BNCC. O PPP pode servir como instrumento de mediação crítica, incorporando os conteúdos essenciais da BNCC sem abrir mão da identidade da escola, de seus valores e de sua função social transformadora (FREIRE, 1996).
Para tanto, é necessário que as escolas e os sistemas de ensino compreendam que o alinhamento entre PPP e BNCC não implica submissão, mas sim um processo de tradução pedagógica. Ou seja, a BNCC deve ser apropriada pelas escolas de forma crítica, criativa e participativa, respeitando os contextos culturais, geográficos e históricos de cada realidade.
Como reforça o Projeto Relo (2023), a construção de um PPP alinhado à BNCC exige escuta ativa da comunidade escolar, análise diagnóstica das condições da escola, formação continuada dos docentes e avaliação constante das práticas pedagógicas. Nessa perspectiva, o PPP torna-se o lugar de síntese entre diretrizes nacionais e demandas locais, garantindo um currículo ao mesmo tempo comum e plural.
5. ESTRATÉGIAS DE ALINHAMENTO ENTRE O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO E A BASE NACIONAL CURRICULAR COMUM
A implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) exigiu das redes de ensino e das escolas uma revisão profunda de seus currículos e práticas pedagógicas. Nesse processo, o Projeto Político-Pedagógico (PPP) desempenha um papel decisivo como mediador entre as orientações nacionais e as demandas locais. Para que esse alinhamento ocorra de forma eficaz, democrática e coerente, é necessário adotar estratégias que envolvam a gestão escolar, a formação docente e a participação comunitária.
5.1. Análise crítica e contextual da BNCC
O primeiro passo para integrar a BNCC ao PPP é a análise crítica de seus princípios, competências e habilidades, relacionando-os com a realidade da escola e os objetivos institucionais já definidos. Essa análise deve ser realizada de forma coletiva, em espaços como conselhos escolares, reuniões pedagógicas e formações continuadas (Oliveira, 2018).
Segundo Sacristán (2000), qualquer currículo normativo precisa ser reinterpretado pela escola, considerando o contexto social, cultural, político e econômico em que está inserida. Essa interpretação permite que a escola compreenda não apenas o “o quê” ensinar, mas principalmente “para quem” e “para quê” ensinar.
5.2. Formação continuada dos professores
A formação docente é uma das principais condições para o alinhamento qualificado entre PPP e BNCC. Não se trata apenas de apresentar os conteúdos da Base, mas de promover espaços reflexivos onde os educadores possam discutir, questionar e adaptar as competências gerais e específicas ao seu cotidiano pedagógico.
De acordo com Dourado (2019), a adesão efetiva à BNCC não pode ser imposta, mas sim construída a partir do protagonismo dos professores, que são os sujeitos mediadores do currículo em ação. Investir em formações presenciais e em serviço, com acompanhamento pedagógico e troca de experiências, é uma estratégia essencial para assegurar essa mediação.
5.3. Revisão curricular participativa
A BNCC exige que o currículo escolar seja reestruturado com base nas dez competências gerais e nas habilidades específicas por área do conhecimento e etapa de ensino. No entanto, esse processo de reorganização curricular deve estar articulado ao PPP e ser conduzido de forma participativa, com envolvimento de professores, gestores, estudantes e comunidade.
A revisão do currículo, dentro da lógica do PPP, deve manter o foco nas necessidades dos estudantes e nos valores da escola. Como destaca o Projeto Relo (2023), a personalização do currículo à luz da BNCC só será efetiva se for feita com escuta ativa da comunidade escolar e clareza sobre os objetivos formativos da instituição.
5.4. Planejamento pedagógico integrado
Outro ponto fundamental é o planejamento pedagógico integrado. As ações pedagógicas e administrativas da escola — como projetos interdisciplinares, avaliações, planos de aula e atividades extracurriculares — devem estar articuladas ao PPP e, por consequência, à BNCC.
A construção de mapas de habilidades, matrizes curriculares e instrumentos de avaliação diagnóstica são recursos eficazes para visualizar a integração entre as propostas da BNCC e os objetivos formativos da escola. Além disso, a adoção de metodologias ativas, como projetos, oficinas e resolução de problemas, pode favorecer o desenvolvimento das competências gerais previstas na Base (Moran, 2015).
5.5. Avaliação contínua e autoavaliação institucional
Por fim, o alinhamento entre PPP e BNCC deve ser constantemente avaliado e reavaliado, por meio de instrumentos como a autoavaliação institucional, os resultados de aprendizagem e o monitoramento das práticas pedagógicas. Avaliar não significa apenas verificar o cumprimento de metas, mas refletir sobre os processos formativos, os desafios enfrentados e os avanços conquistados.
A proposta de avaliação formativa, baseada em indicadores de qualidade e participação coletiva, permite à escola ajustar suas práticas, revisar seus objetivos e aprimorar sua proposta pedagógica. Como reforça Veiga (2001), o PPP é um “documento em movimento”, que deve ser constantemente revisitado para continuar sendo expressão viva da prática educativa.
6. DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA PRATICA ESCOLAR
A implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) nas escolas brasileiras tem provocado um movimento de revisão dos Projetos Político-Pedagógicos (PPP), exigindo que as instituições articulem suas práticas à nova normativa nacional. Nesse processo, emergem múltiplos desafios, mas também possibilidades que, se bem conduzidas, podem contribuir para a efetivação de uma educação de qualidade, contextualizada e democrática.
Um dos principais desafios enfrentados pelas escolas é a tensão entre a padronização proposta pela BNCC e a autonomia escolar garantida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Conforme o artigo 12 da LDB (Lei nº 9.394/1996), os estabelecimentos de ensino têm o direito de elaborar e executar sua proposta pedagógica, respeitando a diversidade local. Contudo, a BNCC, ao definir com precisão competências e habilidades a serem desenvolvidas, pode restringir esse espaço de autonomia, configurando um viés tecnicista que preocupa diversos educadores e pesquisadores (AZEVEDO; BASSO; MORAIS, 2022).
Nesse sentido, Azevedo, Basso e Morais (2022) apontam que a BNCC apresenta uma racionalidade curricular fortemente baseada em competências e resultados, o que, embora facilite o monitoramento das aprendizagens, pode esvaziar a dimensão crítica, formativa e emancipatória do currículo, especialmente quando aplicada de forma acrítica. Essa perspectiva pode reduzir o papel da escola a um espaço de treino para avaliações, desconsiderando os aspectos sociais, culturais e afetivos do processo educacional.
A crítica à uniformização curricular também é destacada por análises contemporâneas sobre a BNCC. Segundo a Wikipedia (2023), o processo de construção da base foi marcado por controvérsias, envolvendo debates entre especialistas, movimentos sociais e o poder público. Muitos apontaram que, ao tentar garantir “isonomia” na educação nacional, a BNCC corre o risco de negligenciar as especificidades regionais e culturais, um aspecto que deveria ser central em um país continental como o Brasil.
Por outro lado, há possibilidades importantes que emergem da articulação entre o PPP e a BNCC, sobretudo quando a escola compreende o PPP como um documento vivo, construído coletivamente, que não apenas acolhe as orientações da BNCC, mas também ressignifica essas diretrizes à luz do seu contexto local. Para isso, é fundamental que a escola se organize por meio de processos participativos, envolvendo a comunidade escolar (docentes, estudantes, gestores, famílias) na discussão e reelaboração de suas propostas pedagógicas (FÊNIX EDUCAÇÃO, 2023; SPONTE, 2023).
Além disso, a BNCC também pode ser compreendida como uma oportunidade de revisão e fortalecimento dos processos pedagógicos, desde que utilizada de forma crítica. Segundo a SAE Digital (2023), a revisão do PPP pode contribuir para maior coerência entre currículo, planejamento, avaliação e formação docente, ampliando o potencial de transformação da prática escolar. O Projeto Relo, por sua vez, defende a adoção de estratégias como a construção de matrizes de competências, o desenvolvimento de projetos interdisciplinares e a formação continuada dos professores como caminhos para articular os referenciais normativos com a realidade concreta da escola (PROJETORELO – DESAFIO, 2023).
Por fim, é importante destacar que o PPP não deve ser visto como um simples documento burocrático, mas sim como um instrumento de reflexão e ação política-pedagógica. Como enfatiza a Unisinos (2023), o verdadeiro desafio é transformar o PPP em um espaço de resistência e autonomia, capaz de conciliar as exigências normativas da BNCC com a pluralidade cultural, social e educacional presente em cada território escolar.
Portanto, apesar das dificuldades estruturais e políticas que cercam o alinhamento entre PPP e BNCC, o processo pode gerar importantes avanços na qualidade educacional, desde que sustentado em princípios democráticos, participação coletiva e reflexão crítica constante.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O alinhamento entre o Projeto Político-Pedagógico (PPP) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) representa um dos principais desafios contemporâneos enfrentados pelas escolas brasileiras. Ao longo deste artigo, buscou-se compreender como a BNCC, enquanto documento normativo de caráter nacional, influencia diretamente a formulação curricular e as práticas pedagógicas, exigindo uma reconfiguração crítica e contextualizada dos PPPs.
Observou-se que a BNCC estabelece diretrizes essenciais para assegurar uma educação comum a todos os estudantes do país, promovendo competências gerais e habilidades específicas que devem ser desenvolvidas ao longo da educação básica. No entanto, essa normatização carrega o risco de fomentar uma padronização excessiva, que pode desconsiderar as peculiaridades culturais, sociais e econômicas de cada território escolar.
Nesse contexto, o PPP surge como um instrumento fundamental de mediação entre as exigências da BNCC e a realidade concreta das escolas. Quando concebido de forma democrática e participativa, o PPP tem o potencial de resguardar a autonomia pedagógica, valorizar a identidade local e garantir a construção de um currículo coerente com os princípios da gestão democrática, da inclusão e da equidade.
As possibilidades de integração entre PPP e BNCC tornam-se mais efetivas quando as escolas investem em estratégias de formação docente, análise crítica das competências propostas, desenvolvimento de projetos interdisciplinares e monitoramento constante dos resultados. Nesse processo, é fundamental que os educadores e gestores não apenas revisem os documentos institucionais, mas também promovam reflexões permanentes sobre a finalidade da educação, a partir de um olhar comprometido com a transformação social e o desenvolvimento integral dos estudantes.
Considera-se, portanto, que mais do que adaptar documentos, o verdadeiro desafio está em construir uma escola que reconheça a BNCC como referência, mas que não abdique de sua autonomia, criatividade e compromisso com a formação cidadã e crítica. O PPP, quando legitimado como ferramenta política e pedagógica, pode ser o ponto de partida para essa transformação, articulando normas nacionais com práticas contextualizadas e emancipadoras.
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