AS COMPRAS GOVERNAMENTAIS DA AGRICULTURA FAMILIAR COMO INSTRUMENTOS DE RECAMPESINIZAÇÃO

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10359968


André Michelato


RESUMO
A partir de 2003 as compras governamentais da agricultura familiar inauguram um novo momento para as políticas públicas para a agricultura familiar e segurança alimentar brasileira, possibilitando novos arranjos e concertações entre o campo e a cidade com a perspectiva de ampliar a produção e o consumo de alimentos, respeitando a cultura alimentar e valorizando o desenvolvimento local. Neste artigo será apresentado como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) impactou em processos de recampesinização, permitindo que a agricultura familiar diminuísse sua relação com tipos de produção e comercialização que reduzem ou anulam a sua autonomia e seu projeto de vida. A partir do PAA, percebe-se que há condições para reverter de certo modo esta depedência por formas de produção e mercado, com vistas a organizar a propriedade a partir do que permite dar maior liberdade e viabilizar um projeto de vida para a agricultura familiar.
Palavras-chave: agricultura familiar; política pública; desenvolvimento rural; programa de aquisição de alimentos.

ABSTRACT
Since 2003, government purchases from family farming have ushered in a new era in public policies for family farming and food security in Brazil, enabling new arrangements and agreements between the countryside and the city with the aim of expanding food production and consumption, respecting food culture and valuing local development. This article will show how the Food Acquisition Programme (PAA) has had an impact on recampesinization processes, allowing family farming to reduce its relationship with types of production and commercialization that reduce or annul its autonomy and life project. With the PAA, it can be seen that there are conditions for reversing this dependence on forms of production and the market to some extent, with a view to organizing the property on the basis of what allows for greater freedom and a viable life project for family farming.
Keywords: family farming; public policy; rural development; food acquisition program.

O debate teórico-conceitual sobre a agricultura familiar e sua perspectiva em caracterizar e permitir o reconhecimento da pequena agricultura enquanto categoria social (com especificidades culturais, econômicas, sociais e políticas) tem sido um esforço de décadas da ciência brasileira e mundial, assim como das organizações e movimentos sociais que lutam pelo seu reconhecimento enquanto um ator social, político e econômico do desenvolvimento.

Ploeg (2008, p. 05) faz um resgate desta categoria social desde a época grega, na qual era representada pelo “homem livre que praticava a agricultura de forma orgulhosa e independente”. Já na tradição romana, o camponês era subordinado, considerado incapaz de controlar seu próprio destino, concepção esta que ainda parece ser bastante presente na cultura moderna e brasileira, seja pelas influências da literatura (“Jeca Tatu”), ou mesmo através do próprio modelo de desenvolvimento que propugna tal ideologia na sociedade.

A agricultura familiar, mesmo que atendida por algumas políticas públicas¹, ainda está relegada ao segundo plano nas ações governamentais.

...por de trás dessa invisibilidade construída, que é amplamente fortalecida pela conotação negativa que a palavra ‘camponês’ tem na linguagem cotidiana, há uma realidade empírica na qual existem muito mais camponeses do que antes. Em todo o mundo, hoje existem cerca de 1,2 bilhão de camponeses (Ecologiste, 2004; Charvet, 2005). ‘Afinal, os pequenos agregados familiares agrícolas ainda constituem cerca de dois quintos da humanidade’. (PLOEG, 2008, p. 06)

No entanto faz-se necessário, antes mesmo de aprofundar este debate, estabelecer a relação e as contradições postas no âmbito da pequena agricultura, que segundo o debate da sociologia rural, os agricultores podem ser categorizados ou subdivididos em alguns tipos e subtipos.

Segundo Lamarche (1998), as formas de reprodução da agricultura familiar podem ser subdividas em quatro diferentes modelos, partindo do princípio de que a organização da produção e do trabalho familiar, assim como a relação da lógica de mercado e a lógica familiar influenciam diretamente nas formas de reprodução social. O autor propõe os seguintes modelos: 1) o modelo empresa; 2) o modelo empresa familiar; 3) o modelo agricultura camponesa ou de subsistência; e 4) o modelo agricultura familiar moderna.

O primeiro modelo, denominado empresa, caracteriza-se principalmente pela função objetiva de gerar lucro e está baseada na forte dependência de insumos e tecnologias e a fraca predominância do trabalho familiar. Neste modelo é factível a presença preponderante da racionalidade instrumental sob a subjetividade, descaracterizando as relações homem-natureza que é sobreposta pela lógica do mercado (LAMARCHE, 1998).

O segundo modelo, empresa familiar, diferencia-se do primeiro no que se refere ao trabalho, pois há uma forte predominância da mão de obra familiar, no entanto possui uma acentuada dependência do exterior e forte relação com a dimensão técnica da produção (LAMARCHE, 1998).

O terceiro modelo, a agricultura camponesa ou de subsistência, caracteriza-se por ter uma predominância das lógicas familiares e pouca dependência do mercado e de tecnologias modernas.

Ressalta-se forte presença de técnicas tradicionais, com objetivo de satisfazer as necessidades familiares de consumo, em detrimento do lucro e da acumulação de capital. Neste modelo, muitas vezes, a opção por manter-se na lógica de produção tradicional, caracteriza-se por ser uma estratégia de autodefesa do agricultor em se proteger do mercado ou mesmo garantir sua identidade enquanto camponês (LAMARCHE, 1998).

Para Mendras (1978),

Toda autonomia das coletividades camponesas desaparece frente à sociedade urbanizada e industrializada, que não pode mais tolerar que em seu seio uma população tão importante se mantenha marginal e conserve sua lógica de produção e de vida. A autarcia econômica, demográfica, social e cultural torna-se incompatível com o desenvolvimento de nossa sociedade. O camponês transforma-se em agricultor, produtor agrícola que é, ao mesmo tempo, ‘empreiteiro’ e ‘trabalhador’, proprietário de seus meios de produção, mas que não utiliza – ou só em pequena escala – mão de obra assalariada (MENDRAS, 1978, p. 13).

O quarto e último modelo é a agricultura familiar moderna, que caracteriza-se, de um lado, pela “busca de uma diminuição constante do papel da família nas relações de produção e, de outro, a busca da maior autonomia possível”(LAMARCHE, 1998, p. 78). Este modelo representa o agricultor familiar que está entre a agricultura tradicional e a moderna, pois ao mesmo tempo em que tenta resguardar a família do trabalho com a utilização de tecnologia moderna, busca manter sua autonomia.

Estas caracterizações não podem ser vistas como tipos puros ou categorias que possam encaixar este ou aquele grupo de agricultores, mas servem como referencial para o debate sobre a reprodução social da agricultura familiar a partir das relações capitalistas.

Assim, a diversidade e a heterogeneidade com que a agricultura familiar se reproduz social, cultural e economicamente faz dela uma categoria que exige aprofundamento conceitual e metodológico para sua compreensão, seja na perspectiva de possibilitar a melhor adequação das políticas públicas a sua realidade, ou mesmo de compreender em que medida a agricultura familiar pode ou não modernizar-se sem perder sua condição de vida e seu projeto coletivo.

Segundo Wanderley (1998, p. 31), a agricultura familiar caracteriza-se pela especificidade na forma como ela é estruturada e organizada internamente, pois “... o produtor familiar é fundamentalmente um proprietário que trabalha. Na verdade, quem trabalha é o agricultor e sua família, e é familiar a propriedade do estabelecimento”. Porém, mais do que um espaço de vida e trabalho, a agricultura familiar tem nesta relação um conjunto de racionalidades que a diferencia de outras categorias sociais. Segundo Wanderley (1998), a forma de reprodução social dos agricultores familiares está ligada direta e proporcionalmente à disponibilidade de força de trabalho e das necessidades de consumo da família e, consequentemente, ao tempo disponível para a realização do trabalho na propriedade.

Assim, a análise e caracterização desta categoria social não se restringe as formas de reprodução interna, mas também, pelas relações externas. Desta forma, o termo agricultura familiar passa a ser uma terminologia, que mais do que uma categoria formalmente reconhecida no âmbito governamental, é uma denominação genérica e que pode ou não representar a diversidade e heterogeneidade da pequena agricultura brasileira.

Importante diferenciar aqui, o que vem a ser agricultura familiar e agricultura familiar camponesa, onde todo agricultor familiar camponês é um agricultor familiar, mas nem todo agricultor familiar é um agricultor familiar camponês.

A noção de campesinato se “instituí” no campo dos estudos rurais, enquanto uma categoria social, defendido e propalado enquanto condição de garantia da reprodução de uma agricultura fundada num modo de vida que respeita e garante o rural enquanto espaço de vida e sociabilidade, e não apenas enquanto espaço de trabalho.

Assim, camponês é uma forma particular de agricultura familiar que tem como características: 1) a produção fundada na policultura – pecuária; 2) a transmissão do conhecimento e do capital material para as futuras gerações; 3) o local enquanto espaço de produção de subjetividade e intersubjetividade, que extrapola as relações familiares e de parentesco; 4) autonomia em relação às relações externas; 5) e à produção de subsistência, mas não enquanto atividade central da produção (WANDERLEY , 1996).

Ploeg (2008) defende a condição camponesa, que fundada na sua condição de agente como característica central, caracteriza-se pela

...(1) luta por autonomia que se realiza em (2) um contexto caracterizado por relações de dependência, marginalização e privações. Essa condição tem como objetivo e se concretiza na (3) criação e desenvolvimento de uma base de recursos auto-controlada e auto-gerenciada, a qual por sua vez permite (4) formas de co-produção entre o homem e a natureza viva que (5) interagem com o mercado, (6) permitem a sobrevivência e perspectivas de futuro e (7) se realimentam na base de recursos e a fortalecem, melhorando o processo de co-produção e fomentando a autonomia e, dessa forma, (8) reduzem a dependência. Dependendo das particularidades da conjuntura sócio econômica dominante, a sobrevivência e o desenvolvimento de uma base de recursos própria poderão ser (9) fortalecidos através de outras atividades não agrícolas. Finalmente, existem (10) padrões de cooperação que regulam e fortalecem essas inter-relações. (PLOEG, 2008, p. 40)

No entanto, esta autonomia só se constitui enquanto uma possibilidade, quando a relação produção-mercado se realiza a partir da realidade social, política e econômica dos camponeses e de um projeto coletivo, e não a partir de relações que estão fundadas na livre concorrência e no livre mercado. 

Já as formas modernas de agricultura familiar, como destaca Lamarche (1998), caracterizam-se principalmente em função da dependência com a racionalidade econômica. A agricultura familiar moderna estará marcada por uma baixa autonomia, pela desestruturação dos conhecimentos tradicionais, pela ressignificação do trabalho familiar e o alto nível de integração a racionalidade econômica.

Como pode ser observado, a questão da autonomia foi e é marcante para a definição e recorte das distintas formas de agricultura familiar, sendo que esta autonomia tem sua relação o funcionamento e organização da propriedade e do trabalho familiar, com as relações externas a sociedade envolvente e as intersubjetividades interpostas no espaço social e político. No entanto, mais do que uma racionalidade econômica e técnica, a autonomia tem correlação direta com o projeto de vida e o projeto coletivo dos agricultores, que buscam na produção, nas relações com o mercado, no espaço local e na subjetivação, formas de reprodução social que lhes garantam estabilidade e reprodução das condições de vida.

Assim, a condição camponesa se afirma quando os agricultores têm um projeto fundado em condições que se estabelecem a partir da lógica interna de seu funcionamento. Projeto este que tem como pressuposto a busca dos agricultores e suas famílias de garantirem sua identidade, sua cultura, de conquistar a qualidade de vida e de trabalho, preservando a identidade e o modo de vida, ao mesmo tempo sendo reconhecidos enquanto sujeitos e atores do processo social, econômico e político.

Portanto, este projeto, de se constituir enquanto agricultura de base familiar, se produz e se afirma a partir da realização do agricultor/a no espaço rural enquanto espaço de vida, que articula a racionalidade econômica as dimensões de autonomia, liberdade, pertencimento, reconhecimento, e que oportunize as condições para a construção coletiva de um projeto, que lhes possibilite a realização individual e coletiva enquanto agricultores.

A Agricultura Familiar Camponesa e suas Relações com o Mercado: condição para sua reprodução social
Uma das dimensões importantes para a delimitação da condição camponesa são as relações externas, seja com o mercado ou com as instituições públicas e sociedade envolvente. No entanto, a relação entre a dinâmica interna com as relações externas está intimamente ligada, pois, tanto a produção como a comercialização estão imbricadas num processo de retroalimentação. Isto indica que o que é produzido ou o que é consumido pelos agricultores tem relação direta com o que é comercializado.

Assim, é necessário compreender em que medida o PAA influencia no reconhecimento e no fortalecimento de uma racionalidade camponesa, de forma que os agricultores restabeleçam uma relação com a produção e com o mercado, respeitando o projeto de vida e a afirmação e defesa de um projeto coletivo (projeto de desenvolvimento). Os agricultores quando organizados a partir do modelo moderno de agricultura se tornam reféns das relações impostas pelos mercados, interferindo não apenas na forma como se relacionam com estes, mas, fundamentalmente, interferindo nas estratégias de produção, de trabalho e de funcionamento das relações sociais, políticas e econômicas, ou seja, perda de autonomia e das condições de reprodução social.

No entanto, pesquisas fazem pouca ou quase nenhuma referência à forma de reprodução dos agricultores no que se refere à organização e às estratégias de produção. Ploeg defende a ideia de que esta dimensão é observada pelos pesquisadores como se fosse

(...) um mero cenário. Ela existe apenas como se fosse um papel de parede. Mesmo quando as atividades agrícolas são descritas extensivamente, o aspecto salientado é a rotina. A dinâmica e a maleabilidade da produção agrícola raramente são exploradas, tal como as atividades associadas ao processo de produção. Por conseguinte, a produção agrícola organizada pelos camponeses é, basicamente, vista como um fenômeno em estagnação que muitas vezes se traduz no ‘atraso’ intrínseco do campesinato como um todo.

A questão crucial é que a produção agrícola representa, para os camponeses, um de seus principais campos de batalha. É na produção agrícola e através dela que o progresso pode ser alcançado. Melhorando lentamente a qualidade e a produtividade dos recursos essenciais – terras, animais, culturas, instalações, infra-estrutura de irrigação, conhecimentos, etc -, aprimorando meticulosamente o processo de produção e reestruturando as relações com o mundo exterior, os camponeses lutam e por fim alcançam os meios para aumentar sua autonomia e melhorar a base de recursos de suas unidades agrícolas (PLOEG, 2008, p. 41-42).

A proposição feita por Ploeg ataca de forma direta e precisa um dos maiores “nós” que limitam o reconhecimento da agricultura familiar enquanto ator do processo de desenvolvimento, pois há limitações técnicas e científicas da descrição e caracterização da importância que a agricultura familiar tem para com a produção de alimentos, como também para a produção agropecuária nacional.

Concordo com a concepção defendida por Ploeg (2008), donde a dinâmica interna da propriedade (produção, manejo da propriedade, etc.) e da família (trabalho disponível, consumo, etc.), assim como as relações externas (aquisição de insumos, crédito, mercado, organização social e política, interação rural-urbano, etc.) integram a forma como a racionalidade da agricultura familiar se estrutura, se dinamiza e se reproduz.

Desta forma, a condição de vida da agricultura familiar, se sustenta e se reproduz a partir das condições de autonomia, da relação entre conhecimento científico e conhecimentos tradicionais, assim como na relação entre a dinâmica de produção e as estratégias de comercialização.

Brandenburg (1999) chama a atenção para o que considera condição fundante para a reprodução do agricultor familiar camponês: a autonomia e a liberdade. E, para tanto, este agricultor não deve ser apenas aquele que

(...) investe em inovações tecnológicas no sentido de substituir a base técnica visando obter maior produtividade na produção e maior eficiência na gestão administrativa da unidade familiar, mas o agricultor que se coloca na condição de autor de um projeto de vida e que ao lutar para construí-lo combina racionalidade e subjetividade. Nessas condições, o agricultor familiar é, portanto, uma categoria moderna, cujo projeto, sem dúvida, inscreve-se como uma continuidade de uma condição camponesa.(BRANDENBURG, 1999, p. 283)

Segundo Almeida (1999), a autonomia da agricultura familiar, a partir da lógica do sistema capitalista, passa a se instituir como estratégia para a resolução de problemas locais de maneira imediata, seja pela descrença no sistema institucional, seja para defender-se de certas imposições do sistema. Estas, muito mais do que servir de estratégia de organização, valorização da identidade e fortalecimento de um projeto, colocam-se enquanto estratégia de autopreservação em momentos de crise e que perde força quando re-estabelecida a condição anterior.

Seja para assegurar o fortalecimento de canais de participação e autogestão, ou então como estratégia de defesa e autopreservação, a agricultura familiar não pode prescindir da conquista de autonomia econômica, política e social, para que lhe garanta condições para sua reprodução social.

No entanto, a produção agrícola para a comercialização na agricultura familiar e camponesa não acontece por vontade individual, mas sofre grande pressão das possibilidades de comercialização que o agricultor tem disponíveis para acessar² . Se a produção da agricultura familiar é condição para a interação e transformação entre homem e natureza, esta terá influências estruturais na relação com os mercados, os agricultores familiares vivendo sob a “linha” frágil da sobrevivência, tem no tempo, na força de trabalho, nos recursos da propriedade e nos recursos financeiros, capital para sua reprodução, não podendo arriscar-se em “aventuras”. Assim, buscam estruturar sua produção para a comercialização, a partir de estratégias que sejam mais seguras possíveis, mesmo que estas sejam as mais precárias e que desestruturem seu projeto de vida, como por exemplo, as culturas de fumo, bicho da seda, da pimenta do reino, do gengibre, frango de corte, entre outras monoculturas de escala e integradas ao sistema agroindustria.

Portanto, a relação entre o que produzir e para qual mercado comercializar, passa, cada vez mais, a fazer parte da agenda política da agricultura familiar, de forma que, mais do que a vontade, os desejos e as ideologias, a produção passa a ser estruturada e realizada a partir das relações mercantis, muitas vezes, fundadas estritamente na racionalidade econômica demandadas por sistemas industriais de alimentos.

Com isto, não quero determinar que a comercialização seja fator único e exclusivo para definir as formas de produção e relações sociais e políticas na agricultura familiar, porém, mais do que ser apenas a engrenagem para viabilizar o acesso monetário, será a comercialização que contribuirá de forma ímpar para que os agricultores conquistem e sustentem um projeto de vida e a condição de ator, ou então, passem a integrar formas de agricultura ditas modernas.

Assim, a articulação entre o Estado, a organização social dos agricultores e os mercados, influenciam e são influenciados, de forma a estabelecer cenários e conjunturas que venham a contribuir para a reestruturação das dinâmicas e da condição de vida camponesa, na perspectiva de garantir, ou não, autonomia e reconhecimento enquanto atores.

No entanto, os mecanismos de comercialização têm sido definidores dos processos produtivos a partir da modernização do rural. Dependente cada vez mais de estratégias de comercialização mais estáveis e reguladas por organizações privadas ou governamentais, os agricultores, de um modo geral, adaptam sua produção às possibilidades de comercialização disponíveis no mercado ou passíveis de serem construídas com certa garantia. Isso se dá, principalmente na agricultura familiar camponesa, onde a relação produção e subsistência é mais próxima e limítrofe.

Se há cálculo da distribuição alternativa do tempo dos membros da unidade doméstica a ser despendido com a agricultura e o negócio, há também um cálculo para saber quando os recursos em dinheiro devem passar da agricultura para o negócio, ou do negócio para a agricultura, assim como cada uma destas atividades pode servir alternadamente ou conjuntamente para proporcionar o necessário à subsistência doméstica. Não constituem portanto atividades estanques, e o negócio não é algo externo à própria atividade agrícola. Assim, o dinheiro com que se compra sementes e adubo, com que se paga o trabalhador alugado, frequentemente provém do negócio. Do mesmo modo, a renda obtida com a venda dos produtos do roçado e/ou sítio não necessita esperar o ciclo agrícola seguinte para ser reaplicada, mas pode ser transferida para o negócio. Note-se também que se o negócio proporciona uma renda suficiente para fazer face ao consumo doméstico, a venda dos produtos do sítio e do roçado pode ser aliada para o momento em que se julga dar o melhor preço, aumentando-se a renda líquida com a agricultura. (GARCIA, 1990. p. 105)

Não há como separar a relação produção-comercialização, sendo ainda mais intensa essa relação na agricultura familiar, pois o trabalho, o autoconsumo, o acesso aos bens de consumo, o manejo da propriedade e a comercialização estão articulados de forma a manter ou desestruturar as condições de vida na agricultura familiar camponesa.

Vencedores ou perdedores neste campo de luta, os camponeses, no passado como atualmente, dele participam com o objetivo de ter acesso a atividades estáveis e rentáveis. É este objetivo que norteia suas estratégias econômicas e que se articulam em dois níveis complementares. Por um lado, o acesso a uma atividade mercantil. A historiografia é plena de exemplos que nos permitem afirmar que, desde o período colonial, os chamados “cultivadores pobres livres” sempre buscaram alternativas econômicas que os integrassem positivamente à economia local e regional, tanto o mercado interno de produtos alimentares, como também o de produtos destinados à exportação, como o fizeram com a produção da mandioca, do tabaco e do algodão. E até hoje, sempre foi uma orientação comum e natural destes agricultores, a busca de produto ou produtos comercializáveis, que sejam o carro-chefe do sistema produtivo adotado. Por outro lado, a esta atividade mercantil se soma o autoconsumo. É natural que, dispondo de meios de produção, mesmo que em condições precárias e insuficientes, o camponês procure, antes de mais nada, assegurar o consumo alimentar da família. Como indicam Maria Yeda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, a economia de subsistência “é a face oculta da economia e da sociedade coloniais”. (WANDERLEY, 1996, n.d)

Sob o impacto de novas condições da conjuntura mundial, seja pelas consequências de uma maior integração econômica, de trocas comerciais, de competitividade, da necessidade de aportar mais e de forma constante investimentos na propriedade, assim como a busca por ampliar o padrão de consumo das famílias do campo, a agricultura camponesa passou a ter que se adaptar e se organizar de forma a garantir sua reprodução social no campo, mas a partir destas novas condições.

Estas transformações não irão impactar somente no processo produtivo e na condição financeira, mas fundamentalmente irá impactar na crescente perda da autonomia e no esvaziamento das sociedades locais, seja populacionalmente, mas também do ponto de vista da dinâmica e da organização social (WANDERLEY, 1996).

Mercados cada vez mais exigentes, que passaram a determinar certas condições aos agricultores familiares, como quais produtos devem ser produzidos, em que quantidades, qual a qualidade e periodicidade, além de estabelecer os preços, muitas vezes, antecipadamente determinados.

O alto custo do transporte, a pressão pela realização de um modelo de produção baseado numa alta escala, a dificuldade em acessar conhecimento e tecnologia, a baixa capacidade de assumir riscos, a dificuldade em acessar centros consumidores e a pressão da estrutura atacadista e de abastecimento dominado por atravessadores (CEASA), empresas, (agro)indústrias, grandes cooperativas e supermercados, que veem na agricultura familiar um mero produtor de matéria prima para sistema de abastecimento alimentar.

A integração aos mecanismos de comercialização de baixa autonomia, muitas vezes, precarizam o trabalho e a vida familiar ao nível de que a produção para o autoconsumo seja inviabilizada, pois o tempo despendido para estas atividades acabam sendo excessivamente alto. Esta dinâmica pode levar os agricultores familiares a dependerem cada vez mais de sistemas de comercialização integrados aos grandes mercados de abastecimento alimentar, não lhe restando outra saída a não ser, reforçar cada vez mais a própria precarização e relação de dependência.

Neste ambiente, a agricultura familiar produz aquilo que não, necessariamente, faz parte da pauta de alimentos que são produzidos para o consumo familiar, exigindo que deixe de produzi-los ou diminua significativamente sua produção e passe a organizar a propriedade, quase que exclusivamente, para mercados possíveis e “estáveis”.

Vale ressaltar que esta lógica de produção e comercialização na agricultura familiar, foi e tem sido mediada e estimulada pelo Estado, pois seja através do financiamento público (crédito), do investimento em infraestrutura (de transporte, abastecimento, órgãos de controle, entre outros), no estímulo à pesquisa e assistência técnica, assim como o investimento e fomento público à agroindustrialização, é que o Estado que tem fortalecido uma agricultura baseada em cadeias produtivas altamente especializadas em detrimento das lógicas de mercado local com integração regional.

Assim, a produção de alimentos que faz parte do projeto de vida da agricultura familiar perde espaço na comercialização direta nos mercados locais e regionais, seja em função do alto custo de produção e transporte, em função da baixa escala e baixo subsidio governamental, ou mesmo em função da baixa capacidade de divulgar e midiatizar seus produtos. Além da forte pressão da concorrência dada pelos produtos advindos das Centrais de Abastecimento (CEASAs), que acabam por orientar e estabelecer padrões de qualidade e preço para a produção. Desta forma, cria-se um círculo vicioso, donde a agricultura familiar na ausência de mercados mais sustentáveis e que possibilite maior controle e transparência, inserem-se em mercados que lhes possibilitem acessar renda monetária, e assim, gradativamente, passam a desestruturar os conhecimentos e tecnologias tradicionais de produção de alimentos, as estratégias locais de comercialização, e de forma inversa, passam a depender e reforçar a utilização dos conhecimentos e tecnologias organizadas pelos pacotes tecnológicos da agricultura modernizadora.

Nesta perspectiva, o Programa de Aquisição de Alimentos tem como objetivo o resgate e o fortalecimento da produção de alimentos e das estratégias de comercialização local, permitindo a estruturação de condições que permitirão a comercialização através de outros instrumentos locais e regionais. No entanto, mais do que estruturar e garantir as condições de vida dos agricultores familiares, seja no que se refere a racionalidade econômica ou produtiva, o Programa, em princípio, oportuniza a ressignificação das relações internas e externas da lógica familiar.

O Estado e a oportunização da Recampesinização
Uma dimensão importante a ser observada, analisada e avaliada por governos e pela comunidade científica, é referente aos impactos do PAA sobre a lógica de funcionamento e organização das propriedades da agricultura familiar, antes e depois do PAA, principalmente no que se refere a relação destes com a busca por autonomia sobre a produção e comercialização, ou seja, na busca por se constituir enquanto agricultura camponesa.

Assim, mais do que avaliar se o PAA tem contribuído ou não para o aumento da renda das famílias dos agricultores, é de significativa importância compreender em que medida o Programa tem interferido na reordenação da produção e no projeto de vida da agricultura familiar.

O projeto de vida funda-se a partir da identificação com o local, com a cultura, com as formas de produção tradicional, ao mesmo tempo em que são reconhecidos pela sociedade envolvente enquanto atores sociais.

As relações entre produção e comercialização estabelecidas pela agricultura familiar se estruturam na medida em que os agricultores necessitam, de um lado, do acesso a recursos monetários para atender a demanda de bens de consumo e, de outro, custear insumos, tecnologia e mão de obra para a produção e investimentos na propriedade.

O estabelecimento de relações comerciais não é e nunca foi algo estranho à reprodução da agricultura camponesa. No entanto, as modernas formas de fazer agricultura, a partir da década de 60, do século XX, trouxeram uma realidade paradigmática diferente da realidade vivenciada pelos pequenos agricultores até então. Mecanismos de comercialização construídos local e muitas vezes comunitariamente, deixam de ser regra, para que mecanismos de comercialização integrados a uma lógica agroindustrial e agroexportadora faça parte da dinâmica da agricultura familiar. Assim, a produção deixa de ser uma prioridade enquanto instrumentalidade de acesso ao mercado (local), para que a especialização e a produção em escala, passe a ser prioridade enquanto formas de produção. No entanto, estas, ao longo dos anos, foram se configurando enquanto atividades que, além de estranhos aos sistemas de cultura dos camponeses, eleva, significativamente, o custo de produção diante dos valores de venda no mercado.

Na pesquisa desenvolvida por Michelato (2010), os resultados identificaram a agricultura familiar é impactada fortemente pela lógica de mercado desenvolvida pelo PAA, como pode ser observado na tabela abaixo, onde são apresentados os produtos que as famílias de agricultores produziam antes e após a participação no PAA.

TABELA 01: Produção destinada para a comercialização pelos agriculturores familiares da amostra da pesquisa, referente ao período anterior ao PAA, no ano de 2003, e após a participação no PAA, no ano de 2008.
Fonte: MICHELATO, 2010.

Como pode ser observado na tabela acima, a partir do PAA, produtos que anteriormente não eram comercializados ou eram comercializados com uma baixa representatividade, passaram a fazer parte da pauta de produtos “comercializáveis” pela grande maioria dos agricultores da amostra desta pesquisa (MICHELATO, 2010). Produtos como hortaliças, legumes, mandioca, pinhão, milho verde, ovos e batata doce passaram a ser produzidos pelos agricultores com foco na comercialização, numa dimensão significativamente superior à realidade anterior ao PAA. O que chama atenção é o fato de que alguns dos produtos, como é o caso do pinhão, que passou de 4% dos agricultores comercializando antes do PAA para 58%. Ou então, no caso das hortaliças, que passaram de 4% para 98%, considerando que aqui há uma significativa diversidade de produtos incluídas nesta categoria, o que amplia em muito o número de produtos comercializáveis.

A produção de ovos, mandioca e amendoim chama atenção pelo fato de que saltaram de praticamente 0% de agricultores produzindo para a comercialização para aproximadamente 60%; produtos estes que nesta região fazem parte da cultura alimentar das famílias de agricultores, e que incrivelmente não eram comercializados. Outro produto a ser destacado é o milho verde, que em função de agregar, significativamente, maior valor em comparação ao milho “maduro”, pois é comercializado por espiga, e não por saca, passou de 0% para 60% dos agricultores produzindo para a comercialização e, em contrapartida, o milho “seco” ou “maduro” passou de 51% antes do PAA (no ano de 2003) para 0% (no ano de 2008). Vale destacar que o milho é utilizado pelos agricultores como alimentação para a criação de suínos, aves e gado de leite (no período de inverno) e estes serão utilizados para a alimentação familiar, seja através do consumo da carne, dos ovos ou do leite. Desta forma, mais importante do que a venda do milho in natura, os agricultores têm preferência em utilizar-se da produção de milho para a alimentação da criação de animais e assim garantir a sustentabilidade alimentar de proteína animal.

Chamo atenção para o fato de que a redução da comercialização de pequenos animais (de 16% para 4% dos agricultores) ocorreu em função de que a renda obtida a partir da comercialização do PAA, das feiras, dos vizinhos e da associação possibilitou a diminuição da necessidade monetária dos agricultores sobre o orçamento familiar e, desta forma, a comercialização de carne pôde ser diminuída. É importante destacar que a produção de pequenos animais representa a única fonte de proteína animal para o consumo familiar e, assim, é de grande relevância resguardar esta produção para que o autoconsumo seja garantido. No entanto, vale ressaltar que em função da impossibilidade de comercializar carnes para o Programa, sem a devida inspeção sanitária, os agricultores da amostra relatavam que seriam prejudicados, pois poderiam acessar ganhos financeiros mais significativos com a comercialização de carne, porém, em função desta limitação, optaram em investir a mão de obra disponível em produtos possíveis de comercialização no PAA.

Produtos como o fumo, o bicho da seda, a soja e o carvão, tiveram uma redução significativa ou sua exclusão da produção para a comercialização realizada por estes agricultores, como apresentado na tabela 01, pois mesmo havendo a possibilidade de comercializá-los através de outros mecanismos existentes na região, reduziram sua produção em função de ganhos em outras culturas comercializadas através de outros mecanismos considerados mais favoráveis pelos agricultores – como o PAA, as feiras, os vizinhos e a associação.

Com isto, fica clara a disposição dos agricultores em não investir na produção de produtos que estão ligados diretamente aos mecanismos de integração agroindustrial. Mas esta “não comercialização” destes produtos só pode ser identificada, a princípio, em função da existência de outros mecanismos de comercialização, como o PAA. Vale ressaltar que culturas ditas “modernas”, são difundidas e divulgadas, por empresas, agroindústrias e órgãos governamentais de extensão rural, como sendo altamente rentáveis e viáveis para a agricultura familiar, e contrariamente, a produção de hortaliças, frutas, legumes, panificios, entre outros, são considerados produtos não sustentáveis ou mesmo sem possibilidade de comércio em municípios de pequeno porte e longe de grandes centros consumidores.

Esta re-estruturação das formas de produção demonstra que o PAA tem estimulado fortemente a produção de alimentos pelos agricultores familiares, pois o Programa é demandante de produtos que possam ser consumidos por crianças e famílias atendidas nas entidades sociais dos municípios.

Este reordenamento das formas de produção, diferentemente do que vem sendo fomentado pela agricultura conservadora, restabelece relações de produção que retroalimentam certo “resgate” da dinâmica produtiva camponesa, pois faz com que os agricultores diminuam ou abandonem a produção de variedades que estejam integradas a sistemas de concentração de abastecimento alimentar. Assim, sendo o PAA tem permitido abrir possibilidades para proporcionar certas condições de autonomia e liberdade, seja do ponto de vista da produção e de comercialização.

Assim, o PAA, mais do que um mecanismo de comercialização, traz consigo a possibilidade de promover e fortalecer processos organizativos e produtivos que permitem garantir o fortalecimento da condição camponesa, mas não como uma forma de retorno, de reconstrução ao passado, mas como um processo de reestruturação.

Assim, ao analisar o impacto do PAA na agricultura familiar, pode-se afirmar que a produção de alimentos destinada ao Programa é aumentada na medida em que passa a ser considerada a principal fonte de renda das famílias, invertendo a relação estabelecida pelos agricultores com a agricultura. Ou seja, a partir do PAA, os agricultores passam a imprimir menos intensidade - de tempo, mão de obra, capital, terra - para a produção de uma agricultura para o mercado agroindustrial, e passam a investir mais em uma agricultura produtora de alimentos para o mercado local, ampliando a autonomia no que se refere à segurança alimentar da família e, também aumentando a renda familiar a partir da produção e comercialização de alimentos, além de impactar positivamente na segurança alimentar do território.

Como pode ser observado na Tabela 2, 39% dos agricultores entrevistados, na pesquisa realizada no meu doutorado, afirmam que a principal fonte de renda da família advém da produção de hortaliças e legumes. Outros 18% afirmam que é o leite e 12% que é o feijão o responsável pela principal fonte da renda da família.

TABELA 02: Produtos que os agricultores avaliam como responsável pela principal renda da família.
Fonte: MICHELATO, 2010.

Já os produtos considerados de alta rentabilidade pelo senso comum, ou divulgados pelo sistema moderno de agricultura como vantajosos, como a soja, o fumo, o carvão, o bicho da seda, entre outros, são considerados como a principal fonte de renda da família para apenas 6% do total da amostra da pesquisa.

Chamo atenção para o fato de que hortaliças, legumes, mandioca, frutas, são produtos que não possuem, tradicionalmente, mercado para a agricultura familiar nas localidades investigadas, em função, principalmente, da presença de atravessadores que trazem da CEASA para o abastecimento dos moradores do núcleo urbano, mas também para os moradores da área rural. Estes produtos são vistos, nas regiões pesquisadas, como não rentáveis, pois não fazem parte da lista de produtos considerados de “primeira linha”, como é o caso da soja, do milho, do fumo, da erva mate, entre outros. No entanto, com a presença do PAA, os agricultores passaram a estabelecer outro padrão do que é rentável e do que não é rentável.

Ploeg (2008) chama atenção para a necessidade de que haja a revisão da noção de campesinato produzidas nos séculos XIX e XX, pois não há como imaginar uma agricultura camponesa isolada e que é passiva diante do modelo de desenvolvimento. Segundo o autor, os camponeses devem estar integrados e agindo sobre o sistema e não apenas resistindo de forma estática. Não há como compreender a resistência como uma forma de reação, mas deve ser entendida como uma forma de ação e produção (NIERDELE, 2008). Conclui afirmando que “a condição camponesa consiste em um conjunto de relações dialéticas entre o ambiente hostil em que os camponeses têm de agir e suas respostas ativamente construídas, as quais visam criar graus de autonomia para enfrentar as relações de dependência, as privações e a marginalização implícitas nesse ambiente” (PLOEG, 2008, p. 285).

Para tanto, é necessário à organização e fortalecimentos de novos circuitos de mercados, que por um lado contestam e demonstram certo enfrentamento para com o mercado, mas também propõem formas alternativas de relações sociais, políticas e, principalmente, econômicas entre agricultores e população urbana. No entanto, estes novos circuitos devem estar atrelados a ideia de um agricultor que possui e articula sua condição cultural, social, ambiental e política com a racionalidade econômica.

Para tanto, o PAA tem demonstrado uma capacidade de possibilitar novos mecanismos de comercialização para a agricultura familiar, e este novo passa por reconhecer e considerar não apenas a dimensão econômica, mas também a multidimensionalidade que faz parte da condição camponesa.

Na pesquisa desenvolvida por Michelato (2010), é possível verificar que os agricultores alteraram significativamente os mecanismos de comercialização após iniciar a participação no PAA, mais especificamente após quatro anos de participação no Programa.

É possível verificar que antes do PAA, os mecanismos de comercialização mais acessados pelos agricultores eram: atravessadores (40%), cooperativas (36%), associação (16%) e empresas (11%). No entanto, as cooperativas, embora aparentemente sejam vistas como um mecanismo de comercialização que promova certa autonomia dos agricultores, é avaliado negativamente, pois caracterizam este mecanismo como pior ou igual aos atravessadores.

Observa-se que os agricultores acessavam o mercado através de instrumentos “tradicionais” de comercialização (cooperativa, atravessadores, empresas etc.), que lhes permitiam pouca ou quase nenhuma autonomia, seja referente aos produtos produzidos ou aos preços praticados. Nesta lógica, passam a ser reféns da demanda estabelecida pelo mercado, à exceção do comércio realizado com os vizinhos, pois os preços são estabelecidos de comum acordo entre quem vende e quem compra. No entanto, os demais mecanismos estabelecem o que deve ser produzido e a que preço pode ser comercializado.

A partir do PAA, os mecanismos que os agricultores avaliam negativamente e que desestruturam as formas de produção e as relações sociais e econômicas dos agricultores, foram perdendo espaço para o Programa. Essa redução deu-se de forma quase que uniforme, sendo que a comercialização estabelecida com atravessadores reduziu de 40% para 24%, das cooperativas, de 36% para 16%, e nas empresas, de 11% para 7%. Estes dados demonstram que os agricultores avaliam negativamente estes mecanismos de comercialização, e que estes são “dispensáveis” diante de mecanismos mais próximos da lógica produtiva camponesa, como é o caso do PAA, da feira e da comercialização com vizinhos.

Os atravessadores, empresas, indústrias e cooperativas “impõem” mudanças na lógica de produção das famílias, reduzindo-os a função de operadores do sistema produtivo, pois estes se veem “obrigados” a produzir tipos de produtos que não fazem parte da pauta de produtos tradicionalmente produzidos pelos agricultores familiares, como é o caso do fumo, soja, carvão, bicho da seda, assim como o milho e o feijão em grande escala. Da mesma forma, estabelecem relações sociais, econômicas e políticas que estimulam a desintegração das formas organizativas dos agricultores nos seus espaços de trabalho e convivência, pois passam a ser integrados a uma lógica individual e, essencialmente, monetária com estas organizações.

Outra contingência importante a ser destacada é que anteriormente ao PAA, os agricultores apresentavam um alto nível de especialização, com foco em alguns produtos, como é o caso de 67% dos agricultores que produziam o feijão para ser comercializado, 51% produzindo milho, 16% produzindo soja e pequenos animais, enquanto, inversamente, uma parcela diminuta dos agricultores da amostra produziam para a comercialização produtos como hortaliças, pinhão, panificios, entre outros.

Segundo Brandenburg (1999, p. 129), ao avaliar a noção de autonomia da agricultura familiar, afirma que esta “refere-se ao que nem tudo é determinado exteriormente, mas que existe um controle interno, sobre a produção, sobre a organização do trabalho, sobre os processos de decisão. (...) O grau de autonomia parece estar determinado pelo seu projeto de vida...”. Assim, segundo os dados apresentados, o PAA tem conseguido estabelecer certa autonomia para os agricultores familiares, pois além de valorizar e fortalecer as relações de produção e organização do trabalho fundadas a partir das relações da família e dos conhecimentos e saberes dos agricultores, como demonstrado nos dados da pesquisa, tem permitido que os agricultores estabeleçam um projeto coletivo, seja referente às formas de comercialização, produção e organização política.

No entanto, a condição camponesa articula-se e dialoga com a noção de ator, pois como defende Touraine (1998), o ator se constitui enquanto tal quando tem um projeto e o defende contra a dominação e opressão de um sistema que tenta reestruturar seus valores, seus projetos e suas relações, na perspectiva de retirar sua autonomia e liberdade.

Mas não apenas isso, pois o ator se institui quando se reconhece e é reconhecido enquanto categoria social, e, para tanto, deve estar organizado coletivamente para que este reconhecimento não seja uma atribuição externa, mas uma construção coletiva que disputa e se coloca diante dos demais atores sociais e do Estado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDENBURG, A. Agricultura familiar: ONGs e desenvolvimento sustentável. Curitiba: Ed. UFPR, 1999. 

GARCIA, A. R. O Sul: caminho do roçado – estratégias de reprodução camponesa e transformação social. São Paulo: Editora Marco Zero, 1990.

LAMARCHE, H. Agricultura familiar: do mito à realidade. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.

MENDRAS, H. Sociedades Camponesas. Rio de Janeiro: Editores Sahar, 1978.

MICHELATO, André. A. Atores sociais, agricultura familiar camponesa e o espaço social: uma análise a partir do programa de aquisição de alimentos. Tese (Doutorado). Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Defesa: Curitiba, 19/03/2010.

NIERDELE, P. A. A Coreografia do campesinato na sociedade contemporânea. Revista Eletrônica de Ciências Sociais: CSOnline. Publicação Editora da UFJF. Juiz de Fora. V. 5. Ano 2. p. 319-325. Dezembro. 2008. Disponível em: <http://www.editoraufjf.com.br/revista/index.php/csonline/article/viewFile/407/380>. Acessado em: 18/11/2009.

PLOEG, J. D. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.

WANDERLEY, M. de N. B. Em busca da modernidade social: uma homenagem a Alexander V. Chayanov. In: FERREIRA, A. D. D. e BRANDENBURG, A. (org.). Para pensar: outra agricultura. Curitiba: Editora da UFPR, 1998.

WANDERLEY, M. de N. B. Raízes históricas do campesinato brasileiro. In: XX Encontro anual da ANPOCS. Processos Agrários. Anais. Caxambu, MG. Outubro, 1996


¹ Vale ressaltar que as políticas públicas para o rural nas áreas da educação, saúde, esporte, lazer, cultura, entre outras, ainda estão no âmbito de muito debate e pouca ação prática. O mundo rural ainda é sinônimo de carência de infraestrutura e de ausência de políticas públicas de promoção e garantia da cidadania. Mesmo as políticas de assistência técnica e extensão rural, políticas estas que são estruturais para o desenvolvimento, ainda não estão presentes em todo território nacional, quiçá as políticas de educação e outras. Exemplos para isto não faltam, mas chamo atenção para as políticas de saúde (e saúde mental) para a agricultura familiar, as políticas de esporte e lazer e as políticas de cultura. A inexistência ou ineficácia destas políticas são reflexo do grau de reconhecimento que a sociedade tem para com a agricultura familiar.

² As relações mercantis não se constituem ou se estabelecem instrumentalmente entre agricultores e compradores. Esta sofrerá sim influências culturais e organizativas, mas também, e principalmente, terá nas relações de confiança e credibilidade fator preponderante para que se estabeleçam as relações mercantis. Uma diversidade de relações mercantis podem se estabelecer a partir destes pressupostos, no entanto um contingente significativo de agricultores deixam de produzir em função da pouca confiabilidade com os possíveis compradores, permanecendo desta forma na condição de produtores para o autoconsumo. Outros passam a produzir aquilo que é possível e seguro para ser comercializado sem grandes riscos e custos, como é o caso dos produtos tradicionalmente produzidos pela agricultura familiar, como o feijão, milho, erva mate, leite, fumo, pequenos animais, soja, entre outros.