O ESTADO DO SONO E O CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.13756746


Fernanda Bermond Uliana1
Ticiano Yazegy Perim2


RESUMO
O presente artigo busca fazer uma análise minuciosa do crime de estupro e do crime de estupro de vulnerável, ambos com previsão legal nos artigos 213 e 217-A, respectivamente, do Código Penal Brasileiro de 1940, bem como suas lacunas e omissões. Isso se faz necessário, pois, o intuito dessa pesquisa é abordar situações em que as vítimas de estupro estão adormecidas, sem o uso de nenhum tipo de substância que cause o sono, ou seja, estão em estado de sono natural e não possuem capacidade perceptiva de reação contra os agressores, logo, entende-se que são vulneráveis. Entretanto, nenhum dos dispositivos acima citados previu esse tipo de situação, o que justifica esse estudo. Nesse sentido, foi feito também um exame sobre o estado do sono, com o objetivo de melhor esclarecer se resta prejudicado a capacidade de percepção e resistência da vítima e se ela é temporária ou permanente. Para tanto, a metodologia adotada, está atrelada a utilização de mecanismos bibliográficos, doutrinários e, principalmente, jurisprudencial, haja vista que a temática é recente e vem sendo decidida pelos Tribunais Superiores.
Palavras-chave: Estupro. Vulnerabilidade. Crimes Sexuais. Resistência. Sono.

ABSTRACT
This article seeks to carry out a thorough analysis of the crime of rape and the crime of rape of a vulnerable person, both of which are provided for in articles 213 and 217-A, respectively, of the 1940 Brazilian Penal Code, as well as their gaps and omissions. This is necessary because the purpose of this research is to address situations in which rape victims are asleep, without the use of any kind of substance that causes sleep, i.e. they are in a state of natural sleep and have no perceptive ability to react against their aggressors, so they are understood to be vulnerable. However, none of the aforementioned provisions provided for this type of situation, which justifies this study. In this sense, an examination was also made of the state of sleep, with the aim of better clarifying whether the victim's ability to perceive and resist is impaired and whether this is temporary or permanent. To this end, the methodology adopted is linked to the use of bibliographic, doctrinal and, above all, jurisprudential mechanisms, given that the issue is recent and has been decided by the Higher Courts.
Keywords: Rape. Vulnerability. Sexual Crimes. Resistance. Sleep.

1 INTRODUÇÃO

A legislação criminal Brasileira vigente atentou-se em punir ações que ferem a dignidade sexual do ser humano, haja vista serem atos de extrema violência que podem causar traumas psicológicos e transtornos de estresse. Nessa perspectiva, são tipificados como crimes o estupro (crime contra a liberdade sexual, com previsão legal no art. 213 do Código Penal de 1940) e o estupro de vulnerável (crime sexual contra vulnerável, com previsão legal no art. 217-A, também do Código Penal de 1940).

Embora a legislação tenha evoluído no sentido de melhor proteger os bens jurídicos inerentes ao ser humano, como a dignidade sexual, o mundo jurídico ainda não está totalmente alinhado com a realidade da sociedade atual, onde é cada vez mais comum a prática de crimes sexuais. Diante desse contexto, se faz necessário uma análise de todas as possíveis situações em que há ocorrência de um ato que configure um crime de estupro, seja ele de vulnerável ou não, inclusive quando a vítima se encontra adormecida de forma natural e não possui capacidade de percepção e resistência para com os agressores.

O caput do art. 213 estabeleceu que configura estupro a prática de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal. Já o §1° do art. 217-A trouxe como algumas hipóteses de vulnerabilidade alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. Sendo assim, verifica-se que uma vítima que está adormecida, não pode ser constrangida ou ameaçada de forma direta, e pode estar dormindo sem ter ingerido substância que a deixasse nesse estado. Nesses casos, configura-se um crime de estupro ou de estupro de vulnerável?

Atualmente já existe entendimento do Tribunal Superior de que o estado do sono diminui a capacidade da vítima de oferecer resistência, o que caracterizaria a vulnerabilidade expressa no §1º do art. 217-A do Código Penal Brasileiro de 1940 (CPB), como é o caso do REsp 2062083 do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 2023, que estabeleceu que o toque lascivo em vítima que se encontra dormindo configura estupro de vulnerável por equiparação.

Nesse contexto, o presente trabalho tem como objeto de pesquisa o estupro praticado contra mulheres que estão dormindo, eis que, esse tipo de vulnerabilidade é essencial para demonstrar se é possível oferecer resistência contra a agressão ou não. Dessa forma, essa pesquisa visa estudar com afinco os artigos mencionados, desde a introdução desses delitos na legislação e fazer uma análise da capacidade de resistência da vítima que encontra-se adormecida. Para tanto, a metodologia adotada é voltada para uma análise qualitativa de jurisprudências e decisões judiciais relevantes sobre o tema, possuindo uma natureza básica, com objetivos exploratórios, utilizando-se de procedimentos bibliográficos e científicos sobre a temática em questão.

2 CONTEXTO HISTÓRICO DO CRIME DE ESTUPRO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Inicialmente, impende asseverar que os crimes contra a dignidade sexual são repudiados por toda a sociedade, sendo que essa violação não escolhe raça, idade e muito menos qual o sexo da vítima. Trata-se de atos desumanos, pois há uma ofensa ao que se tem de mais íntimo, o corpo humano, marcando as vítimas para o resto da vida (LIMA, 2020).

Conforme registros históricos, o Código de Hamurábi no Século XVIII e XVII-A traz a primeira vez em que o crime de estupro foi previsto em legislações, na qual previa punição de morte para o homem que violasse a honra da mulher virgem que morasse com os pais. Entretanto, ainda eram tratadas como objeto, haja vista o sentimento de posse e propriedade que existia, tendo como fundamento a religião e os escritos bíblicos, como por exemplo, o livro de Êxodo, capítulo 20, versículo 17, na qual expressa que os homens não deveriam cobiçar a mulher do próximo (BÍBLIA SAGRADA, 2009).

Apesar desse sentimento, eram previstas punições em normas antigas para esse tipo de situação, sendo que a palavra estupro ainda não existia, mesmo havendo diversas hipóteses e formas de se cometer esse crime. Foi somente no Século XX que surgiu a palavra “pedofilia”, responsável por ampliar ainda mais o conceito do crime de estupro, já que ela abrangia também os pais, padres, professores e outros como autores desse delito. Portanto, começou a ser estudado a situação do “pós-estupro”, tanto é que, atualmente, a psicologia pode enumerar diversos efeitos devastadores para as vítimas (MACHADO, 2016). Importante mencionar que, para Greco (2017), o ato de violentar uma mulher, além de lhe inferiorizar, afeta também seu psicológico, podendo levar até mesmo ao suicídio.

Na legislação penal pátria, o crime de estupro foi previsto em primeiro momento no Código Criminal do Império de 1830, sendo elencado vários delitos sexuais; porém, de forma muito genérica. O referido código trouxe um capítulo (II) somente de crimes intitulados como “contra a segurança da honra”, em que a Secção I tratava-se de forma direta e clara sobre “estupro”, sendo esta a primeira vez denominado a prática delitiva como tal, tendo essa intitulação até os dias atuais. Haviam 07 (sete) artigos nesta Secção, nos quais 02 (dois) deles aparecia a expressão estupro (artigos 220 e 221), além do ato libidonoso (artigo 223) e a ocorrência do crime por meio de violência ou grave ameaça a mulher honesta (artigo 222), com penas que poderiam chegar a 12 (doze) anos (BRASIL, 1830).

Embora tenha sido uma grande evolução para as legislações penais, o Código do Império foi muito criticado, pois houve grande discriminação quanto a pureza da mulher, uma vez que previa uma sanção mais branda ao estupro praticado contra prostitutas, além de não ter punição para aqueles que se casassem com vítimas. Ainda, ele elencou que somente as mulheres poderiam sofrer com esse delito, mas sabe-se que os homens, principalmente os mais jovens, também eram vítimas de estupro (FAYET, 2011).

Posteriormente, teve-se o Código Penal Republicano de 1890, responsável por reger os crimes denominados de “violência carnal”, na qual havia de forma expressa as penas e a tipicidade do crime de estupro. O artigo 269 esclareceu o que podia ser entendido como a violência sofrida pelas mulheres, sendo o emprego de força física ou outros meios que as privaram de suas faculdades psíquicas e, assim, a sua possibilidade de resistir e defender-se. O Código ainda elencou como exemplo para tal o hipnotismo, o uso de clorofórmio e outros anestésicos em geral (BRASIL, 1890).

Neste caso, as críticas se deram em virtude dele ter delimitado, novamente, que o crime de estupro somente ocorrerá em relação às mulheres, continuando a tratar com indiferença mulheres virgens ou não, as prostitutas e as mulheres “públicas”. Isso se deu, pois a pena para os abusadores dessas vítimas não eram superiores a 02 (dois) anos, enquanto que para as mulheres honestas chegaria a 06 (seis) anos (FERREIRA, 2019).

Adiante, temos o Código Penal Brasileiro de 1940, a legislação vigente até os dias atuais, mas que vem passando por constantes alterações. No ato de sua promulgação, o crime de estupro já era previsto no artigo 213, e dizia que se tratava do ato de constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Logo, é possível verificar que os homens ainda não se configuraram como sujeitos passivos do delito (BRASIL, 1940).

Além disso, a ação penal era pública condicionada à representação, conforme previsão do artigo 225 naquela época, o que diverge da legislação dos dias atuais. Assim, foi elaborado um novo código alguns anos depois, todavia, ele mantivera a mesma previsão para o delito em questão e não entrou em vigência, mantendo-se o de 1940 (FERREIRA, 2019).

Por fim, foi somente com a nova redação determinada pela Lei n°12.015 de 07 de agosto de 2009, que o artigo 213 do Código Penal Brasileiro de 1940 preveu que poderia configurar como vítima do crime de estupro, o homem. Para Capez (2012), o novo dispositivo legal abarcou diversas situações, de forma estranha, que não se enquadrariam no sentido originário do delito, posto que a liberdade sexual dos homens jamais havia sido protegida.

O artigo 224 da redação original do Código de 1940 previa hipóteses de “violência ficta”, nas quais as vítimas não tinham capacidade para consentir validamente com o ato ou para oferecer resistência. Quanto ao crime de estupro de vulnerável em si, também tema de apreciação nessa pesquisa, ele apenas deixou de integrar o artigo 213 com a também redação da Lei n°12.015/2009, para configurar crime autônomo previsto no artigo 217-A com a nomeclatura “estupro de vulnerável”, o que causou a revogação expressa do antigo artigo 214 (CAPEZ, 2012). Passaremos agora à análise minuciosa desses tipos penais.

3 ANÁLISE DOS TIPOS PENAIS PREVISTOS NO ARTIGO 213 E 217-A DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO DE 1940

Reza o artigo 213 do Código Penal Brasileiro de 1940, em vigor nos dias atuais, previsto no Capítulo referente aos crimes contra liberdade sexual, que o crime de estupro nada mais é que o ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (BRASIL, 2024).

Jordan Chaves (2017) ensinou que o sujeito ativo na primeira modalidade do delito, somente pode ser o homem, mas, na segunda modalidade, o crime pode ser praticado por qualquer pessoa. Quanto ao sujeito passivo, a mulher também é a única vítima na primeira modalidade, mas na segunda, podem ser tanto as garotas de programas, as prostitutas, quanto às virgens, promíscuas, honestas sexualmente e outras.

Neste caso, vale ressaltar que, com o advento da Lei n°12.015/2009, o artigo 214 do Código Penal Brasileiro, que versava sobre o atentado violento ao pudor, foi revogado e houve a migração da sua redação ao novo dispositivo previsto no artigo 213, agora, tratando-se não apenas da conjunção carnal, mas também sobre o ato libidinoso. Assim, tendo em vista a gravidade da violação do bem jurídico por ele tutelado, não restou dúvidas quanto à hediondez do delito na modalidade simples e na qualificada, o que antes causava entendimentos controversos (LIMA, 2020).

Verifica-se que esse constrangimento significa compelir alguém a ter conjunção carnal, ou seja, ato de penetração efetiva do membro viril na vagina, ou a praticar ato libidinoso. Neste, trata-se de atos sexuais diversos do anteriormente mencionado, como coitos anormais ou quaisquer outros que tenham a destinação de satisfazer a lascívia ou apetite sexual. Pode ser bem abrangente, mas não engloba no delito palavras ou escritos eróticos, vez que é necessário a realização de forma física e concreta. Aqui é essencial frisar que é irrelevante a compreensão da vítima acerca do caráter libidinoso ou não do ato (CAPEZ, 2019).

Ainda, de acordo com Prado (2019), para configuração do delito exige-se uma manifesta discórdia por parte da vítima, que não está de acordo com a prática do ato e oferece resistência para sua consumação, ou seja, o seu não consentimento, com clareza, é suficiente para se enquadrar no delito. Dessa forma, é necessário o emprego de violência ou grave ameaça para que a vítima seja constrangida a realizar o ato. Logo, o constrangimento nada mais é do que o forçar, coagir, compelir ou obrigar a consumar a conjunção carnal ou a praticar o ato libidinoso.

Desta feita, a falta de consentimento para realização da relação sexual é condição essencial para configuração do crime de estupro. Isso pois, sua ausência é elementar do tipo penal. Assim, o consentimento do ofendido para prática do ato irá configurar hipótese de exclusão da tipicidade, não havendo o que se falar em crime de estupro (FABRETTI e SMANIO, 2019).

Lado outro, a Lei n°12.015/2009 foi responsável por tornar o estupro cometido contra pessoa que não tem condições ou capacidade de consentir, em um crime próprio de nome “estupro de vulnerável”, previsto no artigo 217-A do Código Penal Brasileiro de 1940 que dispõe sobre ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. Porém, é punido com a mesma pena aquele que pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (§1°). Sua criação se deu também com a revogação expressa do então artigo 224 (CAPEZ, 2019).

O foco deste estudo, aqui, não encontra-se na idade do sujeito passivo, ou seja, menor de 14 (catorze) anos, mas sim nas hipóteses elencadas no §1° do referido artigo. Isso pois, o caput do dispositivo elencou um requisito objetivo quando tratou da idade da vítima, não tendo importância se houve ou não seu consentimento, nem mesmo sua experiência sexual ou a existência de relacionamento amoroso com o agente. Essa premissa é consolidada na Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça, veja-se:

DIREITO PENAL - ESTUPRO

O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

(TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/10/2017, DJe 06/11/2017)

Quanto ao §1°, SANCHES apud GRECO (2017) advertiu que não ocorre a prática delitiva do artigo 215 quando o agente utiliza-se de fraude na execução do crime, pois não há como anular a capacidade de resistência da vítima, configurando assim, o estupro de vulnerável. Exemplo disso é o uso de psicotrópicos para vencer a resistência da vítima e fazer com que ela pratique atos libidinosos ou mantenha conjunção carnal, quando na verdade se perdeu a capacidade de consentir sobre o ato.

Para tanto, buscou-se punir de forma mais rigorosa os acusados que tenham esses comportamentos. Rogério Greco (2017) julgou não ser razoável e justo que os agentes do estupro de vulnerável tenham a mesma sanção que aqueles que tenham se valido do emprego de violência ou grave ameaça (responsabilizados pelo delito tipificado no art. 213). Esse foi o mesmo entendimento do legislador, eis que o Código prevê pena que varia entre 8 (oito) a 15 (quinze) anos de reclusão no caso do 217-A e punição de, no mínimo, 6 (seis) e um máximo de 10 (dez) anos nos casos do 213.

Dessa forma, salienta-se não ser primordial que haja consentimento, eis que para configuração de manifesto dissenso da vítima, é essencial que tenha resistência, o que não ocorre no caso do estupro de vulnerável, pois inexiste o uso de violência ou grave ameaça. Logo, a vulnerabilidade em si, deve ser entendida como a condição ou estado da pessoa no que diz respeito a sua capacidade de percepção e reação quanto à intervenção de terceiros durante o exercício de sua sexualidade, o que implica maior conteúdo axiológico (PRADO, 2019).

A incapacidade de compreensão por parte da vítima para que se possa realizar o ato de livre espontânea vontade é essa condição de vulnerabilidade prevista, pois ela encontra-se privada de sua razão ou sentido de forma permanente, temporária ou mesmo acidental. Pode-se fazer aqui até mesmo uma analogia aos inimputáveis previsto no artigo 26 do Código Penal de 1940, pois eles não possuem condições psíquicas de discernimento (PRADO, 2019).

Entretanto, eles não são os únicos, uma vez que as hipóteses em que a vítima, por qualquer outra causa, não puder oferecer resistência são bem abrangentes. Prado (2019) elencou as seguintes: casos de imobilização; em decorrência de enfermidade; idade avançada; sono; hipnose; embriaguez completa; inconsciência pelo uso de drogas ou anestésicos, entre outros.

Quanto ao sono natural, ponto crucial para esse estudo, existe divergência entre os doutrinadores se deve ou não aceitar como uma causa de vulnerabilidade. Para autores como Prado (2019), é possível que o agente se aproveite da situação em que a vítima está dormindo e dê início a prática de conjunção carnal ou ato libidinoso com ela. Nesse sentido, Jordan Chaves (2017) também enumerou o sono mórbido como uma dessas possibilidades de não se ter resistência. Além disso, já em 2009, Fuhrer citou que durante o sono a vítima está em situação de fragilidade física e mental.

Por fim, Consignani (2023) ao fazer uma análise das formas de vulnerabilidade trouxe que o sono pode ser um exemplo de vulnerabilidade absoluta. Desta feita, faremos agora uma análise do sono natural e suas etapas, com intuito de se verificar se existe a possibilidade de, em algum momento ao longo do período de adormecimento, a vítima pode não ter capacidade de percepção e reação do que acontece ao seu redor.

4 ESTUDO DO ESTADO DO SONO NATURAL

O sono natural, citado acima como um dos exemplos de situações das quais as vítimas não possuem capacidade de resistência, trata-se de um fenômeno fisiológico especial, que se dá através de vários ciclos, já tendo sido considerado como uma parte passiva da vida humana (NEVES, MACÊDO e GOMES, 2017). Nesse sentido, Magalhães e Mataruna (2007), ao realizarem um estudo sobre a medicina do sono, concluíram que cuida-se de um estado marcado pela redução dos movimentos musculares esqueléticos, pela lentificação do metabolismo, além da diminuição da consciência.

Em 2020, a Faculdade de Medicina da UFMG publicou um artigo sobre as fases do sono, na qual os autores também caracterizam esse estado como um processo natural em que há redução da consciência e das atividades laborais. Nesse sentido, verificou-se que o sono se dá em duas fases, não-REM (rapid eye movement) e REM, divididas por estágios diferentes que vão se alternando durante a noite ou período em que a pessoa está adormecida.

O sono não-REM é definido por uma atividade cerebral menos intensa, com quatro estágios distintos. O primeiro se resume no momento de adormecimento, a transição entre estar acordado e dormindo, é superficial. No segundo, as ondas cerebrais se tornam mais lentas e há desconexão com estímulos externos, é o sono leve. Já o terceiro estágio, importante para a pesquisa, se dá quando as ondas ficam extremamente lentas e o corpo humano começa a entrar em sono profundo. Assim, o quarto estágio, também conhecido como estágio delta ou de sono profundo, juntamente com o terceiro, é o momento em que não há movimento ocular ou atividade muscular, sendo muito difícil acordar alguém durante esses períodos (MAGALHÃES e MATURANA, 2007).

Além disso, os autores supracitados elucidaram que o controle das emoções, processos de tomada de decisão e interações sociais são reduzidos durante o estágio delta, veja-se:

“O estágio delta coincide com a liberação do hormônio do crescimento em crianças e adultos jovens. Muitas células do corpo também apresentam aumento da produção de proteínas e redução do seu catabolismo durante o sono profundo. Isto pode estar relacionado aos processos de reparo de danos celulares. A atividade em partes do cérebro que controlam as emoções, processos de tomada de decisão e interações sociais está drasticamente reduzida durante o estágio delta, sugerindo que este estágio do sono possa ajudar o indivíduo a manter o funcionamento emocional e social ótimo durante a vigília.” (MAGALHÃES e MATURANA, 2007, p. 108/109) (grifo nosso).

Quanto ao sono REM, Fernandes (2006) explicou que ele é conhecido por sono paradoxal, pois há dificuldade de despertar o indivíduo, porém, apresenta padrões assemelhados ao de vigília (presente no primeiro estágio da fase não-REM). Neste caso, o sono não pode ser entendido necessariamente como um estado de repouso. Aliás, durante o ciclo de estágios pelo qual os indivíduos passam, é possível ocorrer despertares a qualquer momento, de forma espontânea ou por outros fatores externos, como sons e movimentos. Entretanto, é muito comum que o ser humano não tenha consciência disso, principalmente se forem de curta duração.

Dessa forma, Fernandes (2006) chegou a elucidar que determinados períodos do sono podem ser assimilados ao estado de coma de menor profundidade, pois os indivíduos não possuem interação produtiva com o ambiente. Assim, o único diferencial deles é que no sono pode haver reversão espontânea ou mais ou menos programada. Entretanto, conforme já afirmado acima, os estímulos tácteis, auditivos e audiovisuais são reduzidos durante o sono.

5 CASOS CONCRETOS E A JURISPRUDÊNCIA

Diante de tudo que foi exposto até agora, é de grande valia demonstrar que tal temática já vem sendo analisada pelo Superior Tribunal de Justiça. Em 2017, ao julgar o Habeas Corpus 389.610/SP, os Ministros da Quinta Turma, por unanimidade, decidiram não conhecer o pedido do impetrante ao alegar que o Ministério Público não possuía legitimidade ativa para oferecimento da denúncia no art. 217-A do CPB quando a vítima e sua genitora se retrataram da representação. Foi entendido que no momento do ato, a vítima estava dormindo e era incapaz de oferecer resistência. Portanto, o impetrante foi denunciado de forma justa pela prática, do art. 217-A, § 1º, do CPB, cuja ação penal é pública incondicionada, nos termos do art. 225, também do Código Penal, veja-se:

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. CRIMES CONTRA DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA INCAPAZ DE OFERECER RESISTÊNCIA. DORMIA NO MOMENTO DOS FATOS. CRIME DE AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. ART. 225, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CP. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. I - A Terceira Seção desta Corte, seguindo entendimento firmado pela Primeira Turma do col. Pretório Excelso, firmou orientação no sentido de não admitir a impetração de habeas corpus em substituição ao recurso adequado, situação que implica o não conhecimento da impetração, ressalvados casos excepcionais em que, configurada flagrante ilegalidade apta a gerar constrangimento ilegal, seja recomendável a concessão da ordem de ofício.
II - O trancamento da ação penal constitui medida excepcional, justificada apenas quando comprovadas, de plano, sem necessidade de análise aprofundada de fatos e provas, a atipicidade da conduta, a presença de causa de extinção de punibilidade, ou a ausência de indícios mínimos de autoria ou de prova de materialidade, o que não ocorre na espécie.
III - Em casos de vulnerabilidade da ofendida, a ação penal é pública incondicionada, nos moldes do parágrafo único do art. 225 do Código Penal. Constata-se que o referido artigo não fez qualquer distinção entre a vulnerabilidade temporária ou permanente, haja vista que a condição de vulnerável é aferível no momento do cometimento do crime, ocasião em que há a prática dos atos executórios com vistas à consumação do delito.
IV - As reformas trazidas pela Lei nº 12.015/09 demonstram uma maior preocupação do legislador em proteger os vulneráveis, tanto é que o estupro cometido em detrimento destes (art. 217-A do CP) possui, no preceito secundário, um quantum muito superior ao tipo penal do art. 213 do CP. E o parágrafo único do art. 225 do CP corrobora tal entendimento, uma vez que atesta um interesse público na persecução penal quando o crime é cometido em prejuízo de uma vítima vulnerável.
V - In casu, o eg. Tribunal de origem rechaçou a tese de ilegitimidade ativa do Ministério Público para oferecimento da denúncia, em face da vulnerabilidade da vítima, que encontrava-se dormindo no momento do suposto crime, portanto, era incapaz de oferecer resistência. Ressalte-se que o ora paciente foi justamente denunciado pela prática, em tese, do art. 217-A, § 1º, do Código Penal, o que enseja uma ação penal pública incondicionada. Consignou que as retratações apresentadas pela ofendida e sua genitora não vinculam a atuação do Ministério Público por se tratar de caso de ação penal pública incondicionada. VI - Segundo pacífica jurisprudência desta Corte Superior, a propositura da ação penal exige tão somente a presença de indícios mínimos e suficientes de autoria, não sendo necessário, de imediato, a certeza da autoria, a qual será comprovada ou afastada durante a instrução probatória, prevalecendo, na fase de oferecimento da denúncia, o princípio do in dubio pro societate.
Habeas corpus não conhecido.
(HC n. 389.610/SP, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 8/8/2017, DJe de 16/8/2017.) (grifo nosso).

Apesar de o foco do Acórdão estar voltado para o tipo de ação, o fato de ser afirmado que o estado em que a vítima se encontrava caracterizava a vulnerabilidade do crime de estupro de vulnerável fez com que ele fosse utilizado em novos julgados. Naquele mesmo ano, também foi negado provimento, por unanimidade, ao AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 1.103.678 - PR (2017/0123270-3). Tratava-se de pedido de desclassificação para o tipo penal descrito no art. 215-A do CP; porém, foi assentado pela Corte Originária que o tipo previsto no art. 217-A, § 1°, do CP se encontrava realizado, uma vez que “houve a prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, consistente em passar a mão na genitália da vítima, e a impossibilidade de oferecer resistência, tendo em vista que a vítima se encontrava dormindo”:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. HABEAS CORPUS DE OFÍCIO. NÃO CABIMENTO. VÍTIMA INCAPAZ DE OFERECER RESISTÊNCIA. OFENDIDA DORMIA NO MOMENTO DOS FATOS. PROVA. PALAVRA DA VÍTIMA. RELEVO ESPECIAL. DOSIMETRIA. ADEQUADA. AGRAVO NÃO PROVIDO.
1. “A impossibilidade de exame do pleito defensivo, de modo imediato, por esta Corte Superior, é reforçada pela vedação constante da Súmula n. 7 do STJ, uma vez que se faz necessária nova análise do contexto fático-probatório amealhado aos autos para que se defina se a conduta perpetrada pelo réu se enquadra no tipo penal inserido pela Lei n. 13.718/2018 (art. 215-A do Código Penal) ou se permanece conforme a figura prevista no art. 217-A do mesmo diploma legal.”
(AgRg no AREsp 1.356.421/MG, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 04/12/2018, DJe 14/12/2018) 2. "Em casos de vulnerabilidade da ofendida, a ação penal é pública incondicionada, nos moldes do parágrafo único do art. 225 do Código Penal.
Constata-se que o referido artigo não fez qualquer distinção entre a vulnerabilidade temporária ou permanente, haja vista que a condição de vulnerável é aferível no momento do cometimento do crime, ocasião em que há a prática dos atos executórios com vistas à consumação do delito."
(HC 389.610/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 08/08/2017, DJe 16/08/2017).
3. A palavra da vítima tem relevância diferenciada nos crimes contra a dignidade sexual. Precedentes.
4. A violação da confiança depositada no agente e a ocorrência de transtornos psicológicos autorizam a exasperação da pena-base.
5. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp n. 1.103.678/PR, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 26/2/2019, DJe de 6/3/2019.) (grifo nosso).

Foi nesse mesmo sentido que Ministros da Quinta Turma negaram provimento ao AgRg no Habeas Corpus nº 489.684 - ES (2019/0013894-7). O agravante alegou que havia flagrante ilegalidade no caso, requerendo reconsideração da decisão agravada. Porém, foi negado provimento, pois a decisão estava em consonância com o entendimento da Corte, já que foi reconhecido pelas instâncias ordinárias que houve a consumação do delito do art. 217-A, §1° do CP, uma vez que a situação de vulnerabilidade restou configurada, isso pois o crime ocorreu em momento que a vítima estava dormindo.

PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA EM ESTADO DE SONO. IMPOSSIBILIDADE DE ALTERAR A PREMISSA FÁTICA FIRMADA PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Dispõe o art. 217-A, §1º, do Código Penal, que também se configura o delito de estupro de vulnerável quando é praticado contra pessoa que, "por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.".
2. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, o estado de sono pode significar circunstância que retira da vítima a capacidade de oferecer resistência.
3. Considerando que o Tribunal a quo destacou que o paciente iniciou os atos enquanto a vítima estava dormindo, sem poder oferecer naquele momento qualquer resistência, não há ilegalidade a ser reconhecida nessa instância, em especial porque a via do habeas corpus não comporta análise de provas com o fim de alterar o entendimento da Corte de origem e do Juízo de primeiro grau, que têm maior proximidade com os dados fático-probatórios.
4. Agravo regimental não provido.
(AgRg no HC n. 489.684/ES, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 19/11/2019, DJe de 26/11/2019.) (grifo nosso).

Além disso, no AgRg no Recurso Especial nº 2052675 - SC (2023/0043209-9), o agravante entendeu pela incidência da Súmula 7/STJ, julgando ser necessário o reexame factual para se restaurar a sentença condenatória e a inexistência de entendimento pacificado sobre o estado de sono se caracterizar como vulnerabilidade. Todavia, foi reafirmado pela Turma que a vítima se enquadra no conceito jurídico de pessoa vulnerável, pois ela estava dormindo e acordou com o agressor já em cima dela, sem roupa, sendo que ela estava com uma saia longa levantada na altura da cintura enquanto o agravante tentativa retirar suas roupas íntimas:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DO ART. 217-A DO CP PARA O CRIME DO ART. 215-A DO CP. PRÁTICA DE ATOS LIBIDINOSOS DIVERSOS DA CONJUNÇÃO CARNAL COM PESSOA VULNERÁVEL. VÍTIMA EM ESTADO DE SONO. CAPACIDADE DE RESISTÊNCIA PREJUDICADA. ELEMENTO ESPECIALIZANTE DO CRIME. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES.
I - A revaloração da prova é admitida em sede de recurso especial, nas hipóteses em que a pretensão recursal não demanda reexame do material cognitivo, como no caso em exame, restando afastado o óbice sumular 7/STJ.
II - O ato libidinoso, atualmente descrito nos artigos 213 e 217-A do Código Penal, não é só o coito anal ou o sexo oral, mas podem ser caracterizados mediante toques, beijo lascivo, contatos voluptuosos, contemplação lasciva, dentre outros. Isto porque o legislador, com a alteração trazida pela Lei n. 12.015/2009, optou por consagrar, no delito de estupro, a pratica de conjunção carnal ou outro ato libidinoso, não havendo rol taxativo ou exemplificativo acerca de quais atos seriam considerados libidinosos.
III - Em virtude da situação de vulnerabilidade da vítima, buscou o legislador punir de forma mais severa o agente que venha a praticar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com menor de catorze anos, enfermo ou deficiente mental que, por sua própria condição, tenha dificuldade de discernir e, consequentemente, não possa consentir com a prática do ato sexual, ou ainda que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.
IV - No caso dos autos, a conduta perpetrada pelo recorrido não se revelou como sendo um simples ato de "importunação", mas, ao contrário disso, evidenciam-se claramente as características da prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal em face de vítima vulnerável, porquanto em estado de sono, restou prejudicada sua capacidade de resistir, condição que favoreceu ao agente abaixar suas calças, levantar as saias da vítima e tentar penetração ao afastar suas roupas íntimas, ocasião em que a vítima despertou e pôde, enfim, manifestar resistência.
V - A Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Tema repetitivo 1121, fixou tese no sentido de que: "presente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP)" (REsp n. 1.959.697/SC, Terceira Seção, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe de 1/7/2022).
Agravo regimental desprovido.
(AgRg no REsp n. 2.052.675/SC, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 13/6/2023, DJe de 16/6/2023.) (grifo nosso).

Além dos acórdãos acima elencados, em 2020, através de uma decisão monocrática, foi dado provimento no Recurso Especial nº 1.519.840 - RS do Ministério Público Federal para reconhecer as violações apontadas e determinar o prosseguimento do processo cujo juízo de 1° grau rejeitou a denúncia por não reconhecer situação de vulnerabilidade do §1° do art. 217-A do CP pelo simples fato da ofendida estar dormindo. Entretanto, a Corte novamente reafirmou seu entendimento, elucidando que estavam presentes todos os elementos do tipo descrito no art. 217-A, § 1º, do CP, pois “a vítima se encontrava em estado de supressão da consciência e da vontade”, restando devidamente caracterizada a incapacidade de oferecer resistência.

Por fim, conforme foi citado no início desse estudo, tem-se também a decisão monocrática do recente REsp 2062083 - MG (2023/0112800-0). Neste caso, o acusado foi condenado pelo crime do 217-A do CP, e ao interpor recurso, a Corte de origem desclassificou para o delito previsto no art. 215-A do CP. Todavia, assim como em todas as situações narradas acima, a vítima também encontrava-se dormindo quando o agressor iniciou a prática de atos libidinosos, motivo pelo qual foi dado provimento ao recurso especial para restabelecer a sentença condenatória nas iras do art. 217-A, §1º, do CP.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de toda análise realizada ao longo deste trabalho, restou evidente que, apesar de tratar-se de um entendimento recente e não aceito pela maioria dos Tribunais, principalmente pela doutrina, o estado do sono natural já é compreendido como uma condição de vulnerabilidade que configura o delito do artigo 217-A, §1° do Código Penal. Através do REsp 2062083, o Superior Tribunal de Justiça determinou que o toque lascivo em vítima que se encontra dormindo configura estupro de vulnerável por equiparação.

Nesse sentido, o estudo do estado do sono natural e suas fases é extremamente relevante para demonstrar que em determinados momentos do ciclo do sono, o corpo humano não possui capacidade de percepção para com os sons e movimentos que acontecem ao seu redor, como é o caso do estágio delta. Logo, uma vítima nessas condições e neste momento, não é capaz de resistir a prática de qualquer ato que seja feito com ela, podendo apenas interrompê-lo instantes seguintes, ao se despertar, quando, na maioria das vezes, já houve a consumação do crime.

Além dessa condição da vítima, ao realizar uma análise mais minuciosa dos delitos em questão, verifica-se que no momento do ato, o agir dos agressores e as reações das vítimas são diferentes. No caso do crime de estupro, é necessário que haja constragimento da vítima, mediante violência ou grave ameaça, bem como que ela imponha resistência para prática do ato. No crime de estupro de vulnerável, essas condições não existem, uma vez que, os agressores se aproveitam da circunstância que a pessoa se encontra para realizar tais atos, pois não há nenhum tipo de resistência, tampouco violência ou grave ameaça.

Diante de tudo que foi exposto, é possível concluir que nas hipóteses em que uma vítima encontra-se dormindo de forma natural, ou seja, sem o uso de medicamentos ou outras substâncias que lhe causem sonolência, configura-se um crime de estupro de vulnerável, nos termos do art. 217-A, §1°, do Código Penal Brasileiro, sendo esse o entendimento do Superior Tribunal de Justiça desde 2017, o qual é reafirmado toda vez que uma situação parecida com essa é julgada por eles.

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1 Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim. E-mail: [email protected].

2 Mestre em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pós-graduado em direito público com ênfase em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e graduado pela Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim.