LETRAMENTO E LETRAMENTO RACIAL: SENTIDOS E PRÁTICAS

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17269856


Josefa Edna Amâncio1


RESUMO
Este artigo investiga o letramento e o letramento racial dentro do ambiente escolar, com o objetivo de entender o que esses conceitos realmente significam na prática: como se manifestam, quais práticas os incorporam e de que modo atuam como resistência, identidade e formação cidadã. A pesquisa adota uma abordagem qualitativa, baseada em análise da literatura especializada, verificação de práticas efetivas registradas nas escolas e relatos de professores, estudantes e gestores, buscando mapear tanto os progressos quanto os obstáculos encontrados. Os achados destacam que o letramento racial crítico emerge como componente transformador quando conteúdos culturais relacionados à história e à identidade racial são incorporados de forma consistente no currículo, não apenas como complementos simbólicos, mas como elementos estruturantes. Verifica-se que, em contextos onde há sensibilização docente e uso de materiais didáticos diversificados, há melhor engajamento dos alunos, maior reconhecimento de identidades diversas e uma sensação maior de pertencimento. Por outro lado, persistem desafios significativos: falta de formação específica para professores, textos e livros didáticos que pouco dialogam com experiências raciais diversas, e políticas escolares que nem sempre garantem espaços concretos para o letramento racial. A resistência institucional, a invisibilidade de narrativas afro-brasileiras ou indígenas e o racismo estrutural são barreiras visíveis. Em conclusão, argumenta-se que o letramento racial deve ser entendido não apenas como política legal ou norma curricular, mas como prática educativa que envolve sensibilidade, empatia e compromisso. Recomenda-se investimento contínuo em formação docente, revisão curricular que avalie criticamente os materiais de ensino e desenvolvimento de práticas escolares que valorizem as identidades raciais, promovam diálogo e reconhecimento. O estudo contribui para a reflexão e ação pedagógica ao propor que o currículo seja um espaço vivo de aprendizagem racialmente consciente.
Palavras-chave: Letramento Racial. Educação Antirracista. Identidade Étnico‑Racial. Currículo Escolar. Políticas de Diversidade.

ABSTRACT
This article investigates literacy and racial literacy within the school environment, aiming to understand their meanings and the pedagogical practices that translate them into resistance, identity, and citizenship formation. The research adopts a qualitative approach, based on literature review, analysis of documented practices in schools, and testimonies from teachers, students, and administrators, seeking to map both advances and obstacles encountered. The findings highlight that critical racial literacy emerges as a transformative component when cultural content related to history and racial identity is consistently incorporated into the curriculum, not merely as symbolic complements but as structuring elements. It is observed that, in contexts where there is teacher awareness and the use of diverse teaching materials, there is better student engagement, greater recognition of diverse identities, and a stronger sense of belonging. On the other hand, significant challenges persist: lack of specific training for teachers, textbooks and teaching materials that seldom engage with diverse racial experiences, and school policies that do not always ensure concrete spaces for racial literacy. Institutional resistance, the invisibility of Afro-Brazilian or Indigenous narratives, and structural racism are visible barriers. In conclusion, it is argued that racial literacy should be understood not only as legal policy or curricular norm but as an educational practice that involves sensitivity, empathy, and commitment. It is recommended to invest continuously in teacher training, curricular revision that critically evaluates teaching materials, and the development of school practices that value racial identities, promote dialogue, and recognition. The study contributes to reflection and pedagogical action by proposing that the curriculum be a living space for racially conscious learning.
Keywords: Racial Literacy, Antiracist Education, Ethnic-Racial Identity, School Curriculum, Diversity Policies.

1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o entendimento de letramento tem se estendido muito além do básico de ler e escrever. Tem-se reconhecido que letrar também envolve participações culturais, práticas sociais e experiências de identidade. Por isso, torna-se fundamental ver o currículo escolar não só como um repositório de conteúdos, mas como um espaço de reconhecimento, pertencimento e crítica. Dentro desse cenário, o conceito de letramento racial se apresenta como um elemento essencial: ele permite questionar normas que silenciaram certas memórias, revelar hierarquias de poder que atravessam instituições, materiais escolares e rotinas pedagógicas, e estabelecer condições para que estudantes se reconheçam e sejam reconhecidos em sua diversidade.

Neste artigo, pretende-se investigar os sentidos atribuídos a letramento e letramento racial no cotidiano escolar, identificando como professores, estudantes e gestores interpretam esses conceitos e quais práticas pedagógicas realmente incorporam essas perspectivas. Busca-se mapear os progressos observados, bem como os entraves existentes, com foco especial no currículo como espaço de resistência e formação identitária. A partir de abordagem qualitativa, utilizam‑se análise documental, revisão da literatura especializada e relatos de vivência escolar para compreender o que se tem feito, o que ainda falta e como caminhar em direção a práticas mais significativas.

O termo letramento possui múltiplas definições e usos na literatura educacional. Em sua forma mais tradicional, ele se refere à habilidade técnica de ler, escrever e decodificar textos. No entanto, essa concepção técnica ignora aspectos essenciais: os usos sociais da linguagem, as identidades culturais dos sujeitos, os contextos de diferença e poder nos quais se inserem. Autores dedicados ao letramento social (como Brian Street) defendem que toda prática letrada carrega implicações ideológicas, estando inserida em relações de poder. Essa abordagem crítica é vital para compreender como o letramento funciona concretamente nas escolas.

No Brasil, estudos recentes ressaltam a importância de conceber letramentos múltiplos, ou seja, diversas formas de se relacionar com texto, oralidade, visualidade, linguagem digital ligadas às identidades culturais, raciais, de classe ou territorial dos alunos. Essa perspectiva rejeita visões universalistas ou homogêneas de letramento e valoriza práticas que emergem das experiências sociais e culturais dos estudantes. Ela exige ainda um currículo que não seja neutro, mas sensível às diferenças e aberto a incorporar narrativas diversas.

O letramento racial é entendido como prática educativa que vai além de adicionar conteúdo afrodescendentes ou indígenas; exige uma reflexão crítica sobre como o racismo se manifesta em discursos, práticas escolares, hierarquias simbólicas e invisibilização de identidades. É ato político‑pedagógico porque, ao inserir essas reflexões, educa‑se para resistência, para o reconhecimento, para a justiça simbólica e social.

Vários estudos apontam que quando o currículo incorpora consistentemente narrativas raciais não como tema ornamental, mas como parte integrante ocorrem impactos positivos: alunos passam a se sentir representados, identificam conexões com suas histórias, e desenvolvem consciência racial. Entretanto, para que isso ocorra, é preciso formação docente continuada, materiais didáticos diversificados, suporte institucional e disposição para encarar resistências culturais e institucionais.

Experiências de letramento racial eficaz demonstram que práticas como leitura de literatura afro‑brasileira, rodas de conversa, reflexões sobre identidade racial, uso de materiais visuais e práticas culturais locais produzem engajamento, autoestima e pertencimento. Contudo, essas práticas são frequentemente limitadas por políticas escolares que mantêm normas hegemônicas de linguagem, currículo e avaliação, além de condições materiais que nem sempre garantem sua continuidade.

2. CONCEITOS DE LETRAMENTO: MÚLTIPLAS PERSPECTIVAS

A discussão sobre letramento, quando situada nos debates contemporâneos acerca das práticas educativas, dos processos identitários e das relações étnico-raciais, exige uma desconstrução epistemológica das concepções tradicionais que o reduziram, por séculos, à mera capacidade técnica de decodificação da linguagem escrita. Essa compreensão limitante, profundamente arraigada nas estruturas escolares convencionais, sustenta-se em um paradigma eurocêntrico e colonial que, para além de excluir epistemologias diversas, institui a norma branca, letrada, ocidental e burguesa como parâmetro universal de inteligência, civilidade e competência social.

Historicamente, o conceito de letramento foi capturado por uma lógica instrumentalizada, que o compreendia como uma habilidade autônoma, dissociada dos contextos socioculturais e das relações de poder. Essa visão, sustentada por epistemologias hegemônicas, perpetuou a falsa ideia de que o domínio da leitura e da escrita, nos moldes ocidentais, constituía um critério civilizatório, servindo como marcador de distinção social, racial e epistêmica (Street, 2014; Mignolo, 2003). Essa abordagem, profundamente contaminada pelas heranças coloniais, não apenas marginalizou sujeitos e grupos, mas também naturalizou o apagamento de práticas comunicativas ancestrais, de oralidades sofisticadas e de saberes inscritos em outras linguagens, como as visualidades, as corporalidades e as musicalidades, que integram as culturas negras, indígenas e periféricas.

A virada epistemológica promovida pelos Novos Estudos de Letramento, nas décadas de 1980 e 1990, representa um divisor de águas nesse debate. Brian Street, em sua obra seminal, desloca a compreensão de letramento de uma perspectiva autônoma que o entendia como um conjunto de competências cognitivas universais para uma perspectiva ideológica, na qual o letramento se configura como prática social, situada, historicamente condicionada e intrinsecamente imbricada em relações de poder, dominação e resistência (Street, 2014). Esse deslocamento teórico, absolutamente revolucionário, evidencia que não há letramento fora dos contextos socioculturais, e que todo ato de ler e escrever é, também, um ato de produzir, legitimar ou contestar determinadas ordens sociais e epistemológicas.

No Brasil, esse debate é ampliado pelas contribuições de Magda Soares (2021) e Roxane Rojo (2023), que introduzem a noção de letramentos múltiplos, defendendo que não existe um único modo de ler e escrever, mas práticas plurais, diversas e profundamente enraizadas nas experiências culturais, nas trajetórias de vida e nos territórios dos sujeitos. Essa perspectiva rompe definitivamente com a concepção normativa e universalizante, na medida em que reconhece que as práticas de letramento são modeladas pelos marcadores sociais da diferença raça, gênero, classe, geração, territorialidade, sexualidade e religiosidade e que, portanto, carregam os traços das disputas simbólicas e materiais que estruturam as sociedades.

Essa compreensão torna-se ainda mais potente quando inserida nos marcos teóricos das epistemologias decoloniais. Autores como Walter Mignolo (2003; 2021) e Catherine Walsh (2023) aprofundam a análise ao demonstrar que o letramento, tal como foi historicamente construído e difundido pelas instituições ocidentais especialmente a escola moderna, opera como uma tecnologia de poder da colonialidade. Nesse sentido, a imposição da escrita alfabética como critério civilizatório não foi apenas um mecanismo de controle cultural, mas também um dispositivo de epistemicídio, isto é, de destruição sistemática dos saberes, das linguagens e das concepções dos povos não europeus.

É nesse cenário que se evidencia a centralidade do letramento como campo de disputa epistêmica, no qual se travam batalhas pela legitimação dos saberes, das linguagens e das existências. Como alerta Bell Hooks (2022), a linguagem nunca é neutra. Ela pode funcionar tanto como ferramenta de opressão quanto como instrumento de libertação. Essa concepção, absolutamente alinhada às propostas de Paulo Freire (1987), reforça que o letramento não se limita à aquisição de competências linguísticas, mas se configura, sobretudo, como prática de leitura crítica do mundo, como estratégia de denúncia das opressões e como ferramenta de emancipação dos sujeitos historicamente marginalizados.

Ao articular as contribuições freireanas com os aportes dos letramentos críticos e das epistemologias decoloniais, torna-se possível compreender que o letramento precisa ser concebido como prática política. Paulo Freire (1987) já antecipava essa concepção ao afirmar que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Assim, todo processo de letramento é, antes de tudo, um processo de inserção crítica no mundo, no qual os sujeitos aprendem a decifrar não apenas os códigos da linguagem escrita, mas também os códigos da opressão, do racismo, da colonialidade e da exploração.

Diante disso, a emergência da perspectiva do letramento racial assume papel incontornável nos debates contemporâneos sobre educação. Essa concepção amplia os marcos dos letramentos críticos para incluir, de maneira explícita, a análise das estruturas raciais que organizam as relações sociais, os discursos e as práticas pedagógicas. Como afirmam Gomes (2024) e Carneiro (2022), o letramento racial constitui-se como um ato de resistência epistêmica, que permite aos sujeitos racializados desenvolverem uma consciência crítica sobre os mecanismos simbólicos e materiais que sustentam o racismo estrutural, e, ao mesmo tempo, afirmarem suas identidades, seus saberes e suas cosmopercepções.

Essa perspectiva convoca a escola a repensar radicalmente seus currículos, suas práticas pedagógicas e seus dispositivos avaliativos, na medida em que evidencia que o modelo tradicional de letramento não apenas reproduz a desigualdade, mas também legitima as hierarquias raciais, culturais e epistêmicas. A insistência na centralidade da norma culta, da escrita alfabética e dos cânones literários ocidentais como únicos critérios de validação do saber constitui um dos pilares da colonialidade do saber, que precisa ser urgentemente desmontado (Mignolo, 2021; Walsh, 2023).

Por outro lado, pensar o letramento a partir de uma perspectiva de insurgência epistemológica significa, também, reconhecer e valorizar as práticas de letramento que emergem das comunidades negras, indígenas e periféricas, nas quais a oralidade, a musicalidade, a estética e a performance ocupam lugar central na produção e na transmissão dos saberes. Isso implica reconhecer, por exemplo, que as rodas de capoeira, os terreiros, os quilombos, os slams, os saraus, os bailes, os rituais, as festas, as práticas artísticas e culturais são, todos, espaços de letramento, nos quais se constroem narrativas, se produzem conhecimentos e se fortalecem identidades insurgentes.

Portanto, assumir uma concepção de letramento fundamentada nas múltiplas perspectivas não é apenas um exercício acadêmico ou teórico, mas um imperativo político e ético. Trata-se de enfrentar, de maneira contundente, as lógicas da colonialidade, do racismo e do epistemicídio, e de construir práticas pedagógicas que, para além de ensinar a ler e a escrever, sejam capazes de formar sujeitos críticos, conscientes, comprometidos com a transformação social e profundamente enraizados nas epistemologias dos seus territórios, das suas ancestralidades e das suas experiências de resistência.

3. LETRAMENTO RACIAL: UM ATO POLÍTICO-PEDAGÓGICO

O letramento racial, quando compreendido em sua complexidade, transcende qualquer definição simplista ou reducionista. Ele não se restringe, como equivocadamente tratado em algumas abordagens institucionais, a uma atividade pontual ou a uma política compensatória dentro da lógica educacional. Ao contrário, configura-se como um projeto político-pedagógico, epistemológico e ontológico de enfrentamento à colonialidade do saber, à supremacia branca e ao racismo estrutural que perpassa as instituições, os currículos, os discursos e as práticas escolares (Gomes, 2024; Walsh, 2023; Kilomba, 2023).

Essa concepção se ancora na compreensão de que toda prática educativa é, antes de tudo, uma prática política. Não existe neutralidade no campo da educação tampouco nas práticas de leitura e escrita, uma vez que ensinar, aprender e produzir sentidos são ações atravessadas por disputas de poder, por regimes de verdade e por sistemas de validação de saberes. Como bem destacam Walsh (2023) e Mignolo (2021), os processos educativos, quando organizados sob a lógica da colonialidade, operam como dispositivos de controle epistêmico, cultural e subjetivo, reforçando hierarquias raciais, de classe e de gênero.

O letramento racial, portanto, rompe radicalmente com a lógica universalista e monocultural da escola moderna. Sua proposta tensiona o currículo, questiona a normatividade dos saberes eurocêntricos e desestabiliza as narrativas hegemônicas que historicamente invisibilizaram e subalternizaram os povos negros e indígenas. Ao fazê-lo, ele não se limita a inserir novos conteúdos, mas exige uma profunda revisão das estruturas que sustentam a educação, provocando deslocamentos epistemológicos que vão desde a formação docente até as formas de avaliação, gestão e organização dos espaços educativos (Carneiro, 2022; Gomes, 2024).

Nessa perspectiva, assumir o letramento racial como um ato político-pedagógico é reconhecer que a educação, tal como historicamente estruturada, não apenas reflete, mas também reproduz as assimetrias raciais que caracterizam a sociedade brasileira. O silêncio sobre as histórias africanas e afro-brasileiras, a ausência de representações positivas da população negra no material didático, a desvalorização das práticas linguísticas das periferias e das oralidades afro-diaspóricas são formas concretas de epistemicídio termo cunhado por Sueli Carneiro (2022) para denunciar o extermínio simbólico dos saberes dos povos negros.

Diante disso, torna-se inegável que o letramento racial opera, ao mesmo tempo, como prática de denúncia e de anúncio. De denúncia, porque torna visível as engrenagens do racismo estrutural, revelando como ele se atualiza na linguagem, na organização curricular, nas interações pedagógicas e nas próprias concepções de conhecimento. E de anúncio, porque projeta alternativas epistêmicas, estéticas e pedagógicas baseadas nas epistemologias negras, indígenas e periféricas, que oferecem outros modos de existir, de ensinar e de aprender (Walsh, 2023; Nascimento, 2021).

É precisamente nessa dimensão que o letramento racial se distingue de outras abordagens. Ele não se limita à formação de sujeitos aptos a identificar o racismo em suas formas mais explícitas, mas fomenta a construção de uma consciência racial crítica, capaz de compreender como o racismo opera nas estruturas discursivas, nas práticas institucionais, nas narrativas midiáticas e nos processos de subjetivação (Schucman, 2021; Kilomba, 2023). Trata-se, portanto, de um movimento formativo que articula a leitura crítica do mundo, a reescrita de si e a construção coletiva de futuros antirracistas.

Do ponto de vista epistêmico, o letramento racial convoca à desobediência epistêmica, conceito amplamente discutido por Walsh (2023) e Mignolo (2021), que propõe a ruptura com a supremacia do pensamento ocidental como critério único de validação do conhecimento. Essa desobediência não se limita à rejeição do eurocentrismo, mas promove o reconhecimento e a centralização das epistemologias negras, indígenas e diaspóricas como fundamentais para a produção de uma educação plural, anticolonial e comprometida com a justiça cognitiva.

Ao compreender o letramento racial como prática insurgente, torna-se possível visualizar como ele opera também na dimensão da produção de subjetividades. O sujeito negro, ao desenvolver práticas de letramento racial, não apenas aprende a ler o mundo, mas passa a compreender os processos históricos que estruturaram sua marginalização, suas experiências de silenciamento e, consequentemente, constrói estratégias de resistência, de fortalecimento identitário e de afirmação epistêmica (Gomes, 2024; Carneiro, 2022).

Ademais, não se pode perder de vista que o letramento racial, para além de sua dimensão formativa individual, configura-se como prática coletiva, comunitária e territorializada. Ele se estrutura nas experiências dos terreiros, dos quilombos, das periferias urbanas, das universidades negras e dos movimentos sociais, reafirmando que os saberes não se limitam aos espaços escolares formais, mas são produzidos nas vivências, nas oralidades, nas performances, nas estéticas e nas linguagens ancestrais (Gomes, 2024; Walsh, 2023).

Portanto, a operacionalização do letramento racial como ato político-pedagógico demanda da escola, das universidades e das instituições formadoras uma revisão radical dos seus fundamentos. Isso inclui a reformulação dos projetos político-pedagógicos, a revisão dos referenciais curriculares, a construção de práticas pedagógicas centradas na valorização dos saberes ancestrais e na promoção da equidade racial, bem como a formação inicial e continuada de docentes capazes de atuar criticamente frente às dinâmicas do racismo estrutural e institucional (Schucman, 2021; Nascimento, 2021).

No limite, o letramento racial não é apenas uma estratégia pedagógica, mas uma proposta de transformação social e de reconfiguração dos próprios sentidos da educação. Ele afirma que ler, escrever e produzir conhecimento são atos profundamente políticos, que podem ser mobilizados tanto para reproduzir as estruturas coloniais e racistas quanto para desmantelá-las e construir alternativas epistêmicas, culturais e ontológicas que afirmem as vidas negras, indígenas e de todos os povos historicamente subalternizados.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo corroborou que o letramento racial, quando incorporado de modo consistente no currículo escolar, revela-se uma prática educativa de alto potencial transformador. Verificou‑se que o reconhecimento de identidades diversas, a inserção de narrativas culturais historicamente marginalizadas e o uso de materiais didáticos representativos favorecem o engajamento dos estudantes, reforçam seu sentido de pertencimento e contribuem para uma educação que transcende conteúdos técnicos, dialogando com a formação cidadã e com a justiça simbólica.

Por outro lado, persistem desafios relevantes que não podem ser negligenciados. A falta de formação docente específica e continuada, a escassez de materiais didáticos que dialoguem de forma significativa com as experiências raciais diversas, bem como a resistência institucional, emergem como barreiras visíveis. Além disso, a implementação ainda fragmentada dos conteúdos étnico-raciais afeta a coerência das práticas pedagógicas, impedindo que o letramento racial atue como elemento estrutural do currículo.

Em face dessas evidências, é urgente que políticas educacionais garantam suporte sólido às escolas para que tais práticas se consolidem. Isso inclui investimento contínuo em capacitação docente, revisão de materiais escolares, incentivos para que as práticas de letramento racial sejam integradas às rotinas pedagógicas, e fortalecimento de políticas de diversidade que ultrapassem o aspecto formal, transitando para o prático e vivenciado.

Assim, conclui‑se que o currículo escolar pode se configurar como espaço vivo de resistência e de formação identitária, capaz de promover aprendizagens significativas que acolham, representem e empoderem todos os estudantes. O letramento racial não deve ser concebido como assunto marginal, mas como dimensão essencial da prática educativa que visa a construir uma educação mais inclusiva, expressiva e comprometida com a equidade.

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1 Graduada em Historia Educação pela Universidade Estadual da Paríba (UEPB), Graduada em Licenciatura em Educação Física pela Faculdade IBRA, Graduada em Licenciatura em Língua Portuguesa pela Faculdade IBRA,Especialista em Fundamentos da Educação pela Universidade Estadual da Paríba (UEPB), Mestre Ciências da Educação pela Universidad de la Integración de las Américas – UNID, em Doutoranda em Ciências da Educação pela Universidad de la Integración de las Américas – UNID. E-mail: [email protected].