ECOS DO PASSADO: ARTE, ARQUITETURA E PATRIMÔNIO NO CEMITÉRIO NOSSA SENHORA DA PIEDADE EM ALAGOAS

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.13289290


Laura Tereza Menezes de Souza1
Nathalie Tenório de Barros Farias2


RESUMO
O Cemitério Piedade, localizado em Alagoas, representa um relevante patrimônio histórico e arquitetônico. Erguido no século XIX, o cemitério reflete as transformações sociais e urbanas ocorridas após a abolição da escravatura e a modernização de Maceió. A transição dos sepultamentos das igrejas para cemitérios, influenciada por normas sanitárias europeias, transformou o Cemitério Piedade em um espaço sagrado que conserva memórias e tradições socioculturais. Além de ser um local de descanso eterno, ele testemunha práticas funerárias e dinâmicas sociais da época. Sua arquitetura e os monumentos funerários incorporam tanto valores materiais quanto simbólicos, consolidando-se como um patrimônio cultural urbano de significativa importância.
Palavras-chave: Urbanização, Patrimônio, Arquitetônico, Monumento, Cultura.

ABSTRACT
The Piedade Cemetery, located in Alagoas, represents an important historical and architectural heritage site. Built in the 19th century, the cemetery reflects the social and urban transformations that took place after the abolition of slavery and the modernization of Maceió. The transition of burials from churches to cemeteries, influenced by European health standards, transformed the Piedade Cemetery into a sacred space that preserves memories and socio-cultural traditions. As well as being a place of eternal rest, it bears witness to the funerary practices and social dynamics of the time. Its architecture and funerary monuments embody both material and symbolic values, consolidating it as an urban cultural heritage site of significant importance.
Keywords: Urbanization, Heritage, Architectural, Monument, Culture.

Introdução

Desde tempos imemoriais, os cemitérios têm desempenhado um papel fundamental na preservação da memória coletiva e na expressão Arquitetônica das sociedades. No contexto Brasileiro, o Cemitério Nossa Senhora da Piedade, localizado em Maceió, Alagoas, destaca-se como um marco histórico e cultural do século XIX.

Este cemitério não apenas testemunhou as transformações urbanas e sociais da época, mas também abriga uma rica diversidade arquitetônica que reflete a evolução estilística e os valores culturais da sociedade alagoana. Além disso, é o repouso eterno de figuras ilustres que moldaram não apenas a história local, mas também contribuíram para o panorama cultural e político mais amplo do Brasil. Este artigo explora a importância do Cemitério Nossa Senhora da Piedade como Patrimônio com seus aspectos Arquitetônicos, Históricos e Culturais, destacando suas características Arquitetônicas distintas e o legado das personalidades notáveis ali sepultadas.

A edificação do Cemitério Nossa Senhora da Piedade, que teve início em 1850, marcou um momento importante para Maceió. No dia 29 de setembro daquele ano, o jornal. O Correio de Maceió noticiou que o engenheiro Pedro José Schranback recebeu a tarefa de demarcar o terreno e preparar as fundações do cemitério. A escolha do local e a execução da obra refletiram influências arquitetônicas da época, como o estilo Neoclássico e Gótico, incorporando elementos locais e criando um espaço único e reverenciado.

A relevância deste cemitério para Alagoas transcende seu valor histórico e arquitetônico. Ele testemunha as transformações sociais e econômicas do século XIX e permanece como uma lembrança concreta das contribuições culturais e políticas das personalidades sepultadas ali. O Cemitério Nossa Senhora da Piedade é, portanto, um lugar de memória que liga o presente ao passado, oferecendo uma compreensão mais rica da história e do desenvolvimento da região.

"Os cemitérios não são apenas locais de repouso final, mas também refletem a alma de uma sociedade, suas crenças, valores e histórias. Eles são 'os lugares onde as lembranças perduram e os ecos do passado se fazem presentes', como bem observou Robert Pogue Harrison em seu estudo sobre a relação entre a morte e a cultura." (Harrison, 2003).

Essa estrutura dá um panorama abrangente da importância do Cemitério Nossa Senhora da Piedade e integra uma citação relevante que enriquece a discussão sobre a função dos cemitérios na preservação da memória coletiva.

A metodologia deste trabalho baseou-se em fontes secundárias, como livros e artigos acadêmicos, e a realização de uma entrevista com o Arquiteto responsável pela criação de um dos monumentos funerários presentes no Cemitério Nossa Senhora da Piedade. As fontes secundárias forneceram o contexto teórico e histórico necessário para a análise das práticas de arquitetura funerária. A análise de dados combinou uma revisão narrativa das fontes secundárias e uma análise de conteúdo da entrevista. Todos os procedimentos seguiram as diretrizes éticas, com o consentimento informado do entrevistado e a garantia de confidencialidade.

Uma Breve contextualização sobre a morte relacionada a cultura

Desde o início das civilizações do mundo, o ser humano demonstrou uma grande preocupação com o sepultamento dos mortos. Como ocorria no Egito Antigo, onde esta preocupação se manifestava de forma extraordinária nas grandiosas pirâmides e nas elaboradas tumbas construídas para faraós e nobres. Essas edificações, além de servirem como locais de descanso eterno, refletiam o desejo de perpetuação e imortalidade, tanto do indivíduo quanto do grupo social ao qual pertenciam (OLIVEIRA, 2007, p. 10).

A construção de locais específicos para os falecidos, indicava a relevância que era atrelada à vida após a morte, e até mesmo a memória coletiva dos vivos. No Egito, as pirâmides e complexos funerários, com suas várias câmaras e rituais, demonstravam um tratamento delicado para com o local onde eram sepultados aqueles que haviam falecido.

Os cemitérios são mais do que locais destinados ao armazenamento e preservação de restos mortais humanos. Tratam-se de espaços sagrados de manifestação de diversas expressões socioculturais, onde há uma conexão do ser humano com o lado espiritualista e com a reflexão ancestral, podendo até mesmo exercer o ato filosófico de pensamento sobre sua existência. Estas paisagens funerárias não apenas nos oferecem um patrimônio arquitetônico com suas construções, mas também valores, tradições, religiosidades (NOGUEIRA, 2013, p. 31).

Como patrimônio cultural urbano, os cemitérios possuem valores vinculados tanto aos bens tangíveis quanto aos intangíveis. Conforme apontado por Carrasco e Nappi (2009), três valores patrimoniais significativos podem ser relacionados aos bens materiais: o ambiental, o urbano, o artístico e o histórico.

A visitação de museus para reconhecer suas obras arquitetônicas, artes e características históricas, pode ser utilizada como uma lógica para os cemitérios, pois estes possuem em seus aspectos característicos informações e memoriais. Cemitérios e museus, ambos criados pelos e para os vivos, continuarão existindo enquanto houver seres humanos, e serão sempre uma fonte inestimável de conhecimento (RIBEIRO, BRAHM E TAVARES, 2018).

Propagação da Arquitetura Funerária Ao Redor do Mundo e No Brasil:

A arquitetura desempenha um papel crucial como indicador sociocultural e cronológico, sendo essencial para os estudos de arqueologia cemiterial. Compreender essas características permite identificar e analisar como os espaços destinados aos mortos foram projetados e utilizados pelos vivos ao longo do tempo. Os estilos arquitetônicos servem como ferramentas indispensáveis para entender a evolução das práticas funerárias. (BARTHEL, STELLA; RAMOS, ANA CATARINA; CASTRO, VIVIANE, 2020).

Nos cemitérios, a arquitetura é meticulosamente planejada com o uso de materiais duráveis, capazes de resistir ao passar dos anos. As técnicas e formas empregadas refletem as tendências de uma era específica, ao mesmo tempo que demonstram o controle social sobre os espaços urbanos e seus arredores. Assim como outras construções, os cemitérios seguem esses princípios e se destacam como elementos significativos no contexto urbano.

Durante a segunda metade do século XIX, doenças tais como a cólera, a febre amarela, varíola e a influenza se espalhavam pelo Brasil através dos navios e causavam infecções nos provincianos, que viviam em situações de precariedade higiênica. De acordo com Figueira Júnior (2018), medidas sanitárias foram propostas e colocadas em prática para amenizar a propagação das infecções em locais onde havia matéria orgânica, tais como: igrejas, pântanos, ruas, etc.

De acordo com Lima (1994), até o século XIX eram realizados no Brasil os enterros em Igrejas. Porém, a França com suas pesquisas e medidas médicas que eram conhecidas mundialmente argumentou e divulgou que os sepultamentos em igrejas era uma prática que poderia espalhar doenças devido aos odores e gases liberados pós-morte. Existia ainda uma preocupação com a reorganização dos espaços públicos urbanos da época, visando melhorias higiênicas para a cidade. Isso contribuiu para a transferência dos sepultamentos das igrejas para cemitérios privados.

Cymbalista (2002) observa que apenas as pessoas de condição nobre eram enterradas dentro das igrejas, enquanto os menos favorecidos eram sepultados nas escadarias. Embora a igreja não pudesse cobrar pelo sepultamento em seu interior, os padres aceitavam "doações" dos familiares do falecido e escolhiam o local do enterro. Enterros perto de Deus eram uma garantia de vida plena depois da morte (Reis, 1997).

Durante o período colonial e imperial no Brasil, os escravos e pessoas marginalizadas frequentemente encontravam seu descanso final em praias, terrenos baldios e campos abertos, como apontam Medeiros (2012) e Rodrigues (2014). Além disso, muitos desses indivíduos eram enterrados nos cemitérios administrados pela Santa Casa de Misericórdia de Maceió. Enquanto isso, os sepultamentos das classes mais privilegiadas aconteciam nos pisos das igrejas, bem como nos altares e ossuários das capelas em sítios e engenhos.

No início do século XIX, a aristocracia que dominava o período anterior começou a dar lugar a uma burguesia emergente ou em ascensão, que buscava reafirmar seu novo status como elite dominante. Nessa época, o estilo arquitetônico Neoclássico, influenciado pela Europa, tornou-se predominante no Brasil. De acordo com Bellomo (2008, p. 27), a ornamentação dos túmulos transmitia uma imagem de poder para aqueles cujas famílias tinham melhores condições financeiras.

Usando como parâmetro a categorização do pesquisador Harry Bellomo, podemos dividir esses adornos em: Cristãos, Alegóricos e Celebrativos.

Os símbolos cristãos são representados principalmente pelos símbolos da cruz e de Cristo, que abrangem momentos importantes como nascimento, evangelização, morte, ressurreição e ascensão. Estas aparições incluem também: figuras religiosas de Maria e figuras de anjos (GALVAN, 2021).

O estilo alegórico segue princípios antigos e enfatiza a admiração de pessoas que são perfeitas além da norma (BELLOMO, 2008, p. 18). Este gênero celebra heróis e virtudes e usa figuras femininas para representar conceitos ou emoções como dor, conforto, tristeza e esperança. Além disso, esses mitos são de natureza política, representando ideias como republicanismo, pátria e aventura. (GALVAN, 2021).

A tipologia cerimonial está associada ao positivismo e à política do início do século XX, e distingue-se dos túmulos, que têm uma dupla função, como observa Bellomo. Estas sepulturas não só proporcionam um local de descanso final, mas também honram a memória de importantes figuras políticas. Normalmente, estes túmulos apresentam imagens e alegorias dos mortos que representam as suas atividades ou ideologia durante as suas vidas, integrando-se assim num culto cívico (2008, p. 21).

A Prática de Visitação aos Cemitérios no Século XIX: Um Culto Familiar e Moral aos Mortos

A prática de visitação de cemitérios é uma forma de demonstrar uma certa afetividade familiar, que se tornou comum a partir do Século XIX. Esta prática no Brasil, foi popularizada a partir de veículos como: as crônicas, a literatura romântica da época em questão, e até mesmo as revistas de Portugal.

O escritor Machado de Assis tem até mesmo em uma de suas obras denominada “O Memorial de Aires”, uma citação subjetiva, que leva os leitores a reflexão a respeito desta temática da visitação aos mortos:

“Os mortos param no cemitério, e lá vai ter a afeição dos vivos, com suas flores e recordações. [...] A questão é que virtualmente não se quebre este laço, e a lei da vida não destrua o que foi da vida e da morte” (Machado de Assis, 1959, v. 1, p. 1121).

Imagem 1: A Obra Literária de Machado de Assis, de 1959.

Fotografia: Sebo Alagoano.

Transformações Sociais, Urbanas e Cemitérios em Alagoas no Século XIX

No século XIX, a sociedade de Alagoas era significativamente influenciada pela escravidão. A produção agrícola dependia amplamente do trabalho escravo, moldando as interações sociais dessa região. Com a abolição da escravatura em 1888, Alagoas, assim como o restante do Brasil, enfrentou o desafio de adaptar-se ao sistema de trabalho livre (FREIRE,2007).

Alagoas vivenciou profundas transformações, especialmente a partir da segunda metade do século, com a modernização e urbanização. Maceió, que se tornou a capital em 1839, cresceu rapidamente após a construção da estrada de ferro em 1860, conectando a cidade ao interior e facilitando o escoamento da produção agrícola, principalmente de açúcar e algodão. Esse desenvolvimento foi essencial para a urbanização, estimulando a migração do campo para a cidade e o surgimento de novos bairros e infraestrutura urbana (MELO, 2003).

As alterações urbanas causaram alterações das relações sociais, diversificando a população com a chegada de trabalhadores livres, comerciantes e profissionais liberais. As novas oportunidades econômicas e a infraestrutura moderna facilitaram o surgimento de uma classe média urbana, embora a desigualdade social ainda permanecesse (FARIAS, 1998).

Cemitério Nossa Senhora da Piedade como Objeto de Estudo

Imagem 2: Fachada do Cemitério Nossa Senhora da Piedade.