DO TERREIRO: A PRESENÇA DAS LÍNGUAS BANTU NO BRASIL

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.14782697


Odara Dèlé Almeida e Oliveira1


RESUMO
Os terreiros de candomblé do Congo Angola foram territórios significativos para a preservação das línguas bantu. Esses terreiros surgiram com os escravizados, que marcaram a sua existência em terras brasileiras com a disseminação de conhecimentos ancestrais, de geração em geração, até hoje, com os seus conhecimentos preservados pelos seus descendentes. O presente artigo tem como objetivo apresentar a presença da língua bantu nos terreiros, e suas contribuições para a manutenção da memória ancestral africana. Como metodologia, utilizaremos uma pesquisa bibliográfica de produções acadêmicas coletadas em diferentes fontes de dados. Para tanto, mobilizamos autores dedicados aos estudos das presenças bantu no território brasileiro, dando destaque aos escritos sobre candomblé Congo Angola e seus falantes das línguas bantu. Nas discussões feitas, verificamos que os terreiros são territórios fundamentais para a preservação da memória e herança linguística dos povos bantu, visto que possibilitaram a resistência da africanidade mesmo distantes dos países africanos.
Palavras-chave: Línguas bantu, Candomblé Angola, Terreiro

ABSTRACT
The Candomblé terreiros of Congo Angola were significant territories for the preservation of the Bantu languages. ​​These ancestors, who initially emerged as slaves, passed their knowledge on to their successors. This article aims to present the presence of the Bantu language in the terreiros, and its contributions to the maintenance of ancestral African memory. As a methodology, we will use a bibliographic research of academic productions collected from different data sources. To this end, we mobilized authors dedicated to the study of the Bantu presence in Brazilian territory, the relevance of Candomblé Congo Angola and the maintenance of the terreiros. In the discussions held, we forwarded as a reflection that the terreiros are fundamental territories for the preservation of the memory and linguistic heritage of the Bantu peoples that makes the resistance of Africanness possible.
Keywords: Bantu languages, Candomblé Angola, Terreiro

Introdução

Ao se mencionar a presença da língua bantu no solo brasileiro, é necessário que se recorra a um panorama do contexto histórico desse grupo étnico, bem como que se aborde as consequências de sua chegada nas Américas. Para Souza (2023), o termo “bantu” significa um conjunto de pessoas, sendo “ntu” a designação de pessoa, e “ba”, referindo-se à ideia de grupo. Nos registros históricos, a presença desse grupo étnico originou-se em Camarões, estendendo-se para outros locais do continente africano a partir de 500 a.C. Ao longo desse percurso, os bantu foram desenvolvendo habilidades para a sua sobrevivência, exercendo inúmeras atividades econômicas, como a agricultura, a criação de gado e a metalurgia. As práticas de agricultura permitiram que grupos bantu permanecessem por períodos mais longos em diferentes locais, e em cada território esses grupos construíram códigos culturais e signos linguísticos. Ao chegar em Angola, os povos bantu se espalharam por diversas áreas, estabelecendo-se, sobretudo, na costa atlântica.

Essa localização foi o que motivou um contato maior com os portugueses, desde o início da colonização, o que resultou no comércio de pessoas dessa etnia. Com a escravização dos africanos, a chegada dos povos bantu no território brasileiro ocorreu por volta de 1580. Tais grupos de escravizados eram traficados por diversos locais, como os portos de Ajudá, Costa da Mina e Luanda, em Angola. 75% do contingente de africanos, vindos de inúmeras regiões, era composto por povos bantu (Souza, 2023).

A chegada forçada de um número considerável de africanos num território que já era ocupado por povos indígenas os levou a reinventar os seus modos de ser e de estar no mundo, sobretudo no que diz respeito às línguas faladas, já que, além do português, eram faladas nas terras brasileiras cerca de 1.175 línguas indígenas. No Brasil, na medida em que as políticas educacionais da coroa de Portugal impunham a língua portuguesa sobre os nativos e sobre os escravizados (D’Angelis, 2014), as línguas indígenas e africanas passaram a vivenciar processos similares de opressão e proibição no Brasil. De acordo com os estudos feitos por Marco Aurélio Moura dos Santos (2022), o período da ditadura foi um dos momentos mais emblemáticos dessas tensões, no que se refere à imposição linguística, momento em que foram construídos reformatórios de repressão como punição para os falantes das línguas nativas. Esse tipo de opressão se manteve sistematicamente durante séculos, e, no que tange aos descendentes dos povos africanos bantu, ultrapassou a questão linguística, ao passo em que se buscou efetivamente a destruição de sua cultura e, sobretudo, de sua religião.

Deste modo, a presença dos povos bantu no Brasil vincula-se, desde sempre, a movimentos de resistência. Os mesmos compreendem desde territórios de luta, como os quilombos, até a constituição dos terreiros de candomblé chamados vulgarmente de macumbas (Munanga, 2023). O terreiro de candomblé foi e ainda é um dos lugares de manutenção das origens africanas, sobretudo da língua. Uma multiplicidade de práticas, das quais fazem parte os cânticos, os atos ritualísticos, as interações dos adeptos e a louvação das divindades mostra que a manutenção e o desenvolvimento da cultura bantu só foi possível devido à resistência desses povos em preservar, ao longo dos séculos, as marcas da sua identidade (Castro, 1981).

Candomblé: o espaço de manutenção das línguas bantus

O candomblé é uma manifestação religiosa originária do Brasil. Tem como princípio ser uma prática coletiva, com os seus membros dedicados a cultuar as divindades vindas de diferentes lugares de África. A palavra “candomblé” deriva de língua bantu: kiandombe, em quimbundo, significa rezar, orar, dançar. No Brasil, a palavra foi ressignificada por meio da fundação de uma religião por ex-escravizados (Lopes, 2006).

Para Yeda Castro (1981), o candomblé brasileiro se fundamenta em um modo de ser e estar na sociedade. Ao longo da sua organização, o candomblé foi dividido por diversas nações, com características culturais particulares; neste trabalho, porém, abordaremos apenas o candomblé Congo Angola, criado por falantes de línguas bantu. Os agrupamentos de símbolos e signos construídos por africanos no novo território sofreram algumas mudanças devido à interação com outros povos. Assim, algumas ramificações do candomblé foram extintas ou esquecidas, e as que permaneceram foram divididas em quatro nações: Congo Angola, jeje-nagôs, ijexás e quetu.

Quanto à nação Congo Angola, trata-se da modalidade religiosa em que são faladas as línguas quicongo, quimbundo e Umbundo, pertencentes ao tronco bantu, compreendendo as suas variações linguísticas, a depender dos ritos e cantos de cada casa de santos. Na obra O candomblé bem explicado, organizada por Marcelo Barros (2014), apresentam-se alguns fundamentos essenciais do candomblé no Brasil. Segundo os escritos do autor, as tradições do Congo Angola são formuladas com códigos específicos oriundos da referida nação, e as divindades receberam a nomeação de “inquices”, que é uma derivação de nkisi, que significa “o ser sobrenatural.” As lideranças são chamadas de tatas e mametus, e têm a função de cuidar dos membros do terreiro, bem como dos inquices, que estão materializados nos instrumentos litúrgicos e se manifestam via incorporação nos ritos espirituais. Essas lideranças protegem as memórias dos que vieram antes, os mais velhos. A proteção pode se dar de modos variados, como, por exemplo, por meio da preservação dos seus conselhos ou das imagens que são penduradas nas paredes das casas de santo.

A comunidade é um dos elementos fundamentais da religião, pois, sem os seus adeptos não é possível conservar as heranças dos povos bantu ou preservar as práticas de adoração das divindades. Geralmente, no candomblé, os membros são caracterizados por traços hierárquicos, sendo os mais novos chamados de muzenzas, e os mais velhos de maconatos. O que define essas classificações é o tempo de permanência na casa de santo, assim como os papéis desempenhados nos ritos religiosos, que demandam uma série obrigações litúrgicas, começando com a iniciação e perpassando um longo caminho até a confirmação como o mais velho, o que vem com o reconhecimento de sua comunidade.

Os terreiros, casas de santo ou templos são espaços onde se reúnem todos os elementos significativos para o candomblé, desde os assentamentos dos inquices até a realização dos festejos. Nestes momentos, são praticadas as iniciações e ocorre o compartilhamento dos conhecimentos necessários para aprendizagem dos novos adeptos, como os cantos, as danças e os valores civilizatórios. Dessa forma:

O candomblé é uma religião iniciativa sem fontes de escrituração, o que torna cada casa um universo fechado dependente do sacerdote, cuja voz é autoridade máxima e inquestionável, resultando disso, discrepâncias notáveis entre casas da mesma raiz e da mesma nação. (Adolfo, 2010, p. 2)

O terreiro, portanto, constitui-se como espaço religioso que não tem um regulamento escrito e assinado por seus membros, mas que se transformou em um lugar de saberes e ensinamentos relevantes para preservação das heranças bantu. Os membros dessas comunidades aprendem, por meio das interações religiosas, uma nova língua, a exemplo do quimbundo e do quicongo. O intuito das casas de santo é conservar os rituais litúrgicos da raiz do axé e os patrimônios materiais produzidos ao longo da trajetória dos mais velhos que, muitas vezes, são lideranças que detêm os poderes decisórios.

Para Castro (1981), a reafricanização dos membros pertencentes aos terreiros acontece mesmo distante do continente africano, já que as heranças dos antepassados, manifestando-se em aspectos como a língua, permanecem vivas. A consciência linguística das trocas realizadas nos ritos e nos cânticos faz com que haja uma conexão entre os seres humanos e as divindades, e esse movimento de interação do concreto e do sobrenatural é chamado de força vital.

O autor Rosenilton Oliveira (2019) assimila os terreiros de candomblé como um aglomerado de relações entre a comunidade como um todo, compreendendo as divindades e os iniciados. Deste modo, os terreiros de candomblé são constituídos por práticas de vida fundadas para reconstruir os sentimentos de pertencimento deixados no continente africano. As casas são espaços de reconstrução real das tradições e de preservação do patrimônio material, sendo também, fundamentalmente, lugares de ligação afetiva com a comunidade, sobretudo com as divindades. Tais espaços, portanto, são relevantes para a continuidade dos valores civilizatórios dos povos bantu que, a partir do estado da Bahia, foram se expandindo, ao longo dos anos, para outros estados do Brasil. No caso da designação religiosa da nação Congo Angola, os terreiros que tiveram maior destaque histórico foram o candomblé do Bate Folha, em Salvador, Tumbanci, no Tumba Junçara, e a Casa da Gomeia (Adolfo, 2010). Para compreender melhor a relevância desses terreiros, daremos destaque para as contribuições do Tata Londirá, mais conhecido como Joãozinho da Gomeia, da Casa da Gomeia.

O terreiro Gomeia e seu legado linguístico

Dentre as casas fundadoras do candomblé Congo Angola, mencionaremos como destaque o terreiro do sacerdote Joãozinho da Gomeia, mais conhecido como o rei do candomblé. Optamos por mencioná-lo pelas seguintes razões: a) foi uma das lideranças pioneiras por abrir a casa de santo e mostrar os mistérios do candomblé aos intelectuais; b) foi o primeiro a declarar abertamente a sua orientação sexual, em uma época em que a homossexualidade era mal vista; e c) pelo fato da presente pesquisadora ser neta dessa figura emblemática, tendo aqui, portanto, a possibilidade de homenagear a sua existência.

Na obra de Elizabeth Castelano Gama, intitulada Mulato, Homossexual e Macumbeiro: que rei é este? Trajetória de João Gomeia (1914- 1971), temos um relato sobre a trajetória do ícone do candomblé, que nasceu numa sociedade que o considerava, por uma série de razões, uma contradição. Isto porque a figura de Joãozinho da Gomeia rompeu com as regras sociais impostas, em um tempo de pouca abertura à diversidade: era um “legítimo” caboclo, autodeclarado homoafetivo e praticante do candomblé. Com a ousadia de sua presença, Joãozinho da Gomeia reinventou o candomblé.

Nascido na Bahia, já adolescente aproximou-se das práticas afrorreligiosas, conduzido por sua madrinha, que o levou para ser iniciado por Jubiabá, tornando-se Tata Londirá. A partir daquele momento, o caboclo, até então conhecido como João da Pedra Preta, que realizava milagres de cura de doenças e orientações espirituais, ficou conhecido por todos. Os seus dons espirituais se propagaram, até que a sua casa de santo cresceu exponencialmente, ganhando número considerável de novos adeptos.8 Com o passar do tempo, migrou para o Rio de Janeiro, onde abriu as portas para muitos intelectuais (Mendes, 2014). 5tgv Nesta cidade, circulou por diversas redes midiáticas para apresentar as divindades africanas e denunciou as violências e perseguições religiosas dos representantes do Estado.

A casa fundada pela nação Congo Angola por João da Goméia foi, em suas ausências, dirigida por lideranças femininas, e se destacou por ter as práticas, como ritos, cantos e atos festivos realizados em língua bantu. Com a morte de Jubiabá, seu pai de santo, foi necessário “tirar a mão de vumbi”, rito de desligamento para com o antigo sucessor. Para fazer isso, procurou a Menininha do Gantois, da Nação Yorubá, e foi neste momento que se deram alguns empréstimos da nação queto em uma casa Congo Angola, fundando-se, assim, uma nova configuração de terreiro. João da Gomeia morreu em 1971, e seu enterro foi marcado pela presença de uma multidão de pessoas, ficando conhecido como “o Funeral do Rei Negro” (Gama, 2012).

A trajetória de João da Gomeia acentua a nossa compreensão de que os códigos étnicos dos povos africanos foram fundados com os empréstimos de outras nações. De qualquer forma, a língua dos terreiros de candomblé, muitas vezes, ainda que não se apresente como totalmente pura, serve como ponte de acesso de ligação entre os seres humanos e as divindades, e, ao mesmo tempo, como uma marca definidora da nação de cada grupo.

Posto isto, a comunicação definirá o pertencimento do coletivo. Por meio da simples troca de palavras das línguas africanas entre os irmãos de santos, há uma conscientização quanto à preservação cultural. Nesse sentido, a “consciência linguística reflete-se também ao nível da linguagem de comunicação usual dos membros e adeptos dos candomblés na atitude habitualmente tomada por qualquer um deles diante de uma palavra, uma expressão ou um cântico.” (Castro, 1981, p. 75).

A presença das línguas bantus e os terreiros

O tráfico de escravizados resultou em uma mistura étnica de africanos vindos para as Américas. No Brasil, tivemos a predominância dos nagôs iorubás, e, posteriormente, dos bantu, entre outras etnias. O impacto da presença dos iorubás no Brasil foi significativo, a ponto de instaurar solidamente códigos civilizatórios e religiosos nas terras brasileiras, gerando uma perspectiva cultural definida como nagocentrismo (Castro, 1981). Por outro lado, a presença bantu concentrou-se nos estados do Recife, Rio de Janeiro, Bahia e Maranhão. Grande parte dos falantes das línguas umbundo, quimbundo, quicongo, tchokwe e ganguela veio de diferentes locais, como a República Democrática do Congo, e dos antigos reinos do Congo e Ndongo, localizados atualmente em Angola (Petter, 2019). Os povos bantu fundaram um pedaço de África no Brasil e, pouco a pouco, foram incorporando as línguas faladas pelos habitantes brasileiros. Tal junção linguística proporcionou uma nova língua, o português brasileiro.

Para Emilio Bonvini (2002), as línguas africanas, em especial as bantu, foram integradas ao português por meio de interações cotidianas entre os indivíduos, de modo gradual. Para esse fenômeno, alguns estudiosos utilizam o termo “influência”. Mas, esse termo entrou em desuso por trazer uma conotação de que existe um grupo mais poderoso do que o outro, capaz de influenciá-lo. Bonvini propõe a noção de “empréstimo”, termo que aborda o contato de uma língua com uma outra – ou outras – a partir de uma perspectiva horizontal. Os empréstimos acontecem de modo variado, com alteração de tempo, território ou por meio de fenômenos sociais deslocados do fluxo maciço de indivíduos. Uma das práticas corriqueiras dessas relações são as transmissões orais, com as pronúncias sendo definidas por percepções individuais e coletivas. No caso do território brasileiro, temos a junção de diversas línguas, em uma conjuntura linguística formada pelas pronúncias dos povos originários, dos africanos vindos de diferentes localidades do seu continente original, e dos portugueses, que colonizaram o território e implementaram a língua oficial, o português.

É preciso acrescentar, também, no caso do Brasil, que essa bilateralidade de contatos « línguas africanas – português » operou-se de forma simultânea e conjunta, embora em graus diversos no tempo e no espaço, paralelamente a outros contatos linguísticos, dos quais o principal, mas não exclusivo, é manifestamente o que se operou entre as línguas ameríndias, tupi-guarani em particular, e o português. (Bonvini, 2022, p. 148)

Os empréstimos e as alterações das palavras, no decorrer dessas trocas culturais, podem ser evidenciados, sobretudo, no nosso cotidiano, observando-se a presença de palavras de origem bantu, como “samba”, “bunda”, “dengo”, “cafuné”, entre outras. (Lopes, 2006). Tais palavras certificam a presença bantu no Brasil, e, ao mesmo tempo, revelam resquícios dos traços de uma linguagem significativa para a relação dos descendentes e das futuras gerações para com os povos escravizados.

Para Yeda de Castro (2016), os empréstimos e alterações lexicais não impediram que a presença do português originário dos colonos se manifestasse como hegemônica em solo brasileiro, até porque a implementação da língua portuguesa nas políticas educacionais sedimentou a continuidade da língua. Todavia, o negroafricano ressignificou o modo de ser e estar no novo território, inclusive por meio da língua. O Brasil teceu uma nova configuração linguística em relação aos países lusófonos, “resultado de um movimento implícito de africanização do português europeu arcaico e regional, e, em sentido inverso, de aportuguesamento do negroafricano sobre uma base indígena preexistente e geograficamente mais localizada no Brasil.” (Castro, 2016, p. 22).

Para Lélia Gonzalez (1988), as contribuições dos povos escravizados se estendem para além do trabalho braçal, na medida em que estão presentes nas contribuições dos aportes linguísticos que definiram um jeito específico de falar dos descendentes dos negros que aqui chegaram, evidenciando-se para além das pronúncias de palavras, e se configurando em seus modos de construção, como, por exemplo, na ausência de concordância, ou na forma de utilização do plural, como em “os menino”, “as folha” dentre outros distintivos percebidos nas conversas informais. O pretoguês, conforme pensado pela autora, é marcado por modificações da língua portuguesa devido à presença das línguas bantu, o que se verifica como a construção de uma marca dos povos bantu na sociedade brasileira.

(...) Aquilo que chamo de ‘pretoguês’ e que nada mais é do que marca de africanização no português falado no Brasil (...). O caráter tonal e rítmico das línguas africanas trazidas para o novo mundo, além da ausência de certas consoantes, como o L ou R, por exemplo (...) apontam para um aspecto pouco explorado da influência negra na formação histórico-cultural do continente como um todo”. (Gonzalez, 1988, p. 70)

Desse modo, o pretoguês pode ser compreendido como uma das formas de resistência de um povo dentro de um território que não é originalmente seu. A presença dos escravizados no continente americano fez com que eles projetassem estratégias de manutenção de determinados códigos para a preservação das suas existências. Como debate, o autor Kabenguele Munanga (1996) argumenta que o pertencimento dos indivíduos em determinados territórios se dá por diferentes fatores, sendo esses: os valores, as crenças, os códigos linguísticos e civilizatórios. Com isso, a língua com que o indivíduo cresceu torna-se, para além de marcador de vínculo afetivo, instrumento de partilha e autoexpressão, desde a primeira infância, e ao mesmo tempo de uma relação não transcrita entre outro membro do território nacional.

Sendo assim, a língua tem uma dimensão subjetiva e coletiva, por definir o pertencimento de um grupo a um território, tendo como característica fundamental a capacidade de fluidez, isto é, de se transformar no tempo, independentemente dos desejos individuais, processo que revela a constituição de uma mutação linguística, repleta de variações e variantes elaboradas pelos seus falantes no decorrer das interações sociais.

A língua é um sistema de signos- um conjunto de unidades que se relacionam organizadamente dentro de um todo. É a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, não pode ser modificada pelo falante e obedece às leis do contrato social estabelecido pelos membros da sociedade. (Petter, 2007, p. 174)

Assim, a língua é um elemento vivo, com suas variações surgindo em diferentes locais, abrangendo desde transformações no território do estado até um espaço menor, como o terreiro de candomblé, espaço que contribui de forma efetiva para o compartilhamento dos códigos sociais e linguísticos. No caso do candomblé Congo Angola, verifica-se a presença, em alguns terreiros, das línguas bantu (quimbundo, quicongo e umbundo) demarcada nas rezas, nas cantigas e nos tratamentos entre os pares, práticas que se constroem como garantidoras de que a memória dos antepassados não será esquecida no cultivo diário. Por se configurarem como constituintes da organização humana ao longo dos anos, essas práticas se modificam, com os empréstimos linguísticos de outras nações se engendrando no cotidiano falado, seja por meio de palavras utilizadas em contexto diário ou em ritual litúrgico (Castro, 2016). Um exemplo são alguns terreiros que incorporam determinados signos e símbolos oriundos de outras etnias, como é o caso dos empréstimos observados nos terreiros de Congo Angola em relação ao queto. De qualquer forma, os terreiros de candomblé são mutáveis, mas permanecem como símbolos significativos da África no solo brasileiro.

Considerações finais

As investigações sobre os terreiros de candomblé do Congo Angola são iniciais e, portanto, carecem de maior aprofundamento investigativo, demandando, por exemplo, o aporte de métodos qualitativos, como realização de entrevistas e visitação aos terreiros. Contudo, neste trabalho, foi possível delinear o entendimento de que a presença dos povos bantu foi significativa na constituição dos códigos linguísticos brasileiros, e possibilitou a instauração de um espaço de resistência, conquistado por meio de práticas culturais e linguísticas preservadas pelos terreiros de candomblé Congo Angola e de outras nações. Os empréstimos linguísticos e a integração entre nações do candomblé oferecem aos descendentes de escravizados e, consequentemente, à toda a sociedade brasileira, a possibilidade de reconhecimento de alguns resquícios do continente africano como elementos formadores de identidade, com os símbolos das tradições litúrgicas, por exemplo, revelando-se como partícipes fundamentais para a construção de um espaço viável de conexão com a ancestralidade tradicional.

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1 Mestranda da Faculdade de Educação (FEUSP). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8029140840155032. E-mail: [email protected]