INCENDIO DA BOATE KISS: ESTUDO DE CASO SOBRE A APLICAÇÃO DO SISTEMA DE COMANDO DE INCIDENTES

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.14519141


Carlos Enrique Musse Torres1


RESUMO
Este estudo tem como objetivo analisar a resposta ao incêndio ocorrido na Boate Kiss, localizada em Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul, no dia 27 de janeiro de 2013. O incidente teve início quando uma centelha proveniente de material pirotécnico, utilizado durante uma apresentação, atingiu a espuma no teto do estabelecimento, provocando a rápida propagação do fogo. Na ocasião, o local estava superlotado, com capacidade muito acima do limite permitido, e contava com uma única saída de emergência, o que agravou significativamente a gravidade da tragédia. O incêndio resultou na morte de 242 pessoas e deixou 680 feridos, sendo que a maioria das vítimas faleceu devido à inalação de fumaça. Em decorrência da magnitude do evento, muitas vítimas foram resgatadas por civis voluntários, que atuaram sem treinamento adequado e sem os devidos equipamentos de proteção individual. A análise foca na aplicação do Sistema de Comando de Incidentes (SCI) durante a resposta ao incêndio. O SCI é uma metodologia internacionalmente reconhecida para o gerenciamento de emergências, permitindo o comando, controle e coordenação das ações de resposta de forma eficiente e estruturada. Para tanto, a pesquisa adota uma abordagem qualitativa, baseada no estudo de caso do incidente.
Palavras-chave: Boate Kiss, Sistema de Comando de Incidentes, Atendimento de Vítimas em Massa.

ABSTRACT
This study aims to analyze the response to the fire that occurred at the Kiss Nightclub, located in Santa Maria, Rio Grande do Sul, on January 27, 2013. The incident began when a spark from pyrotechnic material used during a performance hit the foam on the ceiling of the establishment, causing the rapid spread of the fire. At the time, the venue was overcrowded, with a capacity far above the permitted limit, and had only one emergency exit, which significantly worsened the severity of the tragedy. The fire resulted in the deaths of 242 people and left 680 injured, the majority of the victims dying from smoke inhalation. Due to the magnitude of the event, many victims were rescued by civilian volunteers, who acted without proper training and without the necessary personal protective equipment. The analysis focuses on the application of the Incident Command System (ICS) during the fire response. ICS is an internationally recognized methodology for emergency management, enabling the command, control, and coordination of response actions in an efficient and structured manner. To this end, the research adopts a qualitative approach based on a case study of the incident.
Keywords: Kiss nightclub, Incident Command System, Mass-Casualty Incident.

Introdução

Às 3 horas da madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, ocorreu um incêndio na Boate Kiss, localizada em Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul. O evento aconteceu durante uma festa universitária, na qual uma banda local realizava um show. O incêndio teve início a partir de uma centelha gerado por um fogo de artifício utilizado pela banda, que atingiu a espuma de isolamento no teto da boate. Em menos de um minuto, as chamas se espalharam rapidamente pelo ambiente, que possuía apenas uma saída para aproximadamente 1.300 pessoas presentes. A falta de rotas de fuga adequadas e a superlotação resultaram na morte de 242 pessoas, além de deixar 680 feridos.

A resposta inicial ao incêndio foi conduzida por duas guarnições do Corpo de Bombeiros, compostas por sete bombeiros militares e seis alunos bombeiros. Como primeiros a chegarem no local, a equipe tinha a responsabilidade de implementar adequadamente o Sistema de Comando de Incidentes (SCI), uma metodologia amplamente adotada internacionalmente para a gestão de incidentes de diversas naturezas. No Brasil, o SCI foi introduzido pelo Governo do Estado de Santa Catarina, por meio da Defesa Civil Estadual e da Universidade Federal de Santa Catarina, e, posteriormente, foi implantado por outros estados e pelo Distrito Federal.

O objetivo desta pesquisa é analisar a aplicação do Sistema de Comando de Incidentes (SCI) na resposta do Corpo de Bombeiros de Santa Maria ao incêndio da Boate Kiss. Pretende-se avaliar se a atuação das equipes de emergência esteve em conformidade com os princípios e diretrizes do SCI, além de identificar eventuais falhas nos procedimentos adotados durante a gestão do incidente. Não é a intenção deste estudo apontar “culpáveis” entre os respondedores, que realizaram esforços extraordinários para salvar o maior número possível de vítimas. No entanto, de uma perspectiva científica, é essencial analisar os incidentes para aprimorar as respostas a futuros incidentes com vítimas em massa.

A relevância deste estudo decorre da magnitude catastrófica do incêndio, que mobilizou uma ampla rede de órgãos públicos e instituições, tanto estaduais quanto federais, em Santa Maria. Entre os envolvidos estavam o Corpo de Bombeiros, a Polícia Militar, o Instituto Médico Legal, a Brigada Militar, a Polícia Civil, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Rodoviária Estadual, o SAMU, os Bombeiros da Base Aérea, a Guarda Municipal e o Exército Brasileiro, além de diversas entidades federais e privadas. O incêndio, devido à sua magnitude e complexidade, exigia uma resposta coordenada desde o momento da chegada dos primeiros efetivos, utilizando-se de um sistema estruturado, como o SCI. No entanto, conforme apurado pelas autoridades, desde o início da operação, houve falhas na organização dos recursos e na implementação do comando do incidente, prejudicando funções essenciais, como segurança, comunicação, planejamento, operações e logística.

A pesquisa adota uma abordagem teórica qualitativa, utilizando o estudo de caso como metodologia. Esse método visa explorar em profundidade o evento analisado, considerando sua complexidade e dinamicidade, e proporcionando subsídios para a análise crítica e a tomada de decisões em situações semelhantes (ANDRÉ, 2005, p. 49). A metodologia inclui uma revisão bibliográfica especializada, complementada pela análise de relatórios e documentos oficiais sobre o ocorrido, com o intuito de construir um panorama detalhado da resposta das equipes de emergência e da aplicação do SCI. Foram analisados relatórios de instituições públicas e privadas, além de notícias e documentos relacionados ao incêndio. A análise teórica se fundamenta na doutrina existente sobre o Sistema de Comando de Incidentes (FEMA, 2018), com destaque para os trabalhos de Walsh (2005) e Nicholson (2033).

A Boate

Inaugurada em 2009 pelos empresários Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffman, a empresa Santo Entretenimento Ltda – ME (Boate Kiss) estava localizada na rua dos Andradas, 1925, Centro, em Santa Maria (ÉPOCA, 2015), cidade com aproximadamente 260.000 habitantes, situada a 290 km a oeste de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul. A área do local era de 638 m², e a capacidade máxima de lotação era de 769 pessoas, conforme dados do Instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul (IGP-RS apud POLÍCIA CIVIL DE SANTA MARIA - RS, p. 88).

A boate possuía duas portas de 360 cm de largura cada na sua fachada. Uma delas estava cercada por grades que formavam um fumódromo. O primeiro alvará de prevenção contra incêndios foi expedido em agosto de 2009 pelo Corpo de Bombeiros. Este alvará foi renovado em 2011, com um ano de atraso, e, na data do sinistro, o documento estava vencido.

O isolamento acústico do local era composto por um revestimento de duas camadas de forro de gesso, com mais duas camadas de lã de vidro, um material inflamável à base de poliuretano. Quando queimado, esse produto emite ácido cianídrico (HCN), um gás 25 vezes mais tóxico que o monóxido de carbono.

A boate possuía apenas uma saída para o exterior e carecia de um sistema de iluminação de emergência adequado. Além disso, não havia demarcação apropriada das rotas de saída, os extintores de incêndio estavam vencidos e não existia sistema de sprinklers ou caixas de incêndio que permitissem uma resposta eficaz e oportuna ao sinistro.

As janelas estavam obstruídas, e havia guarda-corpos e barras de contenção no caminho até a saída, o que dificultou a evacuação rápida do público. O relatório do Conselho Regional de Engenharia e Agricultura - RS (CREA – RS) resume assim as caraterísticas da boate:

o revestimento acústico inflamável foi aplicado de forma aparente no palco, sobre o revestimento original de gesso acartonado e lã de rocha. Como o palco era elevado, o contato entre os elementos pirotécnicos usados no show do Conjunto Gurizada Fandangueira e o material inflamável se tornou possível. Estavam configuradas as condições para o inicio do sinistro. (CREA-RS, 2013)

A Festa

Um grupo de estudantes dos cursos de Pedagogia, Agronomia, Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Federal de Santa Maria organizou a festa intitulada "Agromerados", que contou com a apresentação da banda Gurizada Fandangueira. O evento teve início às 23 horas do sábado, 26 de janeiro de 2013. Estima-se que aproximadamente 1.300 pessoas estivessem presentes na boate na noite do incêndio.

Figura 1. Planta do local.

Fonte: NFPA Journal Latinoamericano.

O Sistema de Comando de Incidentes (SCI)

O Sistema de Comando de Incidentes (SCI) foi criado nos Estados Unidos na década de 1970 com o objetivo de organizar a resposta das equipes de bombeiros florestais na Califórnia. Com o tempo, o sistema evoluiu, tornando-se aplicável a diversos tipos de emergência, devido à sua estrutura organizacional comum e ao gerenciamento padronizado pela Federal Emergency Management Agency (FEMA) dos Estados Unidos.

No Brasil, a introdução do SCI ocorreu no estado de Santa Catarina, com o apoio da Defesa Civil Estadual e da Universidade de Santa Catarina. Posteriormente, o sistema foi implantado por outros estados e pelo Distrito Federal. O Manual do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal define o SCI da seguinte forma:

É uma ferramenta de gerenciamento de incidentes padronizada, para todos os tipos de sinistros, que permite a seu usuário adotar uma estrutura organizacional integrada para suprir as complexidades e demandas de incidentes únicos ou múltiplos, independente das barreiras jurisdicionais (CORPO DE BOMBEIROS MILITAR - DF, 2011).

O SCI tem sido considerado de alta confiabilidade por pesquisadores como Bigley et al. e Kane (2001 apud BUCK et al., 2006). Uma das vantagens desse sistema é sua capacidade de permitir o planejamento da resposta ao incidente, mesmo com a participação de várias organizações. BUCK (2006) explica que o ciclo de planejamento cria objetivos específicos para cada período operacional, e que todos os organismos envolvidos na resposta ao incidente trabalham em função desses objetivos. Ele também esclarece que o plano não contém apenas os objetivos, mas também a identificação das responsabilidades de cada entidade para atingir tais objetivos:

The planning cycle creates specific goals to attend during each operational period. In it there is a strategic or campaign plan and a tactical or action plan. In the action plan, objectives are set for each operational period. The entire set of organizations responding to an incident work toward accomplishing those objectives. The operational plan not only sets the objectives, but also identifies who is going to accomplish them (BUCK et al. 2006, p. 2).

(O ciclo de planejamento cria metas específicas para serem atendidas durante cada período operacional. Nele, há um plano estratégico ou de campanha e um plano tático ou de ação. No plano de ação, os objetivos são definidos para cada período operacional. Todo o conjunto de organizações que respondem a um incidente trabalha para atingir esses objetivos. O plano operacional não apenas estabelece os objetivos, mas também identifica quem irá realizá-los, tradução nossa).

Outros autores concordam que um dos benefícios do Sistema de Comando de Incidentes é reduzir os problemas de coordenação e o aprimoramento da efetividade na resposta:

In the years that followed its creation, the ICS was perceived by practitioners as successful in reducing coordination problems and improving fire response effectiveness (BIGLEY e ROBERTS 2001; BUCK, TRAINOR e AGUIRRE 2006 e COLE 2000 apud MOHYNIHAN, p.897).

(Nos anos que se seguiram à sua criação, o ICS foi percebido pelos profissionais como bem-sucedido na redução de problemas de coordenação e na melhoria da eficácia da resposta a incêndios, tradução nossa).

Durante o incidente na Boate Kiss, houve a mobilização de diversos órgãos públicos da cidade de Santa Maria. Entre os principais, destacam-se o Corpo de Bombeiros, a Brigada Militar, a Polícia Civil, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Rodoviária Estadual, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), os Bombeiros da Base Aérea, a Guarda Municipal, o Exército Brasileiro e o Instituto Médico Legal (IML), além de outros organismos de apoio.

O incidente exigia uma resposta coordenada, que deveria ter sido estruturada desde o início com a aplicação do Sistema de Comando de Incidentes (SCI), desde a chegada dos primeiros respondedores. Esse sistema teria facilitado a integração e a coordenação das diferentes agências envolvidas, otimizando a gestão de recursos e a comunicação entre os diversos órgãos de resposta

O Sistema de Comando de Incidentes (SCI) é um modelo de gestão de emergências que facilita a coordenação de múltiplas agências, possibilitando a execução de diversas tarefas em resposta a incidentes complexos. Seus princípios fundamentais incluem: o uso de uma terminologia comum, garantindo entendimento mútuo entre todos os órgãos envolvidos; a definição de um alcance de controle eficiente, limitado a um número de 1 a 7 efetivos por supervisor; a integração de comunicações com frequências comuns e sem o uso de códigos, assegurando clareza nas transmissões; e uma organização modular, que permite a adaptação da estrutura à magnitude do incidente de maneira previsível e ordenada.

Outro aspecto crucial do SCI é o desenvolvimento de um Plano de Ação do Incidente único e consolidado, que visa evitar a duplicação de esforços e o desperdício de recursos. O sistema também estabelece um Comando Unificado, prevenindo a emissão de ordens conflitantes e a adoção de iniciativas isoladas, promovendo o uso eficaz dos recursos disponíveis. Além disso, o SCI prevê a padronização de instalações essenciais, como o Posto de Comando, as Bases de Operações e a Área de Espera, facilitando a logística e o controle operacional durante a resposta ao incidente.

O primeiro respondedor a chegar na cena do incidente tem a responsabilidade de iniciar o Sistema de Comando de Incidentes (SCI) ou transferir o comando para a próxima unidade que chegar, caso seja necessário prestar socorro imediato e a estruturação do comando não seja viável no momento. A instalação do Posto de Comando do Incidente (PCI) e das instalações de apoio deve ser realizada conforme a magnitude e as necessidades do incidente.

Em eventos com vítimas em massa, como o ocorrido na Boate Kiss, pode ser necessário implantar uma série de instalações adicionais para o manejo eficiente da resposta. Entre essas instalações, destacam-se a criação de um heliponto para transporte aéreo de feridos, uma Área de Concentração de Vítimas para triagem e tratamento pré-hospitalar, uma Área de Espera para as equipes de socorro aguardarem instruções, e uma Área de Reabilitação para os socorristas, a fim de garantir a continuidade das operações em condições seguras e organizadas. Essas medidas são essenciais para garantir uma resposta coordenada e eficaz em incidentes de grande escala.

A estrutura do Sistema de Comando de Incidentes (SCI) é organizada em dois grupos principais: o Staff do Comando e o Staff Geral (Figuras 1 e 2). O Staff do Comando é responsável pelas funções essenciais de comando, enquanto o Staff Geral lida com a gestão operacional, logística, planejamento e administração do incidente.

Quando o incidente atinge um nível elevado de complexidade, o papel do Comandante do Incidente é substituído por um Comando Unificado. Nesse modelo, todas as agências envolvidas na resposta emergencial têm representantes no comando, garantindo a integração de decisões e a coordenação efetiva das ações entre os diferentes organismos. O Comando Unificado permite que múltiplas agências compartilhem a responsabilidade pelo controle do incidente, promovendo uma resposta harmoniosa e evitando conflitos de liderança ou sobreposição de esforços.

Figura 1. Staff de Comando do SCI.

Fonte: Manual SCI do CBMDF, p. 56

Figura 2. Staff Geral do SCI.

Fonte: Manual SCI do CBMDF, p. 60

O Sistema do Comando de Incidentes tem vários níveis que permitem à estrutura crescer segundo as necessidades do incidente, como se mostra na Figura 3.

Figura 3. Níveis da estrutura do SCI.

Fonte: Manual SCI do CBMDF, p. 72

Além disso, cada atividade dentro do SCI é coordenada por um responsável com um título específico, cujas funções e responsabilidades são claramente definidas (Figura 4). Esses responsáveis assumem papéis distintos no gerenciamento do incidente, garantindo que cada tarefa seja executada de acordo com os protocolos estabelecidos. A clareza nas atribuições a coordenação entre as equipes, promovendo uma resposta eficiente e organizada.

Figura 4. Posições do SCI e seus responsáveis

Fonte: Manual SCI do CBMDF, p. 69

O Incidente

Às 03h15 do dia 27 de janeiro de 2013, o fogo teve início a partir da utilização de um instrumento pirotécnico do tipo Sputnik durante show musical da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava no interior da boate (Ministério Público de RS, 2013). A centelha atingiu a espuma que revestia o teto do local, liberando fumaça altamente tóxica. Em menos de um minuto, o fogo se alastrou rapidamente. O estabelecimento possuía apenas uma saída, que se mostrou insuficiente para evacuar os cerca de 1.300 convidados presentes no evento. Essa limitação foi um dos principais fatores que contribuíram para o trágico saldo de 242 mortos e 680 feridos. Dois infográficos detalhando a dinâmica do incêndio e a disposição do local podem ser visualizados nos Anexos 1 e 2. De acordo com o relatório da Polícia Civil:

O produtor da banda, Luciano Augusto Bonilha Leão, responsável pelo fogo de artifício, colocou uma luva na mão no vocalista da banda, Marcelo de Jesus dos Santos, na qual estava acoplado o objeto. Posteriormente, Luciano acionou o referido fogo de artifício, mediante controle remoto. O vocalista da banda levantou a mão em direção ao teto e uma chama ou faísca tocou o forro, o qual possuía isolamento acústico de esponja, material altamente inflamável (poliuretano). Assim, poucos segundos depois a espuma pegou fogo, gerando uma fumaça preta e tóxica que se alastrou por toda a boate, circunstância comprovada pela prova testemunhal, pericial e por um vídeo de um minuto e vinte segundos, (referido no laudo pericial), extraído de um telefone celular pertencente a uma pessoa que se encontrava no interior da boate, fazendo com que muitas pessoas desmaiassem tão logo aspiraram o ar impregnado da fumaça originada da queima. Na escala de tempo deste vídeo, verifica-se que quarenta segundos depois das pessoas que portavam o telefone terem percebido que se tratava de fogo, a fumaça já havia tomado conta e o caos estava instalado no ambiente superlotado do estabelecimento. (POLÍCIA CIVIL DE SANTA MARIA – RS. 2013, p. 2-3)

Inicialmente, alguns funcionários da boate tentaram utilizar os extintores de incêndio, mas estes falharam, não funcionando como esperado. Em um esforço desesperado, um dos funcionários tentou apagar as chamas utilizando uma garrafa de água, sem sucesso. Além disso, no momento em que a evacuação começou, alguns seguranças confundiram a situação com uma briga generalizada e, preocupados com a possibilidade de os frequentadores saírem sem pagar as comandas, impediram temporariamente a saída das pessoas da boate.

Não bastasse a existência de uma única saída, contribuiu também para o resultado danoso a existência de diversos obstáculos físicos, guarda-corpos (barras de contenção) nas rotas de saída, degraus, deficiência da iluminação de emergência, falta de indicação ou sinalização das rotas de fuga, além do local estar superlotado, fatores que em conjunto dificultaram a rápida evacuação do local. (POLÍCIA CIVIL DE SANTA MARIA - RS, p. 3)

Em resumo, de acordo com o relatório do CREA-RS, as causas do incêndio foram:

A combinação do uso de material de revestimento acústico inflamável, exposto na zona do palco, associada à realização de show com componentes pirotécnicos.

Analisando relatos, a propagação do incêndio, por sua vez, foi fundamentalmente influenciada pela falha de funcionamento dos extintores localizados próximos ao palco, que poderiam ter extinguido o foco inicial de incêndio.

O grande número de vítimas, por sua vez, foi influenciado pela dificuldade de desocupação, pelas deficiências nas saídas de emergência, e pelo excesso da lotação máxima permitida. A superlotação (aparentemente era comum que a casa abrigasse cerca de 1.000 pessoas, e isso parece ter ocorrido na noite do sinistro) e as características inadequadas do espaço, em termos de sinalização, tamanho e localização das saídas de emergência dificultou a evacuação.

Essas deficiências foram compostas pela aparente falta de treinamento para situação de emergências e da ausência de equipamento de comunicação da equipe de segurança do local. Tudo isso contribuiu para retardar a saída das pessoas nos minutos posteriores ao incêndio, tendo papel decisivo no número de vítimas.

Às 03h17, a resposta inicial do Corpo de Bombeiros foi composta por duas guarnições, totalizando sete bombeiros militares e seis alunos bombeiros, que não estavam devidamente preparados para lidar com a magnitude do incidente (dez bombeiros de acordo com a pesquisa da NFPA). O relatório da Polícia Civil de Santa Maria explica:

Solicitaram apoio de populares ou permitiram que civis colaborassem no resgate das vítimas. Os bombeiros não continham os civis. Emprestavam lanternas e molhavam os populares para que ingressassem no interior da KISS, permitiam que eles segurassem as mangueiras. Noutras palavras, a prova carreada aos autos bem evidencia o amadorismo e o despreparo dos bombeiros que primeiro chegaram ao local do sinistro.

Em decorrência dessas atitudes dos bombeiros, cinco pessoas morreram, pois adentraram no interior da Boate KISS desprovidos de equipamentos de proteção individual adequados no intuito de salvar amigos, familiares, namorados (as) (POLÍCIA CIVIL DE SANTA MARÍA, p. 107-108).

Uma equipe técnica da National Fire Protection Association (NFPA) investigou o incidente e forneceu detalhes adicionais sobre a resposta dos bombeiros. No seu relatório, são mencionados somente dez efetivos na resposta inicial:

Inmediatamente después de que llegan los llamados a la Central de Bomberos de Santa Maria, a las 03:17 de la mañana se despacha una unidad de extinción de incendios y otra de rescate con 10 bomberos en total, que salen desde la Estación Regional de Bomberos # 4 de esta ciudad, a 2 km de la discoteca. Dependiendo de la fuente, entre cinco y siete minutos más tarde los bomberos ya están en frente de la discoteca. Cuando los bomberos entran al lugar, unos buscan el foco del incendio y encuentran que éste ya se había auto- extinguido. Otros buscan sobrevivientes, pero ya es muy tarde. No por el tiempo de respuesta de los bomberos, sino más bien por la velocidad en que se desarrollan este tipo de incendios. A los bomberos también les llama la atención el sonido incesante de llamadas a los celulares de las víctimas. Los bomberos encuentran el edificio lleno de humo, un humo denso y negro. Más o menos a las 04:00 de la mañana se inician las labores de salvamento. (NFPA JOURNAL LATINOAMERICANO, 2013)

Além disso, o incêndio gerou a liberação de gás ácido cianídrico, proveniente do poliuretano do isolamento acústico, que é altamente asfixiante e inibe a respiração a nível celular, levando à morte por parada respiratória em questão de minutos.

Quando a primeira unidade de socorro chegou ao local, encontrou cerca de 600 a 700 pessoas, entre clientes e feridos, acumuladas na porta da boate. Diante dessa situação, a unidade solicitou o apoio de todas as equipes disponíveis na região. Como resultado, unidades da Brigada Militar e das Polícias Rodoviárias Federal e Estadual foram mobilizadas para ajudar no transporte dos feridos aos hospitais, uma vez que o número de ambulâncias, tanto dos órgãos públicos quanto privados, era insuficiente para atender à grande demanda de vítimas. (PC – RS, p. 109)

Os bombeiros, diante da dificuldade de acesso ao interior da boate, solicitaram o apoio de civis para quebrar as paredes com marretas, na tentativa de estabelecer uma entrada rápida. No entanto, muitos civis que participaram da busca e resgate no interior do estabelecimento não possuíam o preparo adequado nem o equipamento de proteção individual (EPI) necessário para lidar com a situação de risco. De acordo com testemunhos, os bombeiros molhavam as camisetas dos voluntários ou os próprios voluntários, na tentativa de proporcionar alguma forma de proteção contra as chamas, permitindo-lhes adentrar o local (Fotos 1 a 3). Apesar dos esforços heroicos desses voluntários, muitos faleceram em decorrência da inalação de fumaça, após terem resgatado várias vítimas.

Em determinado momento, o declarante pegou a mangueira dos Bombeiros, que estava com o civil e avançou com ela em direção ao fundo do prédio, para jogar água o mais longe que pudesse, sem ser advertido pelos Bombeiros; em certa oportunidade, o declarante pegou um Bombeiro que estava próximo à porta e disse: “vamos entrar lá e salvar as pessoas;” após, o declarante pegou o referido Bombeiro pelo braço e entrou com ele no prédio; resgataram uma vítima e o tal Bombeiro, após saírem do prédio, se afastou do declarante e não entrou mais no prédio; acha que ele ficou com medo de que o declarante o obrigasse a retornar ao interior do prédio. (PC - RS, p. 111)

Em nenhum momento os bombeiros advertiram ou impediram os civis de ingressarem no interior da KISS, o que possibilitou a morte desses indivíduos, alguns depois de cerca de três ou quatro incursões; outros não mais retornavam após entrarem pela primeira vez. (PC - RS, p. 114)

Fotos (em sentido horário) 1, 2, 3 e 4. Zona vermelha do incidente.