PARA ALÉM DAS SOMBRAS: A INTERDISCIPLINARIDADE COMO IMPERATIVO EPISTEMOLÓGICO NOS ESTUDOS MIGRATÓRIOS

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17196233


Lucas Freitas de Souza1


RESUMO
Este artigo posiciona-se criticamente perante as abordagens disciplinares tradicionais sobre migração, argumentando que a sua complexidade multifacetada exige um enquadramento teórico-metodológico interdisciplinar. Partindo da alegoria da caverna de Platão, o texto analogia que as análises fragmentadas por áreas isoladas (Economia, Direito, Sociologia) oferecem apenas uma visão parcial e distorcida (“sombras”) do fenómeno. Defende-se que o migrante e o processo migratório formam um sistema ecológico de influências recíprocas, integrando dimensões económicas, legais, sociais, culturais, subjetivas e de redes de apoio. O objetivo central é demonstrar a indispensabilidade da interdisciplinaridade para iluminar não apenas as “sombras”, mas o “fogo” que as projeta — a realidade complexa e humana dos movimentos migratórios. O artigo desenvolve-se através de uma revisão crítica da literatura, identificando os desafios paradoxais inerentes a esta abordagem, como a tendência para o discurso metafórico, a dificuldade de operacionalização metodológica e os obstáculos institucionais. Conclui-se propondo que a superação desses desafios através de ferramentas concretas, como a triangulação de dados e a delimitação de questões de pesquisa que forcem a integração de saberes, é um imperativo ético e prático para produzir um conhecimento capaz de responder à realidade social complexa.
Palavras-chave: Estudos Migratórios. Interdisciplinaridade. Metodologia de Pesquisa. Complexidade. Epistemologia.

ABSTRACT
This article critically addresses traditional disciplinary approaches to migration, arguing that its multifaceted complexity demands an interdisciplinary and trans-methodological theoretical-methodological framework. Using Plato's allegory of the cave as an analogy, the text contends that analyses fragmented into isolated fields (Economics, Law, Sociology) offer only a partial and distorted view (“shadows”) of the phenomenon. It is argued that the migrant and the migratory process form an ecological system of reciprocal influences, integrating economic, legal, social, cultural, subjective, and network support dimensions. The central objective is to demonstrate the indispensability of interdisciplinarity to illuminate not just the “shadows,” but the “fire” that projects them—the complex and human reality of migratory movements. The article proceeds through a critical literature review, identifying the paradoxical challenges inherent in this approach, such as the tendency towards metaphorical discourse, the difficulty of methodological operationalization, and institutional obstacles. It concludes by proposing that overcoming these challenges through concrete tools, such as data triangulation and the framing of research questions that necessitate the integration of knowledge, is an ethical and practical imperative for producing knowledge capable of addressing a complex social reality.
Keywords: Migration Studies. Interdisciplinarity. Research Methodology. Complexity. Epistemology.

1 INTRODUÇÃO

As migrações são um dos fenômenos mais complexos e multifacetados da nossa era. Embora frequentemente analisadas de forma isolada por diferentes áreas do conhecimento, como a Sociologia, a Demografia, a Economia ou o Direito, essa abordagem fragmentada nos oferece apenas uma compreensão parcial da realidade. É como a alegoria da caverna de Platão (2008), onde os prisioneiros, acorrentados, veem apenas as sombras da realidade e acreditam que elas são a verdade. De forma semelhante, ao estudar as migrações sob uma única lente, vemos apenas “sombras” de um processo muito maior e mais profundo.

Apesar de ser útil para focar em aspetos específicos, essa compartimentalização falha em capturar a verdadeira natureza das migrações. Elas não se resumem a dados demográficos, fluxos econômicos ou questões legais. Envolvem uma teia de elementos interconectados, como as redes sociais que os migrantes criam para se apoiar, as trajetórias culturais que moldam suas identidades, as subjetividades e experiências pessoais que influenciam suas decisões, e as condicionantes políticas que determinam seu acesso a direitos e oportunidades.

Para entender a migração em sua totalidade, é preciso ir além das fronteiras disciplinares. É necessário integrar essas diferentes perspectivas, combinando dados e teorias para construir uma visão mais completa e realista. Só assim poderemos ir além das sombras e compreender a complexidade e a humanidade que estão no cerne do movimento migratório.

A percepção de que a complexidade dos fenômenos contemporâneos não pode ser adequadamente compreendida por meio de abordagens disciplinares isoladas tem impulsionado a ascensão do pensamento interdisciplinar. Esta abordagem defende que a união de saberes distintos — sejam eles de natureza quantitativa ou qualitativa, teórica ou aplicada — é essencial para alcançar uma compreensão holística dos objetos de estudo multifacetados (Jantsch, Bianchetti, 2011; Leis, 2005).

A metáfora da floresta, onde as árvores coexistem em um complexo sistema de troca e suporte mútuo (Mlodinow, 2015), ilustra de forma análoga o funcionamento da pesquisa interdisciplinar. Assim como a saúde da floresta depende da interação entre diferentes espécies e elementos, o avanço do conhecimento científico beneficia-se da convergência de lógicas e metodologias divergentes. Tal convergência é capaz de iluminar as nuances dos “dados marginais” e das perspectivas muitas vezes negligenciadas por abordagens mais tradicionais (Durand, 2015; Mills, 2009).

Em essência, a interdisciplinaridade transcende as fronteiras rígidas do conhecimento. Ao integrar diferentes pontos de vista, ela não apenas enriquece a análise, mas também permite a identificação de conexões e padrões que seriam invisíveis para uma única disciplina. Dessa forma, a colaboração entre saberes se torna uma ferramenta fundamental para desvendar a intricada rede de causas e efeitos que define a realidade do nosso tempo.

Neste contexto, este artigo posiciona-se criticamente perante as abordagens tradicionais sobre migração, argumentando que a sua verdadeira compreensão exige um enquadramento teórico-metodológico interdisciplinar e transmetodológica (Almeida, La Torre, 2020). Partimos da premissa de que o migrante e o processo migratório formam um sistema ecológico de influências recíprocas, mobilizado (Cefaï, 2017a, 2017b, 2009, 2011, 2007), no qual o indivíduo é simultaneamente agente e produto de estruturas complexas. Assim, investigar a migração significa não apenas analisar dados de fluxo, mas também interpretar narrativas, contextos e redes que conferem significado ao ato de migrar.

O objetivo central deste trabalho é, portanto, demonstrar a indispensabilidade da interdisciplinaridade para os estudos migratórios, propondo um modelo de análise que integre contributos de diversas áreas do saber — das Ciências da Saúde às Humanidades, das Ciências Sociais à Linguística — sem, contudo, abdicar da necessária delimitação do objeto. Pretende-se assim iluminar não apenas as “sombras na parede”, mas o próprio fogo que as projeta, oferecendo uma compreensão mais profunda e aplicável à realidade social complexa que caracteriza os movimentos humanos no mundo atual.

2 INTERDISCIPLINARIDADE NA BUSCA PELA COMPREENSÃO DO TODO

As árvores que compõe a floresta permitem umas às outras a existência, pois, juntas, não apenas consomem, mas também produzem, trocam e retém recursos e nutrientes (Mlodinow, 2015). Está união, ou pelo menos, adaptação\aplicação dos recursos produzidos por uma e utilizados por outras, retorna séculos após Heráclito e, a deixar de ser uma harmonia cósmica, passa a ser um relacionar sistêmico, inter, multi, pluri e\ou transdisciplinar. Errôneo seria pensar que a construção da ciência e evolução do pensamento se dá por apenas uma única, e tida como verdadeira, vertente (Berlin, 1991). Visualizar apenas aquilo que seus antolhos lhe permite e crer que aquela é a única realidade possível — apesar de necessário para uma melhor compreensão específica — é, semelhantemente, negar-se a sair da caverna, tal como na alegoria de Platão (Platão, 2008), pois, a sobras da paredes já lhe fazem a tradução do mundo real. Fundamentar, portanto, a resolução de um questionamento científico em apenas uma fonte teórica se assemelha a acreditar na realidade transmitida pelas sombras na parede.

A tradução deste novo conceito transcende a simples união do uno ao todo. É, ao seu modo, o equilíbrio de vários fatores, tais como: uma relação entre uma análise fragmentada e uma síntese (Jantsch, Bianchetti, 2011); um equilíbrio de forças entre as formas de ver racional, instrumental e subjetiva (Lenoir, Hasni, 2004); ou, uma união, em simultâneo, entre o trabalho em equipe com o individual (Klein, 1990). Em suma, é a utilização de lógicas e atividades divergentes, mas, concomitantemente, convergentes entre si. Não excluem o valor dos dados marginais, pelo contrário, reconhecem seu valor e importância (Durand, 2015; Mills, 2009, 1982), e, de forma a abranger ou permitir uma melhor visualização, não banem outras formas de ver (Leis, 2001).

A interdisciplinaridade, mostra-se, desta maneira, essencial para a compreensão completa de um objeto de pesquisa na sociedade moderna (Leis, 2005). Se, ao exemplo de um motor desenvolvido pelos engenheiros, diversos fatores como: o material de construção; combustível; pressão; temperatura; ou, até mesmo, a maneira como o utilizador opera o mecanismo, pertencentes a campos de estudos diferentes, influenciam no resultado do projeto em desenvolvimento, o mesmo ocorre nas outras ramificações da ciência. Desta maneira, assim como esclarece Durand (2015), e a trazer novamente a abordagem a temática do presente trabalho, torna-se indispensável, também, aos estudos migratórios a interdisciplinaridade.

A compreensão aprofundada do fenômeno migratório demanda uma abordagem plural, que vá além da simples aplicação de métodos quantitativos, tradicionalmente utilizados para mensurar fluxos migratórios por meio de dados numéricos. Embora tais métodos sejam importantes para a análise estatística, eles se mostram insuficientes para captar as nuances e as dificuldades enfrentadas pelos migrantes, as quais não se restringem a representações em tabelas e gráficos. Torna-se indispensável, portanto, a incorporação de métodos qualitativos, capazes de interpretar narrativas, contextos e redes sociais que conferem significado aos processos migratórios.

Nesse sentido, a integração de diversas áreas do saber — como as Ciências da Saúde, Humanas, Sociais Aplicadas e Linguística — revela-se fundamental para ampliar o campo de visão sobre o objeto de estudo e proporcionar uma compreensão mais abrangente e realista da complexidade que caracteriza as migrações. Conforme argumenta Durand (2015), restringir-se aos princípios e regras de uma única disciplina limita não apenas o entendimento, mas também a aplicabilidade dos resultados à realidade social, prejudicando o avanço das investigações migratórias.

Comte (1978) já destacava que, embora o objeto de estudo seja, em essência, uno, a fragmentação disciplinar ocorre como estratégia para lidar com as dificuldades inerentes à pesquisa. No entanto, essa divisão pode se tornar um obstáculo quando questões relevantes exigem a combinação de múltiplos pontos de vista, algo que já não é tão raro na configuração atual da ciência. Dessa forma, problemas complexos, como os relativos à migração, tendem a permanecer sem solução por mais tempo do que seria necessário, justamente pela ausência de integração interdisciplinar nos esforços investigativos (Comte, 1978; Durand, 2015).

Claro que, uma maior delimitação, tanto em relação ao objeto quanto aos conceitos metodológicos e teóricos, tende a facilitar o desenvolvimento do trabalho, tal como afirmado por inúmeros autores metodológicos2. Porém, o que estes muitas vezes esquecem-se de lembrar é que a delimitação não se resume apenas ao objeto, teorias e métodos. Semelhante ao estabelecido por Lavoisier (1798a, 1798b), que alerta sobre o fato da proporção de utilização de um elemento sobre o outro produzir influências no resultado, a delimitação também acaba por limitar o produto final e, consequentemente, a uma restrição de sua aplicabilidade. Buscar a compreensão ou a solução para um problema específico vai muito além de apenas resolver o problema em si. É preciso, acima de tudo, compreender sua existência.

Investigar um objeto como as migrações e as nuances que o constituem, não se resume apenas a imagem refletida pelas sombras nas paredes da caverna. Mostra-se necessário compreender, para além das sombras, o fogo que produz a luz que lhes dá vida. É o que aponta Durand (2015), o qual afirma que, “para pesquisar sobre o tema migratório, não se pode deixar de lado o contexto do mercado de trabalho, da oferta e da demanda” (Durand, 2015, p. 15). A expandir este contexto, migrar envolve fatores que estão além da simplória busca, por exemplo, por uma melhora económica (Martins, 2021). Inúmeros fatores exercem variadas, múltiplas e recíprocas influências. Esta multiplicidade de faces exige, portanto, para sua melhor compreensão, uma igual pluralidade de formas. Apenas está diversidade consegue abarcar toda a complexidade de gestos, sentimentos, sonhos, redes, atores, usos, entre outros (Canclini, 2020).

Ao abordar um tema de grande amplitude, como as migrações, a necessidade de delimitação é inevitável. Não é possível analisar o fenômeno em sua totalidade de uma só vez, e a especialização se torna uma ferramenta fundamental para aprofundar o conhecimento sobre um de seus múltiplos aspectos. No entanto, o verdadeiro desafio consiste em limitar o objeto de estudo sem descaracterizá-lo, ou seja, sem negligenciar as inúmeras faces que o compõem. Trata-se de manter o foco em uma parte, mas sempre com a consciência de que essa parte pertence a um todo maior.

Essa relação pode ser ilustrada pela fiação elétrica de uma casa. A fiação não existe de forma isolada; sua essência e função dependem de sua interconexão com a casa. Da mesma forma, a casa, embora possa subsistir sem a fiação, não seria a mesma residência. Seus elementos, quando separados, são meros componentes individuais. Contudo, juntos, eles formam algo maior. A iluminação fornecida pela fiação à casa, combinada com outros fatores, como o conforto e a segurança, transforma uma simples construção em um lar habitável. A fiação, por sua vez, só adquire seu sentido pleno dentro do contexto da casa, que é uma parte de algo ainda maior — a rua, o bairro, a cidade, o planeta.

Assim, a pesquisa deve buscar a especialização contextualizada. É necessário aprofundar-se em uma dimensão específica do tema, mas sem perder de vista a complexa teia de inter-relações que a conecta ao todo. Ignorar essa conexão é como estudar a fiação elétrica em um vácuo, perdendo o sentido de sua função e sua contribuição para a habitabilidade da casa. A delimitação é, portanto, um ato de foco estratégico, não de exclusão, permitindo que a pesquisa contribua para uma compreensão mais rica e significativa do fenômeno em sua integralidade.

A migração, vista de forma isolada, pode ser entendida como um simples ato de deslocamento. No entanto, sua verdadeira complexidade reside nas múltiplas influências recíprocas entre o indivíduo e o processo. O migrante, enquanto agente, não é apenas moldado pelas circunstâncias; ele também exerce sua própria influência sobre o contexto migratório. A sua presença e as suas ações afetam as estruturas sociais, econômicas e culturais do novo ambiente.

Dessa forma, apesar da necessidade metodológica de delimitar o estudo, não se pode separar a figura do migrante da própria estrutura do processo migratório. Ambos estão intrinsecamente interligados, formando uma rede de interconexões. Estudar essa dinâmica exige, portanto, uma abordagem que não se limite a um ou outro, mas que compreenda tanto o migrante como um indivíduo quanto a migração como um fenômeno em sua totalidade.

Essa visão integrada requer uma amplitude teórica que permita ao pesquisador analisar as diversas camadas do processo. Somente assim é possível desvendar a intricada relação entre o ser humano e o movimento que o define, entendendo como o migrante é influenciado e, ao mesmo tempo, influencia o mundo ao seu redor.

O sentimento de sentir-se estrangeiro pode, por exemplo, inclusive, existir sem a migração, todavia, a figura do estrangeiro como migrante, e a própria migração em si, apenas existem na reciprocidade desta relação (Souza, 2025). Constituem, assim, um sistema ecológico (Cefaï, 2017a, 2017b), onde, na experiência da coletividade, os distúrbios e tensões se desenvolvem. Com isto, colocam sobre a pesquisa uma necessidade interdisciplinar e transmetodológica (Almeida, La Torre, 2020) para compreender, na multiplicidade a qual o objeto pertence, a própria essência do objeto em si.

Para compreender o migrante em toda a sua complexidade — como um ser que habita e é habitado pelos contextos em que se insere, que exerce e recebe influências — é necessário examinar as linhas e entrelinhas do código que o compõe. Assim como em um sistema de engenharia de software, onde a menor alteração, como a ausência de um ponto e vírgula, pode resultar em falhas inesperadas, a experiência do migrante é formada por uma vasta e intrincada rede de códigos interligados.

Buscar a compreensão desse código-fonte, que integra as dimensões do estrangeiro, do migrante e da migração, é uma tarefa complexa que exige a utilização de instrumentos variados. Uma abordagem interdisciplinar é fundamental para decifrar essa complexidade, pois cada disciplina oferece uma ferramenta única para ler e interpretar diferentes partes do código. Ao combinar saberes e metodologias, é possível obter uma visão mais completa, desvendando não apenas as partes isoladas, mas o sistema como um todo.

3 DESAFIOS METODOLÓGICOS E PROPOSTAS PARA UMA ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR EFETIVA

A defesa de uma perspectiva interdisciplinar para os estudos migratórios, embora necessária, depara-se com uma série de desafios paradoxais que, se não forem devidamente reconhecidos e mitigados, podem comprometer a sua eficácia e aplicabilidade. Estes desafios manifestam-se não apenas na execução prática da investigação, mas também, e de forma crucial, na própria estruturação discursiva e argumentativa que sustenta a proposta.

Um dos primeiros obstáculos reside na tendência para uma argumentação excessivamente metafórica. Recorrer a analogias é, sem dúvida, um recurso retórico válido para ilustrar a necessidade de síntese do conhecimento. Contudo, quando estas imagens se multiplicam sem uma tradução clara para conceitos operacionais, o argumento principal pode ficar obscurecido. O risco é que o texto se assemelhe mais à descrição das sombras do que à análise do fogo que as projeta (Platão, 2008), tornando-se ele próprio uma manifestação do problema que pretende criticar: a falta de clareza e de concretude. A interdisciplinaridade arrisca-se assim a permanecer um ideal poético, mas pouco prático, se não for ancorada em definições rigorosas e em exemplos concretos de como diferentes epistemologias e metodologias podem dialogar de forma produtiva (Jantsch, Bianchetti, 2011).

Para além desta questão discursiva, surge um desafio de fundo relacionado com a operacionalização do método. Defender a integração de contributos de diversas áreas é uma ambição nobre, mas a sua implementação prática levanta questões prementes. Como articular dados quantitativos maciços sobre fluxos migratórios com a análise qualitativa de narrativas pessoais? Que peso atribuir a cada tipo de dado na construção da explicação final? Sem uma proposta metodológica clara que especifique os mecanismos de integração — por exemplo, através da triangulação de dados —, a interdisciplinaridade pode degenerar numa mera justaposição multidisciplinar. Neste cenário, cada especialista contribuiria com a sua perspectiva de forma estanque, sem que se gere efetivamente o diálogo criativo que produz nova compreensão (Klein, 1990). O resultado seria um todo fragmentado, precisamente o oposto do que se pretende alcançar. É, portanto, imperativo não só proclamar a importância da interdisciplinaridade, mas também delinear um modus operandi que mostre como, concretamente, se pode analisar um fenómeno como a migração mantendo a riqueza da sua complexidade sem se perder na indefinição.

Outro problema significativo prende-se com a tensão inevitável entre a necessidade de delimitação do objeto de estudo e a ambição de abarcar a sua totalidade complexa. A prática científica, pela sua própria natureza, exige focagem e delimitação para que a investigação seja exequível. No entanto, delimitar excessivamente o objeto de estudo migratório é correr o risco de o esvaziar da sua essência multidimensional (Durand, 2015). Este é um dilema central: como estudar de forma manuseável uma realidade que é, por definição, transbordante? A solução não está em abandonar a delimitação, mas sim em redefini-la. Em vez de delimitar rigidamente o objeto, deve-se delimitar um problema ou uma questão de pesquisa que, pela sua natureza, exija uma lente interdisciplinar para ser respondida. Uma questão como “de que forma as trajetórias legais dos migrantes condicionam o seu bem-estar psicológico e a sua integração socioeconómica?” obriga, desde o início, a uma colaboração entre diferentes campos do saber. Desta forma, a delimitação não atua como uma redução do real, mas como um ponto de entrada estrategicamente escolhido para explorar a sua complexidade.

É crucial reconhecer que a prática interdisciplinar não está isenta de obstáculos. A estrutura atual do mundo acadêmico, organizada em departamentos e disciplinas isoladas, e a formação especializada dos pesquisadores criam barreiras concretas para a colaboração (Leis, 2005). Uma proposta robusta não pode ignorar esses desafios; ela deve, na verdade, refletir sobre como superá-los.

Para que a interdisciplinaridade deixe de ser apenas um conceito teórico, é preciso adotar medidas práticas. Isso inclui a criação de centros de pesquisa temáticos que unam especialistas de diferentes áreas. É também essencial promover financiamentos específicos para projetos que, por sua natureza, apresentam um risco mais elevado, mas que são fundamentais para a inovação. Mais do que isso, é necessário cultivar uma nova cultura acadêmica que valorize e recompense a colaboração entre as fronteiras disciplinares. Só assim será possível transcender as limitações e alcançar uma compreensão mais completa e integrada da realidade.

Em conclusão, a transição para um paradigma interdisciplinar nos estudos migratórios exige mais do que um apelo à totalidade; exige um exame crítico dos seus próprios pressupostos, o desenvolvimento de ferramentas metodológicas concretas e uma estratégia consciente para enfrentar os entraves institucionais. Só assim se poderá iluminar, de facto, não apenas as sombras na parede, mas o fogo complexo que as projeta (Platão, 2008).

4 CONCLUSÃO: DA NECESSIDADE TEÓRICA À IMPERATIVA PRÁTICA

A análise desenvolvida ao longo deste artigo permitiu demonstrar, de forma crítica e fundamentada, que a complexidade intrínseca do fenómeno migratório contemporâneo exige um olhar que transcende as fronteiras disciplinares convencionais. Como se procurou evidenciar, abordar as migrações exclusivamente através das lentes da Economia, do Direito, da Sociologia ou de qualquer outra disciplina isolada equivale a contentar-se com a observação de meras sombras projetadas na parede da caverna (Platão, 2008), obtendo-se assim uma visão plana e destituída da profundidade que caracteriza a realidade social. O migrante é um agente em constante interação com um complexo sistema de influências recíprocas (Cefaï, 1996, 2017a, 2017b). Por essa razão, sua experiência não pode ser compreendida de forma isolada ou fragmentada. Ao invés de uma figura unidimensional, o migrante é um nó em uma rede complexa que integra de maneira inseparável diversas dimensões de sua vida. Aspectos econômicos, jurídicos, sociais, culturais, psicológicos e subjetivos se entrelaçam para formar uma trajetória única e multifacetada, impossível de ser analisada por uma única perspectiva. Para entender a jornada do migrante, é fundamental reconhecê-lo como parte de um ecossistema, onde cada ação e decisão é influenciada e, ao mesmo tempo, influencia o ambiente ao seu redor.

A interdisciplinaridade, portanto, não se configura como uma mera opção metodológica entre outras, mas sim como um imperativo epistemológico para os estudos migratórios. Tal como a floresta onde as árvores coexistem num sistema de troca e suporte mútuo (Mlodinow, 2015), o conhecimento científico sobre migrações só pode florescer através da convergência de lógicas divergentes — quantitativas e qualitativas, objetivas e subjetivas, teóricas e aplicadas (Jantsch, Bianchetti, 2011; Leis, 2005). A única maneira de capturar a riqueza dos dados marginais e das perspectivas frequentemente negligenciadas (Durand, 2015; Mills, 2009) é através de uma abordagem integradora. Essa visão holística não apenas ilumina as sombras, mas também revela a fonte que as projeta, permitindo uma compreensão completa e profunda da realidade.

Contudo, como o presente artigo também criticamente reconheceu, a defesa deste paradigma esbarra em desafios substantivos. A tendência para uma argumentação excessivamente metafórica, a dificuldade de operacionalizar a integração metodológica, a tensão entre a delimitação do objeto e a ambição holística, e os obstáculos institucionais da academia são entraves reais que não podem ser ignorados. Superá-los exige mais do que retórica; exige a coragem de transgressão metodológica e a construção de ferramentas concretas de investigação. É imperativo que os pesquisadores migrem, eles próprios, das zonas de conforto das suas disciplinas de origem e se empenhem na construção de uma linguagem comum e de desenhos de pesquisa verdadeiramente híbridos, que articulem, por exemplo, dados macroestruturais de fluxos com microanálises de narrativas biográficas.

O caminho para a compreensão de fenômenos complexos, como as migrações, não reside no abandono da especialização disciplinar, mas sim na sua articulação estratégica em prol de um problema comum. O foco deve ser deslocado da natureza do objeto de estudo para a complexidade da questão a ser resolvida. Em vez de perguntar "o que é migração?", por exemplo, a pesquisa deve formular perguntas que, por sua própria natureza, exijam o contributo de múltiplas áreas do conhecimento. Questões como "de que forma o enquadramento legal modela a experiência subjetiva do desenraizamento?" ou "como as redes sociais transnacionais influenciam os resultados de saúde mental?" são exemplos que, à partida, forçam a interdisciplinaridade, promovendo uma análise mais rica e completa ao unir saberes diversos em torno de um desafio compartilhado.

Em última análise, este artigo conclui que a transição para um paradigma interdisciplinar nos estudos migratórios é mais do que um avanço académico; é uma necessidade ética e prática. Perante a urgência de formular políticas públicas mais eficazes, compreender conflitos sociais e promover a integração de populações deslocadas, não nos podemos dar ao luxo de compreensões parciais. O conhecimento que aspira a transformar a realidade complexa deve, ele próprio, ser capaz de a espelhar na sua totalidade dinâmica e multifacetada. O desafio que se coloca à comunidade científica é, pois, o de ousar sair da caverna, não para contemplar uma verdade única e imutável, mas para se lançar na construção colaborativa de um conhecimento tão complexo, rico e interligado quanto o próprio fenómeno que se propõe a estudar.

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1 Doutor em Sociologia. Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Violência. Bacharel em Direito, Ciência Políticas e Ciências Econômicas. Licenciado em Filosofia e em Letras- Português. Professor na Faculdade EFAN. Pesquisador Colaborador no CICS.NOVA.UÉvora e na Border: Conhecimento e Inovação. E-mail: [email protected]

2 Tais como Araújo (2018); Barbosa (2016); Bastos e Ferreira (2016); Booth, Colomb, Williams (2008); Delgado e Cervantes (2010); Goldenberg (2011); Greenwood (1965); Lakatos (1989); Marconi e Lakatos (2017, 2002); Mazucato (2018); entre outros.