AUTOAGRESSÃO COM SANGRIA AUTOINFLIGIDA EM TRANSTORNO DE PERSONALIDADE DO CLUSTER B: UM RELATO DE CASO
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.14560254
Mariana Soares Passos
Beatriz Maria França Vicentim
Danielle Kriechle
Gustavo Araujo Spera
RESUMO
Este relato de caso descreve a trajetória clínica de uma paciente de 23 anos, com características sugestivas de transtornos de personalidade do Cluster B, e que traz várias características comuns aos mesmos, o que torna o diagnóstico uma tarefa muitas vezes difícil. A paciente apresentou histórico de depressão, tentativas de suicídio, automutilação e comportamento de sangria autoinfligida, além de dificuldades interpessoais e busca constante por atenção. Durante internação hospitalar, foram identificadas práticas autodestrutivas, como a coleta de sangue autoinfligido, e comportamento obsessivo sobre o ato. A avaliação diagnóstica foi desafiadora devido à sobreposição de sintomas com outros transtornos de personalidade e comorbidades, como transtornos de humor e comportamentais. O tratamento requer uma abordagem terapêutica integrativa, considerando intervenções como a Terapia Comportamental Dialética (TCD) e Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC). A complexidade desse caso ressalta a importância de uma avaliação longitudinal cuidadosa e de estratégias terapêuticas adaptadas às necessidades individuais, a fim de melhorar o prognóstico e a qualidade de vida da paciente.
Palavras-chave: Transtorno de personalidade. cluster B.
ABSTRACT
This case report describes the clinical trajectory of a 23-year-old patient with characteristics suggestive of Cluster B personality disorders, displaying several common features that often make the diagnosis challenging. The patient had a history of depression, suicide attempts, self-mutilation, and self-inflicted bleeding behavior, as well as interpersonal difficulties and a constant need for attention. During her hospitalization, self-destructive practices such as the collection of self-inflicted blood were identified, along with obsessive behavior related to the act. The diagnostic assessment was challenging due to the overlap of symptoms with other personality disorders and comorbidities, such as mood and behavioral disorders. Treatment requires an integrative therapeutic approach, considering interventions such as Dialectical Behavior Therapy (DBT) and Cognitive Behavioral Therapy (CBT). The complexity of this case highlights the importance of careful longitudinal evaluation and therapeutic strategies tailored to the patient's individual needs, with the aim of improving prognosis and quality of life.
Keywords: Personality disorder. Cluster B.
1 INTRODUÇÃO
Os transtornos de personalidade do Cluster B são caracterizados por padrões persistentes de comportamento, cognição e interação social que frequentemente causam sofrimento significativo ao indivíduo e aos outros ao seu redor. Esses transtornos são frequentemente significativo ao indivíduo e aos outros ao seu redor. Esses transtornos são frequentemente difíceis de diferenciar, uma vez que compartilham características comuns, como instabilidade emocional, impulsividade e dificuldades em estabelecer e manter relacionamentos saudáveis.
A sobreposição de sintomas e a variação nas apresentações clínicas tornam o diagnóstico uma tarefa complexa para os profissionais da saúde mental. Além disso, muitas vezes esses transtornos coexistem com outros problemas psiquiátricos, como depressão ou abuso de substâncias, o que pode complicar ainda mais a avaliação. Este relato de caso tem como objetivo explorar a trajetória clínica de um paciente que apresenta características de transtornos de personalidade do Cluster B, mostrando as dificuldades enfrentadas no processo diagnóstico e as implicações terapêuticas.
2 RELATO DE CASO
M., 23 anos, solteira, sem filhos ensino, superior incompleto. Em 2021 a paciente iniciou acompanhamento em Centro de Atenção Psicossocial por queixa de tristeza de longa data, irritabilidade e ideação suicida recorrente, referia “sentir raiva de tudo e de todos”. Anteriormente já havia feito acompanhamento com diversos psiquiatras e feito uso de diversas medicações, segundo a mesma sem resposta. Paciente também apresentava episódios compatíveis com hipomania com duração de cerca de 1 ano, intercalados com episódios depressivos de mesma extensão.
Tinha histórico de violência sexual cometida por familiar próximo quando a mesma tinha 13 anos de idade, e de violência física por parte de sua irmã mais velha. Mesmo em acompanhamento psiquiátrico e psicoterápico, em 2022 M. realizou tentativa de autoextermínio por ingestão de psicofármacos. Em sua admissão no hospital geral, foram solicitados exames laboratoriais que evidenciaram um quadro de anemia importante, com hemoglobina de 7,3 g/dL. Durante seu atendimento pela equipe da psiquiatria, ao ser comunicada sobre a alteração laboratorial, relatou que realizava sangrias autoinfligidas, com catéter próprio para o procedimento, e que os vídeos eram publicados em suas redes sociais, juntamente com fotos e vídeos sensuais, os quais rendiam-lhe elogios dos seus seguidores. O sangue retirado era guardado em potes de grandes volumes no seu quarto. M justificou a prática dizendo que sentia prazer e alívio durante o procedimento, principalmente em momentos de raiva. Também referiu pensamentos persistentes e obsessivos sobre realizar sangrias. A mãe da paciente confirmou a existência de potes de sangue no quarto da filha, que episódios de automutilação ocorrem desde os 12 anos e a realização de sangrias desde os 21 anos. Trouxe também o interesse da paciente em temas mórbidos e de terror desde os 6 anos de idade, e que M. gostava de brincar fingindo que estava morta e que se banhava de sangue.
A dificuldade da mesma em manter relações interpessoais também foi citada. Durante a internação de 11 dias em leito hospitalar psiquiátrico, percebeu-se a carência afetiva da paciente, necessitada de receber atenção e tendo atitude hostil quando era examinada por menos de 2 médicos durante estadia.
3 DISCUSSÃO
O caso descrito acima traz vários fatores que levam à hipótese diagnóstica de um Transtorno de Personalidade do Cluster B.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – Quinta Edição (DSM-5) divide os 10 transtornos de personalidade em grupos; este estudo é focado no Cluster B, que inclui os transtornos de personalidade antissocial, borderline, histriônico e narcisista. Indivíduos com um transtorno de personalidade do Cluster B geralmente se apresentam como ‘dramáticos, emocionais ou erráticos’ Os transtornos de personalidade do Cluster B são os menos prevalentes entre os clusters, quando comparados com o Cluster A (5,7%) e o Cluster C (6,0%).
A compreensão desses transtornos é essencial não apenas para a definição precisa de estratégias de tratamento, mas também para o manejo adequado das relações interpessoais e o fortalecimento da saúde mental de indivíduos afetados. Os transtornos de personalidade do Cluster B são frequentemente associados a uma predominância de emoções intensas e reações comportamentais impulsivas, o que torna a convivência com esses indivíduos desafiadora tanto para os próprios pacientes quanto para as pessoas ao seu redor. Cada transtorno apresenta suas particularidades, mas existe uma sobreposição considerável de características, como dificuldade de regulação emocional, instabilidade interpessoal e distorções cognitivas.
O Transtorno de Personalidade Borderline é o transtorno de personalidade do Cluster B mais estudado e diagnosticado. Caracteriza-se por uma instabilidade emocional marcada, uma identidade fragmentada, relacionamentos interpessoais intensos e uma profunda sensação de vazio. A impulsividade, frequentemente manifestada em comportamentos autolesivos, abuso de substâncias ou comportamentos sexuais de risco, é uma das principais manifestações clínicas. A instabilidade emocional do paciente com Transtorno de personalidade borderline é comumente desencadeada por situações de rejeição, abandono real ou percebido, e por mudanças rápidas no contexto relacional. A dificuldade em estabelecer uma identidade estável também é central no transtorno, resultando em um sofrimento psicológico significativo e em uma busca constante por validação externa (Linehan, 1993).
Figura 1 - Critérios Diagnósticos para Transtornos de Personalidade
O Transtorno de Personalidade Antissocial é caracterizado pela violação dos direitos dos outros, falta de empatia, manipulação e comportamento irresponsável. Indivíduos com Transtrono de personalidade antisocial tendem a demonstrar uma habilidade notável para enganar, explorar e manipular aqueles ao seu redor. A impulsividade também é um traço comum, mas frequentemente se manifesta de maneira mais agressiva ou destrutiva, em contraste com a vulnerabilidade emocional observada no Transtorno de personalidade borderline. A falta de remorso após comportamentos prejudiciais a outros e o desprezo pelas normas sociais são aspectos que tornam o diagnóstico desse transtorno particularmente relevante em contextos legais e forenses.
O Transtorno de Personalidade Histriônica é caracterizado por uma necessidade excessiva de atenção e aprovação dos outros. Indivíduos com Transtorno de personalidade histriônica frequentemente demonstram comportamentos teatrais, exagerando emoções e dramatizando situações para atrair a atenção. A instabilidade nas relações interpessoais é uma consequência da necessidade constante de ser o centro das atenções, e a insatisfação é comum quando essa necessidade não é atendida. Em muitos casos, a busca por validação externa é tão intensa que pode levar a uma dependência excessiva dos outros, resultando em relacionamentos superficiais e frustração emocional.
O Transtorno de Personalidade Narcisista é marcado por um senso grandioso de importância, necessidade de admiração e falta de empatia. Indivíduos com Transtorno de personalidade narcisista tendem a se enxergar como superiores aos outros, a buscar admiração constante e a demonstrar dificuldade em lidar com críticas ou fracassos. A fragilidade emocional por trás da fachada grandiosa é uma característica importante, sendo que as reações a críticas podem ser de raiva, desdém ou desvalorização do outro. Embora muitas vezes pareçam confiantes, indivíduos com TPN podem ser profundamente vulneráveis à rejeição ou ao fracasso.
Figura 2 - Critérios Diagnósticos para Transtornos de Personalidade com Instabilidade Emocional
Figura 3 - Critérios Diagnósticos para Transtornos de Personalidade Histriônica
A definição precisa de transtornos de personalidade do Cluster B é um desafio, principalmente devido à sobreposição de sintomas entre os diferentes transtornos e à variação nas apresentações clínicas. Por exemplo, a impulsividade observada no Transtorno de personalidade borderline pode ser confundida com a agressividade observada no Transtorno de personalidade antisocial ou com a busca por atenção do Transtorno de personalidade histriônica. Além disso, os critérios diagnósticos frequentemente dependem de uma avaliação longitudinal, uma vez que os padrões de comportamento devem ser persistentes ao longo do tempo e não ocasionais. Isso exige uma avaliação clínica aprofundada, que considere a história do paciente, seus relacionamentos interpessoais e suas reações emocionais em diferentes contextos.
Outro desafio relevante é a comorbidade entre transtornos de personalidade. Estudos indicam que indivíduos com transtornos de personalidade do Cluster B frequentemente apresentam diagnósticos adicionais, como transtornos de humor, ansiedade e abuso de substâncias. Dentre estes citados, destaca-se o Transtorno Afetivo Bipolar, diagnóstico também apresentado pela paciente do caso.
A comorbidade entre o Transtorno de Personalidade Cluster B e o Transtorno Afetivo Bipolar tem atraído crescente atenção na pesquisa psiquiátrica devido à complexidade das interações entre esses dois quadros psicopatológicos, que frequentemente se manifestam em padrões de comportamento e sintomas sobrepostos. Dentre os Transtornos de Personalidade do Clister B, o Transtorno de Personalidade Borderline é o mais frequentemente comórbido com o Transtorno Afetivo Bipolar. Embora esses dois transtornos compartilhem algumas características, como os períodos de intensa irritabilidade e os problemas no controle emocional, existem diferenças importantes, especialmente na duração e na constância dos sintomas. Nos dois Transtornos há uma instabilidade de humor significativa, porém, no Transtorno de Personalidade Borderline, as alterações emocionais podem ocorrer mais rapidamente, dentro de um único dia, enquanto no Transtorno Afetivo Bipolar, essas flutuações geralmente ocorrem em uma escala temporal mais ampla, com episódios que podem durar semanas ou meses. Ambas as condições envolvem comportamentos impulsivos, como abuso de substâncias, comportamentos suicidas ou autolesivos no Transtorno de Personalidade Borderline, e comportamentos imprudentes ou excessivos durante os episódios maníacos no Transtorno Afetivo Bipolar. A impulsividade no Transtorno de Personalidade Borderline tende a ser mais crônica e relacionada à dinâmica emocional e interpessoal, enquanto no Transtorno Afetivo Bipolar, ela é frequentemente associada aos episódios maníacos. Há ainda a sensação de identidade instável frequentemente experimentada por indivíduos com Transtorno de Personalidade Borderloine, com flutuações nas percepções de si mesmos e de seus relacionamentos interpessoais. No Transtorno Afetivo Bipolar, as flutuações de identidade podem ser mais raras e ocorrer principalmente durante episódios depressivos ou maníacos.
A comorbidade pode dificultar o diagnóstico e a escolha de intervenções adequadas, uma vez que sintomas de outros transtornos podem mascarar ou amplificar os sinais típicos dos transtornos de personalidade. Nesse sentido, a presença de comorbidades exige uma abordagem terapêutica mais abrangente, que trate não apenas o transtorno de personalidade, mas também os transtornos coocorrentes.
O tratamento dos transtornos de personalidade do Cluster B apresenta desafios significativos, uma vez que os comportamentos disfuncionais e as distorções cognitivas profundas dificultam a adesão ao tratamento e a colaboração com os profissionais de saúde mental. A resistência ao tratamento é uma característica comum, especialmente em transtornos como o Transtorno de personalidade narcisista, onde a negação das dificuldades pessoais e a grandiosidade podem tornar o paciente relutante em reconhecer a necessidade de ajuda.
A Terapia Comportamental Dialética, desenvolvida por Marsha Linehan, tem se mostrado particularmente eficaz para o tratamento do Transtorno de personalidade borderline. A Terapia Comportamental Dialética combina técnicas de aceitação com abordagens comportamentais para ajudar os pacientes a lidarem com suas emoções intensas, a tolerarem o estresse e a desenvolverem habilidades sociais mais adaptativas. O foco da Terapia Comportamental Dialética é aumentar a capacidade de regulação emocional e reduzir comportamentos impulsivos e autodestrutivos, como o cutting.
A Terapia Cognitivo-Comportamental é frequentemente utilizada no tratamento de transtornos de personalidade do Cluster B, especialmente em transtornos como o Transtorno de personalidade narcisista e o Transtorno de personalidade antisocial. A Terapia Cognitivo Comportamental se concentra na identificação e modificação das distorções cognitivas que alimentam a percepção grandiosa ou antissocial dos indivíduos. A reestruturação cognitiva, que visa ajudar os pacientes a desenvolverem uma visão mais realista de si mesmos e dos outros, é um componente essencial da Terapia Cognitvo Comportamental.
Em indivíduos com transtornos como o Transtorno de personalidade histriônica, que podem ter uma história de trauma emocional ou experiências de negligência, a psicoterapia psicodinâmica pode ser útil. Essa abordagem busca explorar as causas subjacentes dos comportamentos e emoções disfuncionais, abordando conflitos internos e dinâmicas familiares que moldaram a identidade e os padrões relacionais do paciente.
4 CONCLUSÃO
Os transtornos de personalidade do Cluster B representam um grupo complexo e heterogêneo de condições psiquiátricas, caracterizadas por padrões de comportamento impulsivo, instável e emocionalmente carregado. O diagnóstico preciso e o manejo eficaz desses transtornos exigem uma compreensão profunda das manifestações clínicas, das comorbidades e dos desafios específicos de cada transtorno. Embora os tratamentos psicoterapêuticos, como a Terapia Comportamental Dialética, a Terapia Cognitivo-Comportamental e a Psicoterapia Psicodinâmica, tenham mostrado eficácia, a resistência ao tratamento e as dificuldades interpessoais são obstáculos significativos. A pesquisa contínua sobre esses transtornos, assim como o desenvolvimento de intervenções mais adaptativas, são cruciais para melhorar o prognóstico dos indivíduos afetados e para a integração de abordagens terapêuticas mais inclusivas e eficazes.
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¹ Médica residente em psiquiatria pela Fundação Leonor Barros de Camargo - HAOC; Graduada pelo Centro Universitário de Maringá - UniCesumar - [email protected]
² Discente do curso de Medicina – Universidade Max Planck – UNIMAX - [email protected]
³ Discente do curso de Medicina – Universidade Max Planck – UNIMAX [email protected]
⁴ Discente do curso de Medicina – Universidade Max Planck – UNIMAX - [email protected]