AUTO EMASCULAÇÃO EM SUSTO PSICÓTICO INDUZIDO POR SUBSTÂNCIA PSICOATIVA: UM RELATO DE CASO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.14563544

Mariana Soares Passos¹
Beatriz Maria França Vicentim²
Danielle Kriechle³
Gustavo Araujo Spera⁴

RESUMO
Este relato de caso tem por objetivo descrever a trajetória de um paciente, masculino, 45 anos, que em meio a um surto psicótico após uso ininterrupto de 20 pedras de crack durante período de 20 dias fez a amputação traumática total do pênis e a bolsa escrotal. Em se tratando de um paciente com um histórico complexo de abuso de substâncias, heteroagressividade, comportamento manipulador, múltiplos diagnósticos como: esquizofrenia, atraso mental, transtorno afetivo bipolar, transtorno de personalidade e além de diversas internações prévias. Em vigência de um surto psicótico com comportamento de risco, o primeiro manejo foi a contenção, internação e estabilização clínica do quadro, e posteriormente, internado voluntariamente em clínica psiquiátrica para tratamento continuado. Em se tratando de um paciente cujo tratamento requer esforços de múltiplos profissionais além do próprio paciente para a terapia adequada e melhoria da qualidade de vida, este caso revela características específicas de um paciente com transtorno de personalidade antissocial que apresentou um surto psicótico induzido por crack, seguido da emasculação em fase aguda e seu manejo.
Palavras-chave: Emasculação. Surto psicótico induzido por substâncias. Transtorno de personalidade antissocial.

ABSTRACT
This case report aims to describe the trajectory of a 45-year-old male patient who, during a psychotic episode following continuous crack use for 20 days, performed a traumatic amputation of his penis and scrotum. The patient had a complex history of substance abuse, heteroaggression, manipulative behaviour, and multiple diagnoses including schizophrenia, intellectual disability, bipolar affective disorder, personality disorder, and several prior hospitalizations. During a psychotic episode with risky behavior, the first approach was containment, hospitalization, and clinical stabilization of his condition. He was later voluntarily admitted to a psychiatric clinic for treatment. This case, involving a patient whose treatment requires the efforts of multiple professionals along with the patient's own participation reveals specific characteristics of a patient with antisocial personality disorder who experienced a psychotic episode induced by crack, followed by emasculation in the acute phase and its management.
Keywords: Emasculation. Substance-induced psychotic episode. Antisocial personality disorder.

1 INTRODUÇÃO

A automutilação pode ser definida como aniquilação de tecidos orgânicos, sem a intenção suicida associada à lesão provocada em questão em si. Estas podem variar desde cortes superficiais, até lesões mais profundas, que podem resultar na consequente amputação de membros; por muitas vezes sendo tal resultado o objetivo inicial do praticante.

A auto emasculação em si, se refere a retirada dos órgãos genitais masculinos externos, pelo próprio indivíduo. Podemos dizer que as raízes desse ato ultrapassam pelo menos cerca de dois mil anos, tendo em vista que, na Bíblia, no livro de Matheus, há relatos de que essa forma de automutilação já era praticada em um contexto religioso, especificamente. Também existem relatos médicos dessa prática datados do início da era moderna na Inglaterra, o que traz que auto emasculação foi e é um ato que transcende barreiras geográficas, culturais e cronológicas; sendo que o indivíduo pode trazer significações e ter motivações diferentes para esta.

Durante os séculos mais recentes, a auto emasculação continuou sendo praticada ainda de forma religiosa ou cultural, mas sua maior prevalência foi constatada em pacientes psicóticos; nos quais possuem algum tipo de transtorno de personalidade; ou em pacientes com disforia de gênero.

O uso de substancias psicoativas (SPAs) também apresenta um contexto histórico-cultural extenso, sendo uma tarefa árdua precisar o exato momento que o emprego destas para rituais religiosos, tratamentos medicinais e uso recreativo tiveram início. Entretanto, sabe-se que atualmente que o uso de algumas substancias estão diretamente relacionadas com o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos.

Devido ao desbalanço dopaminérgico em diversas áreas do cérebro substancias estimulantes como a cocaína e o crack predispõe ao desenvolvimento agudo e por vezes crônico de transtornos psicóticos, associados a vulnerabilidade e predisposição individual o desbalanço ocorre em áreas especificas responsáveis por surgimento de sintomas clássicos como a mesolimbica responsável pelo surgimento de sintomas positivos como alucinações e delírios, a área do córtex pré-frontal ventromedial responsável por sintomas afetivos, o córtex mesocortical e o nucleus accumbens responsáveis pelos sintomas negativos como o desinteresse social, baixo autocuidado, baixo contato visual e isolamento, córtex orbitofrontal e amigdala responsáveis por sintomas agressivos verbal ou física e córtex pré-frontal dorsolateral responsável por sintomas cognitivos.

No que tange aos transtornos de personalidade, o início da construção do que seriam estes e as raízes do que seria um indivíduo focado em ganhos próprios e com pouca empatia teve seu começo no século XVIII. Philippe Pinel (1745-1826) foi um médico que revolucionou a área da saúde mental, tanto com a construção de conceitos como no tratamento mais brando pela época em relação aos seus pacientes. Foi ele quem introduziu o termo de “mania sem delírio”, se referindo aos pacientes que tinha, os quais mesmo tendo comportamentos que prejudicam a si mesmos ou a terceiros, não eram acompanhados por quadros delirantes.

O conceito da psicopatia em si, nasceu em 1941, no livro “A máscara da sanidade”, escrito por Harvey Cleckley. Tal foi revolucionário, pois separava os comportamentos de pessoas com transtorno de personalidade antissocial de criminosos, e guia o conceito que se tem até hoje sobre os transtornos de personalidade.

2 RELATO DE CASO

E. 45 anos, masculino, casado, 8 filhos. Ensino fundamental incompleto, trabalhando como mestre de obras. Possui 7 internações psiquiátricas prévias. Histórico na família de tio sendo usuário de substancias psicoativas e de irmão com transtorno psiquiátrico não especificado. Apresenta histórico de heteroagressividade verbal com mãe, agressividade física e verbal com ex-esposa, abuso contra animais na infância e comportamento manipulador. Além de serem relatados episódios de destruição da mobília da sua casa em surtos de frangofilia devido a uso de substancias psicoativas, iniciou um incêndio em pequeno comércio após ter furtado o mesmo, um ato pelo qual relata se orgulhar. Também há a suspeita de abuso sexual com a filha, devido a denúncias do conselho tutelar. Relata episódios prévios de convulsões que iniciaram no primeiro ano de vida, e possui histórico de atraso mental, esquizofrenia e abuso de substâncias psicoativas na família. Já havia sido diagnosticado previamente com transtorno afetivo bipolar. Fazia uso de crack desde os 25 anos, geralmente associado a comportamentos sexuais compulsivos e de risco. Em 29.11.2021 apresentou surto psicótico após uso de crack, realizando amputação total de pênis e bolsa escrotal com um pedaço de telha quebrada, enquanto estava nu sobre o telhado, chamando a atenção de familiares de vizinhos, que contataram o serviço de urgência. Na data do episódio, havia feito uso de crack ininterruptamente por 20 dias, utilizando cerca de 20 pedras ao dia. Chegou ao pronto socorro contido, desorganizado, com delírios paranóides e alucinações tanto auditivas quanto verbais de comando. Quando entrevistado pela equipe de psiquiatria, no momento em que já estava lúcido, orientado e sem alterações da sensopercepção, relatou ter se arrependido do ato. Depois de 46 dias internado em hospital geral, foi transferido de forma voluntária a instituição psiquiátrica, evoluindo com melhora dos sintomas e recebeu alta médica da instituição em uso de ácido valpróico e levomepromazina. Depois disso, ficou em cuidado continuado em CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas) de sua cidade.

3 DISCUSSÃO

O diagnóstico elencado para o paciente descrito foi de transtorno de personalidade antissocial (TPA) e transtorno psicótico induzido por substancias.

Este segundo se enquadra como um Transtorno por uso de Substâncias (TUS) sendo um estado psicótico necessariamente com sintomas positivos, como alterações da sensopercepção, assim como delírios, resultantes do uso de uma SPA (substancia psicoativa) capaz de produzi-los, durante ou após o uso desta, e que podem perdurar de horas até semanas. Quadro este que impõe um risco grave eminente para o paciente, sendo necessária uma abordagem rápida e eficaz no cuidado do mesmo.

Na revisão de literatura feita por Medeiros, Ribeiro e Trajano (2021), a psicose, mesmo sendo um termo que abrange vários distúrbios, pode ser resumida a algo que gera sintomas psicóticos, principalmente positivos, tais como alucinações e delírios. Mais especificamente, a psicose induzida por substâncias, são a existência desses sintomas, provocados por algum tipo de SPA, podendo esta ser ilícita ou lícita, tais como metanfetamina, ecstasy, LSD, cocaína, crack, cannabis, cannabis sintética, álcool, fenetilina, opioides, ayahuasca, heroína, óxido nítrico, sedativos, entre outras. Apesar de como já citado anteriormente, os sintomas positivos serem mais comuns, podem também existir manifestações de sintomas negativos, como embotamento afetivo e social

Figura 1 - Critérios Diagnósticos para Transtorno por Uso de Estimulantes

Nessa mesma revisão citada, foi realizada um organograma sobre os principais sintomas apresentados pelos pacientes expostos a drogas como cannabis, alucinógenos, cocaína, anfetaminas e álcool; o qual está apresentada a seguir:

Figuras 2 – Principais sintomas psiquiátricos apresentados a cannabis, álcool, alucinógenos, cocaína e anfetaminas

É de suma importância também, diferenciar os sintomas psicoativos advindos do uso de SPAs de um transtorno muitas vezes orgânico ou causado por outro transtorno da classe das psicoses, vale ressaltar que diversas vezes os sintomas se sobrepõem, tornando a diferenciação quase impossível, justamente para tal há a necessidade do acompanhamento a longo prazo, visando a temporalidade e se manutenção de sintomas após um período mínimo de 4 semanas sem uso de SPAs.

No que tange aos transtornos por uso de substâncias (TUS), há de se primeiramente diferenciar clinicamente a apresentação de diversas substancias, no caso descrito, o crack , sendo um derivado da cocaína, há de se atentar a sintomas orgânicos que impõe risco de morte ao paciente, como hipertermia, delirium, convulsões, agitação e síndrome coronariana aguda, após o tratamento especifico a continuidade deste se faz necessária fora do ambiente hospitalar, trazendo novos desafios, como a abordagem familiar e longitudinalidade do tratamento..

O diagnóstico de transtornos da personalidade (TP) apresenta uma grande dificuldade advinda da variabilidade de sintomas e tangenciamento destes dentro de transtornos de um mesmo cluster. É importante pontuar que para tal diagnóstico, é necessária a exclusão de qualquer outro transtorno psiquiátrico de base que poderia causar sintomas parecidos (APA, 2013).

Figura 3 - Critérios Diagnósticos para Transtornos de Personalidade

O transtorno de personalidade antissocial (TPA) segundo o Manual Diagnostico e Estatístico de Transtornos Mentais – Quinta Edição (DSM-V) é um dos 4 transtornos que compõe o cluster B dos transtornos de personalidade, sendo este supracitado marcado especialmente pela dificuldade de empatia por outros indivíduos, desacato a regras e normas, comportamento manipulativo e impulsividade.

Apresentando uma associação importante com abuso de substâncias psicoativas, como é relatado por Louzã e Córdas (2019), cerca de 40% dos portadores de transtorno de personalidade antissocial possuem algum transtorno por uso de substância, sendo um dos transtornos de personalidade com taxas mais altas nesse viés.

Figura 4 - Critérios Diagnósticos para Transtornos de Personalidade Antissocial

Ademais, destaca-se os transtornos comórbidos que por vezes somam-se como agravante ao quadro, sendo comumente episódios depressivos e ansiosos, podendo também apresentar quadros de transtornos alimentares e transtornos conversivos.

Para os transtornos de personalidade o tratamento padrão-ouro são a Terapia Cognitivo Comportamental, Terapia Dialética e Terapia Psicodinâmica. Por tratar-se de uma abordagem a longo prazo, com dificuldades no leque medicamentoso para o tratamento, o paciente muitas vezes requer um olhar mais cuidadoso e aguçado para seu cuidado.

4 CONCLUSÃO

Portanto, o as repercussões do uso abusivo de substâncias estimulantes são diversas, ainda mais associados a outros quadros complexos como os transtornos de personalidade, por fim, gerando um incidente o qual trouxe repercussões graves ao paciente.

A auto lesão genital praticada por E. ocorreu durante um surto psicótico induzido por substâncias, após dias de uso intenso de crack. A personalidade antissocial predispõe a isso, não somente o uso abusivo de substancias psicoativas por se tratar de uma comorbidade comum, como também a própria inserção do indivíduo em situações que predispõe a integridade deste a risco.

A abordagem multifatorial dentro do plano terapêutico do paciente com transtorno de personalidade é algo de suma importância, principalmente em casos comórbidos com outros transtornos. Visto que tratamento completo ao paciente apresenta necessidade de grande cuidado desde sua entrada no serviço de saúde independente de qual este seja, e sua continuidade, ja que ambos os transtornos supracitados apresentam repercussões a longo prazo.

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¹ Médica residente em psiquiatria pela Fundação Leonor Barros de Camargo - HAOC; Graduada pelo Centro Universitário de Maringá - UniCesumar - [email protected]

² Discente do curso de Medicina – Universidade Max Planck – UNIMAX - [email protected]

³ Discente do curso de Medicina – Universidade Max Planck – UNIMAX - [email protected]

⁴ Discente do curso de Medicina – Universidade Max Planck – UNIMAX [email protected]‌