O PAPEL DO BRINCAR NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL: REVISÃO SISTEMÁTICA DA LITERATURA
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17982128
João Barbosa dos Santos Netto1
RESUMO
Esta revisão sistemática da literatura investigou o papel do brincar no desenvolvimento infantil, considerando sua relevância como eixo formativo da Educação Infantil e sua relação com dimensões cognitivas, socioemocionais, linguísticas e culturais da aprendizagem. O objetivo consistiu em analisar como práticas lúdicas vêm sendo abordadas em estudos empíricos publicados entre 2014 e 2024, identificando conceitos, metodologias e evidências sobre seus impactos no desenvolvimento de crianças de 0 a 5 anos. Foram realizadas buscas nas bases SciELO, ERIC e Portal de Periódicos CAPES, utilizando descritores combinados em português e inglês, seguindo protocolo inspirado nas diretrizes PRISMA. Após triagem rigorosa, 42 estudos compuseram o corpus final, analisado por meio de análise de conteúdo temática. Os resultados indicam que o brincar intencional e mediado favorece significativamente atenção sustentada, memória de trabalho, imaginação criadora, linguagem oral, comunicação, autorregulação emocional e cooperação entre pares. A literatura revela que práticas pedagógicas que integram brincadeiras simbólicas, jogos de regras e atividades psicomotoras geram aprendizagem mais significativa e ampliam repertórios cognitivos e expressivos. Contudo, persistem desafios, como formação docente insuficiente, condições materiais limitadas e tensões entre documentos normativos e práticas escolares. Conclui-se que o brincar constitui linguagem essencial da infância, princípio pedagógico estruturante e condição indispensável para o desenvolvimento integral, exigindo políticas públicas, formação contínua e ambientes educativos intencionalmente planejados.
Palavras-chave: Desenvolvimento Infantil; Ludicidade; Aprendizagem; Brincadeira; Educação Infantil.
ABSTRACT
This systematic literature review investigated the role of play in child development, considering its relevance as a formative axis of Early Childhood Education and its relationship with cognitive, socio-emotional, linguistic, and cultural dimensions of learning. The objective was to analyze how play practices have been addressed in empirical studies published between 2014 and 2024, identifying concepts, methodologies, and evidence about their impacts on the development of children aged 0 to 5 years. Searches were conducted in the SciELO, ERIC, and CAPES Periodicals Portal databases, using combined descriptors in Portuguese and English, following a protocol inspired by the PRISMA guidelines. After rigorous screening, 42 studies comprised the final corpus, analyzed through thematic content analysis. The results indicate that intentional and mediated play significantly favors sustained attention, working memory, creative imagination, oral language, communication, emotional self-regulation, and peer cooperation. Literature reveals that pedagogical practices that integrate symbolic play, rule-based games, and psychomotor activities generate more meaningful learning and broaden cognitive and expressive repertoires. However, challenges persist, such as insufficient teacher training, limited material resources, and tensions between normative documents and school practices. It is concluded that play constitutes an essential language of childhood, a structuring pedagogical principle, and an indispensable condition for integral development, requiring public policies, continuous training, and intentionally planned educational environments.
Keywords: Child Development; Playfulness; Learning; Play; Early Childhood Education.
1. INTRODUÇÃO
O brincar ocupa lugar central na discussão contemporânea sobre desenvolvimento infantil, especialmente no campo da Educação Infantil, onde interações, imaginação, movimento e simbolização são reconhecidos como fundamentos da aprendizagem. A infância é marcada por uma intensa atividade exploratória que combina fantasia, experimentação e construção de significados, permitindo à criança interpretar o mundo e criar conexões entre experiências, emoções e conhecimentos. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reafirma essa perspectiva ao estabelecer que interações e brincadeiras constituem eixos estruturantes da Educação Infantil, articulando desenvolvimento cognitivo, socioemocional e linguístico. Nesse cenário, compreender o papel do brincar torna-se tarefa essencial para interpretar como processos educativos se organizam e quais condições favorecem ou limitam a aprendizagem nos primeiros anos de vida.
Apesar do reconhecimento normativo da importância da ludicidade, pesquisas apontam que muitas práticas escolares ainda se apoiam em modelos tradicionais, com atividades repetitivas, antecipação de conteúdos e baixa valorização da autonomia infantil. Tal contradição tensiona o cotidiano escolar e evidencia a necessidade de estudos que sistematizem evidências sobre como o brincar contribui efetivamente para o desenvolvimento infantil. Emergem, portanto, questionamentos fundamentais sobre a natureza pedagógica da ludicidade, sobre a mediação docente, sobre o papel do ambiente educativo e sobre as condições institucionais que influenciam a qualidade das experiências lúdicas.
Diante desse cenário, a presente pesquisa propõe como pergunta norteadora: de que modo o brincar contribui para o desenvolvimento infantil, considerando seus impactos cognitivos, socioemocionais, linguísticos e culturais? Para responder a essa questão, esta revisão sistemática tem como objetivo geral analisar como o brincar é tratado em pesquisas empíricas recentes sobre desenvolvimento infantil. Derivam desse objetivo quatro objetivos específicos: compreender concepções teóricas sobre ludicidade, identificar práticas lúdicas presentes nas pesquisas, examinar seus efeitos sobre o desenvolvimento e reconhecer fatores que favorecem ou restringem a ludicidade na Educação Infantil.
Partindo desses objetivos, formulam-se as hipóteses de que práticas lúdicas planejadas e mediadas intencionalmente favorecem significativamente a aprendizagem, de que ambientes ricos em estímulos ampliam interações e repertórios simbólicos, de que a formação docente afeta diretamente a qualidade da ludicidade e de que ainda há lacunas metodológicas que limitam conclusões mais amplas sobre impactos de longo prazo. Esses pressupostos orientam a análise, sustentada por referenciais clássicos e contemporâneos das áreas da psicologia, pedagogia e neurociências.
A justificativa deste estudo reside na relevância social e educacional da infância como período decisivo para a constituição da subjetividade, da linguagem e da cognição. Ao sistematizar evidências científicas sobre o brincar, o estudo oferece suporte para a tomada de decisões pedagógicas e políticas, contribuindo para práticas educativas mais humanizadas e alinhadas às necessidades reais das crianças. A relevância científica se destaca pela consolidação de achados dispersos em diferentes pesquisas, permitindo síntese crítica consistente com o estado da arte sobre o tema. Dessa forma, o presente artigo cumpre dupla função: contribuir para avanços teóricos no campo da ludicidade e fortalecer práticas pedagógicas comprometidas com o desenvolvimento integral. O brincar não é um recurso secundário, mas eixo estruturante da infância, linguagem privilegiada de expressão, comunicação e aprendizagem. Assim, investigá-lo em profundidade é condição necessária para a construção de políticas educacionais e práticas docentes mais sensíveis, inclusivas e transformadoras.
2. REFERENCIAL TEÓRICO
A compreensão do brincar como eixo estruturante do desenvolvimento infantil parte da concepção de que a criança aprende por meio da ação, da interação e da construção simbólica, elementos que se articulam no ato lúdico como forma privilegiada de acesso ao mundo. Vigotski afirma que “no brinquedo a criança aprende a agir numa esfera cognitiva, sendo guiada por significados” (VIGOTSKI, 2007, p. 35), evidenciando que o brincar produz zona de desenvolvimento proximal ao permitir que a criança realize ações que ainda não domina na vida real. Em diálogo com essa perspectiva, Oliveira (2016) destaca que a brincadeira cria condições para reorganização das funções psíquicas superiores, ampliando a capacidade de atenção, linguagem e imaginação. Assim, o brincar constitui experiência culturalmente mediada e fundamental para a formação de modos de pensar e agir.
As contribuições da psicologia cognitiva reforçam que o brincar não é apenas expressão espontânea, mas processo estruturante das capacidades mentais em desenvolvimento. Piaget observa que “o jogo é a expressão da atividade global da criança” (PIAGET, 1978, p. 160), o que inclui atividades sensório-motoras, simbólicas e de regras, cada uma vinculada a diferentes estágios cognitivos. Em interpretação da obra piagetiana, La Taille (2010) afirma que a brincadeira permite o exercício de funções representativas e o fortalecimento de estruturas mentais que sustentam aprendizagens futuras. Dessa forma, a ludicidade funciona como espaço em que a criança experimenta, combina, classifica, compara e cria hipóteses, processos essenciais para a construção do pensamento lógico, da autonomia intelectual e da compreensão de mundo.
A dimensão social do brincar é igualmente central, pois crianças constroem linguagem, reciprocidade e pertencimento por meio das interações lúdicas. Wallon afirma que “a afetividade é o centro da vida psíquica infantil” (WALLON, 2007, p. 52), sustentando que emoção, movimento e cognição são inseparáveis na infância. Em análise da perspectiva walloniana, Dantas (2010) evidencia que o brincar coletivo contribui para a formação da personalidade infantil ao permitir vivências compartilhadas, expressão de emoções e negociação de conflitos. Assim, a ludicidade se constitui como espaço relacional em que a criança aprende a se reconhecer, respeitar regras, criar vínculos e participar de práticas sociais importantes para sua inclusão e desenvolvimento integral.
Do ponto de vista sociocultural, o brincar é compreendido como fenômeno histórico e culturalmente situado, marcado por práticas sociais, valores e significados coletivos. Kishimoto enfatiza que “o brinquedo é cultura material da infância” (KISHIMOTO, 2011, p. 23), destacando que diferentes sociedades produzem modos distintos de brincar, cada um capaz de expressar concepções de infância e educação. Complementando essa visão, Corsaro (2011) argumenta que as culturas de pares constituem espaços de reprodução interpretativa, nos quais as crianças não apenas imitam modelos adultos, mas reinventam práticas, constroem regras e produzem sentidos próprios. Assim, o brincar não pode ser reduzido à espontaneidade, pois possui caráter sociocultural, simbólico e institucional, articulando experiências pessoais e elementos culturais amplos.
Estudos contemporâneos das neurociências confirmam que o brincar apoia o desenvolvimento de funções executivas e habilidades linguísticas, cognitivas e emocionais. Hirsh-Pasek e Golinkoff afirmam que “o brincar significativo fortalece redes neurais essenciais à linguagem, memória e autorregulação” (HIRSH-PASEK; GOLINKOFF, 2016, p. 74), reforçando que experiências lúdicas ativas criam ambientes favoráveis ao desenvolvimento cerebral. Singer (2015) complementa essa abordagem ao demonstrar que o faz-de-conta amplia capacidade de abstração, flexibilidade cognitiva e planejamento. Assim, o brincar emerge como condição que favorece o amadurecimento neural e o refinamento das habilidades psicológicas superiores, o que sustenta seu valor como ferramenta pedagógica.
No campo educacional, pesquisadores destacam a importância da intencionalidade pedagógica para que o brincar se converta em aprendizagem estruturada. Moyles defende que “a mediação docente qualificada determina o potencial educativo da brincadeira” (MOYLES, 2010, p. 41), enfatizando que o papel do professor é organizar ambientes, propor desafios e articular objetivos curriculares ao ato lúdico. Em concordância, Brougère (2012) argumenta que o jogo pedagógico só adquire profundidade quando inserido em contextos de significação e quando a criança é convidada a refletir, decidir e interpretar. Dessa perspectiva, o brincar exige planejamento, observação sensível e acompanhamento constante, características que qualificam a docência na Educação Infantil.
As políticas educacionais brasileiras também assumem o brincar como fundamento curricular. A Base Nacional Comum Curricular estabelece que “as interações e brincadeiras constituem eixos estruturantes das práticas pedagógicas” (BRASIL, 2018, p. 36), reconhecendo a ludicidade como direito da criança e princípio pedagógico. Em análise crítica desse documento, Campos (2019) observa que embora a BNCC avance na valorização da ludicidade, persistem desafios na implementação, pois práticas escolares fragmentadas e pressões avaliativas frequentemente restringem a autonomia e o protagonismo infantil. Essa tensão revela que o brincar, embora legitimado, depende de condições institucionais, formação docente e cultura escolar que reconheçam sua relevância.
Assim, o referencial teórico converge ao demonstrar que o brincar atua como linguagem, forma de pensamento, prática cultural, ferramenta cognitiva e instrumento pedagógico. Sua potência reside na capacidade de integrar dimensões afetivas, sociais, cognitivas e simbólicas, permitindo que a criança aprenda de maneira ativa, criativa e significativa. O brincar não é adendo curricular, mas fundamento da infância, eixo pedagógico e condição essencial para o pleno desenvolvimento humano.
3. METODOLOGIA
A metodologia desta revisão sistemática baseou-se em um percurso investigativo rigoroso inspirado nas diretrizes PRISMA, assegurando transparência, rastreabilidade e possibilidade de replicação. A escolha desse método decorre da necessidade de reunir, analisar e sintetizar evidências científicas dispersas, permitindo compreender tendências, convergências e lacunas relativas ao papel do brincar no desenvolvimento infantil. Conforme Gil (2019), a revisão sistemática oferece alto grau de rigor por seguir critérios explícitos de inclusão, exclusão e análise. Da mesma forma, Lakatos e Marconi (2017) enfatizam que processos sistematizados reduzem vieses interpretativos e ampliam a confiabilidade dos resultados.
O percurso iniciou-se com a definição da pergunta de pesquisa, seguindo Severino (2018), que destaca a importância da clareza problematizadora para orientar buscas, escolhas e análises. Em seguida, selecionaram-se as bases de dados: SciELO, ERIC e Portal de Periódicos CAPES, escolhidas por sua relevância para áreas da educação, psicologia e desenvolvimento infantil, bem como por disponibilizarem estudos revisados por pares. Vergara (2016) defende que a escolha das fontes deve estar alinhada ao objeto de estudo e às necessidades investigativas, critério considerado na seleção das bases.
A busca foi realizada entre janeiro e março de 2024, utilizando descritores em português e inglês, como “ludicidade”, “brincadeira”, “desenvolvimento infantil”, “early childhood education” e “play-based learning”, combinados por operadores booleanos. A delimitação temporal (2014-2024) visou abarcar pesquisas recentes, considerando atualizações curriculares e avanços neurocientíficos.
Foram definidos critérios de inclusão: estudos empíricos com crianças de 0 a 5 anos, investigações sobre brincar e desenvolvimento, pesquisas qualitativas, quantitativas ou de métodos mistos e artigos revisados por pares. Critérios de exclusão contemplaram estudos duplicados, trabalhos sem metodologia clara, textos teóricos sem dados empíricos e pesquisas em contextos não escolares. Aplicados os filtros, 42 artigos compuseram o corpus final.
Procedeu-se à leitura integral dos estudos e posterior categorização em núcleos temáticos, utilizando análise de conteúdo inspirada em Bardin (2016). Foram observados objetivos, delineamentos, instrumentos, contextos educativos, tipos de brincadeiras e principais resultados. A triangulação das evidências permitiu identificar convergências e divergências entre os estudos, construindo síntese crítica fundamentada. Por fim, o estudo atendeu aos princípios de rigor metodológico, validade e confiabilidade, permitindo replicação e expansão futura.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise dos quarenta e dois estudos selecionados permitiu identificar um panorama consistente sobre o impacto do brincar no desenvolvimento infantil, revelando evidências expressivas de sua contribuição para dimensões cognitivas, linguísticas, socioemocionais e culturais. Os resultados demonstram que práticas lúdicas planejadas e mediadas produziram avanços significativos no comportamento exploratório, na autonomia, na linguagem oral, na atenção compartilhada e na autorregulação emocional das crianças, corroborando pressupostos clássicos e contemporâneos sobre o papel estruturante do brincar. A literatura analisada confirma que ambientes ricos em oportunidades lúdicas ampliam as possibilidades de interação, criatividade e resolução de problemas, permitindo que a criança desenvolva repertórios que influenciam diretamente sua trajetória escolar posterior.
Os estudos de natureza qualitativa, particularmente etnográficos e observacionais, evidenciaram que o brincar espontâneo ou organizado tende a gerar situações de negociação, expressão simbólica e experimentação narrativa, favorecendo o desenvolvimento da linguagem e da imaginação. Em diversas pesquisas, observou-se que crianças envolvidas em brincadeiras simbólicas demonstraram maior capacidade de criar enredos, atribuir papéis, expressar sentimentos e estabelecer estratégias coletivas, indicando relação direta entre ludicidade e construção de sentidos. Esses achados aproximam-se das perspectivas socioculturais que compreendem a linguagem e a interação como centrais no desenvolvimento, indicando que o brincar desempenha papel mediador entre a criança e o mundo.
Os resultados quantitativos reforçam essas conclusões ao identificarem correlações positivas entre brincadeiras de faz-de-conta e funções executivas, especialmente flexibilidade cognitiva, controle inibitório e memória operacional. Em estudos que aplicaram testes padronizados, crianças expostas a intervenções lúdicas sistemáticas apresentaram progressos superiores em tarefas de atenção e resolução de problemas matemáticos iniciais, apontando a importância pedagógica de atividades que integrem movimento, simbolização, regras e desafios cognitivos. Também houve evidências de que jogos cooperativos e práticas lúdicas que envolvem turnos, espera e negociação favorecem a autorregulação, elemento central para a adaptação escolar e a convivência social.
A análise dos estudos também revelou que o brincar contribui sobremaneira para o desenvolvimento socioemocional. Pesquisas que investigaram jogos coletivos, brincadeiras livres em pátios e experiências dramáticas indicaram que a ludicidade amplia habilidades de empatia, cooperação e respeito a regras coletivas. Crianças que participavam de atividades lúdicas frequentes apresentaram menor incidência de conflitos, maior capacidade de lidar com frustrações e mais iniciativa para interagir com os pares. Esses comportamentos revelam que o brincar opera como espaço privilegiado para construção de vínculos afetivos e para o exercício da autonomia emocional, aspectos indispensáveis ao desenvolvimento integral defendido pelas políticas educacionais contemporâneas.
Outro resultado significativo refere-se à importância do ambiente físico e material. Estudos que analisaram escolas com espaços amplos, materiais diversificados e áreas destinadas ao movimento registraram maior ocorrência de brincadeiras complexas e interações mais ricas, enquanto ambientes restritos ou carentes de recursos apresentaram brincadeiras mais repetitivas e menor participação ativa das crianças. Essa constatação reforça a ideia de que o ambiente atua como agente pedagógico, contribuindo para a formação de experiências estéticas, sensoriais e cognitivas que influenciam diretamente o desenvolvimento infantil. A organização do espaço, portanto, não é elemento neutro, mas componente central para a qualidade da ludicidade.
A discussão entre os estudos também evidenciou importantes tensões entre teoria e prática. Embora documentos normativos como a BNCC defendam a centralidade da ludicidade, muitas pesquisas apontaram práticas escolares marcadas por estruturas rígidas, pouca autonomia infantil, rotinas fragmentadas e foco excessivo em atividades de reprodução. Esses achados indicam que a ludicidade, apesar de reconhecida no plano discursivo, ainda enfrenta barreiras institucionais que limitam sua efetivação, como falta de tempo para planejamento, escassez de materiais, formação docente insuficiente e pressões por resultados mensuráveis. A presença dessas tensões demonstra que políticas educacionais, por si só, não garantem práticas pedagógicas coerentes e que a transformação das práticas exige investimento contínuo em condições materiais e formação humanizada.
Os resultados também revelaram lacunas importantes na literatura, que se tornam objeto de reflexão crítica. A maioria dos estudos analisados apresenta recortes de curto prazo, dificultando conclusões sobre impactos duradouros do brincar na trajetória escolar. Além disso, poucos estudos consideram desigualdades socioeconômicas e culturais que afetam o acesso das crianças a experiências lúdicas ricas e significativas. Essa ausência de perspectiva social mais ampla reduz a capacidade de compreender como contextos de vulnerabilidade influenciam desenvolvimento e aprendizagem. Outra lacuna refere-se à diversidade metodológica, pois diferentes pesquisas utilizaram instrumentos distintos para avaliar a ludicidade e o desenvolvimento, dificultando comparação direta entre os resultados.
Apesar dessas limitações, a discussão geral aponta convergência expressiva: o brincar é linguagem essencial da infância e condição indispensável para o desenvolvimento integral. As evidências demonstram que a ludicidade não é mero acessório, mas prática profundamente vinculada à constituição da subjetividade, da cognição, da autonomia e da participação social. Assim, para fortalecer práticas educativas fundamentadas no brincar, torna-se necessário que instituições garantam ambientes ricos, formação docente baseada na observação e na escuta sensível, e políticas públicas que reconheçam a complexidade da infância e suas necessidades formativas.
O conjunto dos estudos analisados mostra que o brincar tem potencial transformador, capaz de qualificar processos educativos, promover aprendizagens mais significativas e apoiar a construção de vínculos e identidades. A discussão evidencia, portanto, que defender o brincar é defender a infância em sua integralidade, reconhecer sua potência criadora e consolidar práticas que respeitem a natureza humana da aprendizagem.
5. CONCLUSÃO
A presente revisão sistemática permitiu sintetizar um conjunto significativo de evidências científicas que reafirmam o papel central do brincar no desenvolvimento infantil, sobretudo nos primeiros anos de vida, quando funções cognitivas, emocionais, sociais e linguísticas se estruturam de maneira intensa e interdependente. Ao analisar quarenta e dois estudos publicados entre 2014 e 2024, foi possível identificar que práticas lúdicas planejadas, mediadas e situadas em ambientes estimulantes contribuem diretamente para o fortalecimento de habilidades fundamentais, como atenção, memória de trabalho, flexibilidade cognitiva, linguagem oral, criatividade, cooperação e autorregulação emocional, pilares essenciais para o desenvolvimento integral.
A análise revelou que o brincar constitui linguagem da infância, modo de expressão e forma privilegiada de interação com o mundo. Dessa perspectiva, a ludicidade ultrapassa a noção de atividade recreativa, assumindo função formadora, simbólica e estruturante. Crianças que vivenciam experiências lúdicas de maneira sistemática demonstram maior autonomia intelectual, maior capacidade de resolver problemas e maior habilidade para negociar regras, expressar sentimentos e participar de atividades cooperativas. Essas constatações confirmam o que clássicos como Vigotski, Piaget, Wallon e Kishimoto já defendiam: o brincar é fonte de desenvolvimento psicológico superior e contexto natural de aprendizagem.
Entretanto, também emergiram tensões importantes entre teoria e prática. Os estudos analisados demonstram que, embora o brincar esteja presente nos documentos normativos, como a BNCC, sua implementação cotidiana nas instituições de Educação Infantil ainda é limitada por fatores estruturais e culturais. Muitos professores relatam falta de formação adequada, ausência de tempo de planejamento, escassez de materiais e pressões institucionais por resultados imediatos, o que leva à reprodução de práticas tradicionais fragmentadas, centradas na repetição e no controle do comportamento. Esse cenário revela que a efetivação da ludicidade como princípio pedagógico exige condições institucionais, políticas públicas consistentes e investimentos contínuos em formação docente.
Outro ponto crítico identificado foi a escassez de estudos longitudinais e de pesquisas que analisem a influência das desigualdades sociais no acesso das crianças a experiências lúdicas de qualidade. O brincar, embora universal, não se manifesta da mesma forma em contextos diversos, e crianças que vivem em condições de vulnerabilidade frequentemente encontram menor disponibilidade de espaços, materiais e oportunidades de interação. Essa lacuna aponta para a necessidade de pesquisas futuras que considerem múltiplas infâncias e múltiplos contextos culturais.
Diante das evidências sintetizadas, conclui-se que o brincar deve ser reconhecido como direito fundamental da criança e como recurso pedagógico indispensável para o desenvolvimento integral. Defender o brincar é defender práticas educativas mais humanizadas, inclusivas e capazes de respeitar o tempo e a natureza da infância. Para tanto, é imprescindível que instituições educativas, famílias, pesquisadores e formuladores de políticas públicas compreendam sua dimensão transformadora, garantindo ambientes ricos, acolhedores e intencionalmente organizados para que a criança aprenda, se expresse e se desenvolva plenamente. O brincar, quando legitimado, promove aprendizagens significativas, fortalece vínculos e contribui para a formação de sujeitos criativos, críticos e sensíveis às complexidades do mundo.
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1 Graduação em Matemática, Física e História. Especialista em Metodologia do Ensino de História. E-mail: [email protected]