APROXIMAÇÕES TEÓRICAS A QUESTÃO DA GESTAÇÃO DE PESSOAS TRANS
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15749933
Elislaine Aparecida de Oliveira1
Daniela Emilena Santiago2
RESUMO
O acesso a direitos por parte da população trans tem se mostrado como um elemento fundamental de reflexão e estudo teórico como o proposto no presente artigo. Partido do rol amplo de direitos que têm sido historicamente negligenciados em relação a esse público, nosso olhar esteve voltado para a gestão de pessoas trans. O texto foi elaborado por meio de estudo teórico e nele buscamos problematizar elementos associados ao desenvolvimento histórico dos direitos da pessoa trans bem como abarcar os dispositivos atrelados ao SUS que buscam efetivar os direitos a elementos de saúde pública, incluindo, nesse sentido, a questão gestacional.
Palavras-chave: População Trans. Gestação. Saúde Pública.
ABSTRACT
Access to rights by the trans population has proven to be a fundamental element of reflection and theoretical study, such as that proposed in this article. Based on the broad list of rights that have been historically neglected in relation to this population, our focus was on the management of trans people. The text was prepared through theoretical study and in it we seek to problematize elements associated with the historical development of the rights of trans people, as well as encompass the devices linked to the SUS that seek to enforce rights to public health elements, including, in this sense, the issue of pregnancy.
Keywords: Trans Population. Pregnancy. Public Health.
1 INTRODUÇÃO
Nasci Desse Jeito
Born This WayNão importa se você ama ele, ou E-L-E com a letra maiúscula
Apenas levante suas garras
•Pois você nasceu desse jeito, meu bem[...]3
A efetivação dos direitos da população LGBTQQICAPF2K+ no Brasil tem sido consolidados por meio de grande luta por parte desses segmentos e dos demais envolvidos. Direito de manterem relações afetivas, direito de constituírem uma família com a presença de filhos, biológicos ou via adoção, direito a inserção em espaços de estudo e de trabalho, não tem sido concedidos como convencionalmente acontece para a população heteronormativa. A estrofe da canção que foi usada para iniciar esse texto ilustra a justificativa de uma pessoa vinculada a esse público, quase uma defesa por ser quem é sem pedir permissão.
Se, por um lado, a sociedade avança no sentido do respeito e da conscientização, cresce também o tradicionalismo de alguns segmentos na sociedade brasileira, resultando em dificuldade no acesso aos direitos por esse público e os colocando ainda em um rol amplo de situações de risco social e pessoal e que são expressas por meio das mais variadas agressões que oscilam a violência subjetiva, violência física e que podem chegar até mesmo a morte. A contraposição a essas violações tem requerido, cada vez mais, por um aparato jurídico assentado em legislação que vise tanto a efetivação de direitos sociais quanto a proteção desse público dos mais variados ataques que vem sofrendo.
A reflexão em torno das temáticas postas alcançaram os autores do presente manuscrito durante o curso de graduação em Psicologia, momento em que a reflexão proposta foi orientada para a possibilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) auxiliar públicos trans no contexto da mudança de gênero. O interesse inicial resultou no trabalho de conclusão de curso, já defendido no ano de 2023 e suscitou a realização de outros estudos como o que propusemos no decurso desse artigo. Nesse, a reflexão é orientada para a questão da gestação de pessoas trans. O texto foi elaborado por meio de uma reflexão inicialmente teórica em que foram apresentados elementos que nos permitem compreender o que é transexualidade, para, na sequência avançarmos em relação a questão da gestação. O final do artigo apresenta ainda uma reflexão a respeito da importância do SUS na efetivação dos direitos à gestação.
2 TRANSEXUALIDADE E GESTAÇÃO: DESAFIOS E CUIDADOS
2.1 SEXO, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO: UMA BREVE HISTÓRIA
Nas últimas décadas, a compreensão sobre sexualidade, identidade de gênero e diversidade tem passado por transformações significativas, impulsionadas por avanços nos campos das ciências humanas, sociais e da saúde. Essa evolução tem permitido uma abordagem mais inclusiva e crítica sobre temas historicamente marginalizados. Em especial, questões relacionadas à população LGBTQIA+ têm ganhado espaço em diferentes esferas da sociedade, revelando a necessidade urgente de reconhecer e respeitar as múltiplas formas de existência e experiência humana.
Composto por diversos fatores (biopsicossocial), o comportamento sexual tem visões diferentes na história. Desde a década de 70, onde aconteceu um dos mais importantes movimentos civis da história – a Rebelião de Stonewall– a luta da população LGBTQIA+ vem crescendo cada vez mais para que deixe de ser vulnerável à sociedade. Por isso se faz necessário que espaços diversos da sociedade realizem discussões para inclusão e combate ao preconceito e à violência contra essa classe minoritária. Com o avanço das discussões sobre identidade de gênero e diversidade sexual, um dos temas que tem ganhado mais visibilidade é a gestação trans. Pessoas transmasculinas (homens trans) e não binárias que possuem útero e ovários podem engravidar, e isso desafia visões tradicionais e biologicistas sobre corpo, gênero e maternidade. No entanto, essa realidade ainda é cercada por preconceito, desinformação e barreiras institucionais.
A gestação trans revela a urgência de um sistema de saúde mais preparado, acolhedor e capacitado para atender essa parcela da população com respeito e dignidade. Profissionais da saúde muitas vezes não recebem formação adequada sobre questões de gênero, o que pode resultar em abordagens discriminatórias ou na recusa de atendimento. Além disso, o simples ato de preencher formulários com linguagem inclusiva ou garantir que o nome social seja respeitado já representa um passo fundamental na humanização do cuidado. (Silva et al. 2024; Oliveira et al., 2024; Cardoso et al., 2024; Avelino et al. 2025)
É importante destacar que a visibilidade da gestação trans não significa uma ruptura com os direitos das mulheres cisgênero, mas sim um convite à ampliação do olhar sobre quem pode gerar vida. O reconhecimento dessas vivências contribui para a construção de uma sociedade mais justa, onde todos os corpos e identidades sejam respeitados em sua complexidade.
Portanto, assim como o movimento LGBTQIA+ tem historicamente lutado contra a marginalização e pela conquista de direitos, é essencial que a gestação trans seja incluída nas pautas de inclusão, políticas públicas e direitos reprodutivos. A pluralidade de experiências precisa ser compreendida e valorizada, para que possamos, de fato, construir um mundo onde todos tenham o direito de viver plenamente sua identidade.
Porém ainda existem dúvidas quando o tema é sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Nesse sentido, podemos esclarecer que gênero ou sexo é o nome usado para designar uma pessoa ao nascer (do ponto de vista biológico), ou seja, masculino e feminino. Existem exceções, como intersexo (ou terceiro sexo), ou seja, pessoas que possuem órgãos genitais ou sistemas reprodutivos mistos, os mais conhecidos como hemafroditos. (Reis, 2018)
No entanto, como uma pessoa se sente sobre seu corpo e como se define está além de seu "gênero" no nascimento. Considera-se como orientação ou atração afetiva/sexual, quando uma pessoa manifesta ligação afetiva ou atração pela outra, seja do mesmo sexo ou do sexo oposto. Há três orientações sexuais: pelo mesmo sexo/gênero (homossexualidade), pelo sexo/gênero oposto (heterossexualidade) ou pelos dois sexos/gêneros (bissexualidade). Ainda enquadram-se como orientação sexual a assexualidade e a pansexualidade. (ibidem, p.21), sendo a assexualidade o indivíduo que não sente a necessidade de ter relações sexuais e os pansexuais que são atraídos por todos os tipos de gêneros.
Identidade de gênero, por sua vez, refere-se à experiência interna e individual de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo de nascimento, incluindo como a pessoa se sente em relação ao próprio corpo – podendo envolver modificações na aparência, cirurgias, outras expressões de gênero – incluindo vestimentas, fala e maneiras. Entre as identidades de gêneros temos também o cisgênero, agênero, binarismo de gênero, androgenia, drag queen e drag king. (ibidem, p.25)
Desde a mitologia grega, há referências e vários mitos e narrativas religiosas que inclui histórias românticas ou sexuais entre personagens do mesmo sexo ou comportamentos sagrados que levam a mudanças de gênero. Pode-se citar o mito de Hermafrodito que era filho de um romance adultero entre Hermes (deus da fertilidade) e Afrodite (deusa do amor, da beleza e sexualidade). Criado pelas Ninfas das florestas, ele não se interessava pelas mulheres, queria apenas conhecer o mundo e aventurar-se. Em certa viagem, uma Ninfa chamada Salmacis que reinava sobre as águas a beira de um lago apaixonou-se por Hermafrodito e tentou seduzi-lo, mas ele não se deixou envolver por seus encantos. A Ninfa então tenta obter seu amor a qualquer custo, sem nada conseguir. Certo dia, ao banhar-se nas águas, Salmacis abraçou-o, aderindo ao seu corpo, ordenando as águas que os unisse para sempre e que jamais se separassem. A fusão definitiva causou-lhe êxtase tomando-lhe os sentidos, sendo então homem e mulher participando de uma natureza em equilíbrio, perfeito e completo em um só ser (Brandão, 1986, p.221).
Os primeiros registros publicados acerca da transexualidade foram publicados em um artigo de uma revista no interior da França,Millot et al. (1988) relatam uma história de uma mulher que chegou como “homem” no povoado de Champanhe. Segundo consta, ele se passando por homem, casou com uma mulher. Ficando “viúvo” casou-se pela segunda vez. Certa vez, ficou doente e isso veio ao conhecimento de todos, pois portava um tipo de pênis artificial de fabricação própria (Millot et al., 1998, p. 18). O termo “transexual” foi criado pelo doutor David Caudwell em 1949, já o termo “transexualismo” foi criado por Harry Benjamim para designar um distúrbio psíquico de identidade sexual, caracterizado pela convicção que um sujeito tem de pertencer ao sexo oposto (Ramsey, 1998, p. 17). Desde a 72ª Assembleia Mundial de Saúde da Organização das Nações unidas (ONU) ocorrida em 2010, a transexualidade não é considerada um transtorno mental. Os transexuais passam a ser reconhecidos como pessoas que necessitam de cuidados durante o processo de transição de gênero, incluindo cirurgias e terapia hormonal.
O termo identidade de gênero ficou conhecido através da transexualidade, quando o Hospital Jhons Hopkins criou uma Clínica de Identidade de Gênero e realizou a primeira cirurgia de mudança de sexo. A criação dessa Clínica estimulou a criação de lugares semelhantes. O DSM-III (Manual de Diagnósticos e estatísticas de distúrbios mentais III) publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), incluía uma seção de “distúrbios de identidade de gênero da infância”, “transexualidade” e “distúrbio de identidade de gênero atípica” (ibidem, p. 18)
Na psiquiatria e na psicanálise, no séc. XX o primeiro pesquisador da transexualidade foi Robert Stoller (1982) com bases em inúmeras observações clínicas, incluindo relatos de tratamentos por psicanálise ou psicoterapia para orientação ou identidade de gênero. Stoller publicou vários livros e artigos, sendo o mais importante “A Experiência Transexual”. Na visão de Stoller, a transexualidade apresenta-se por um desvio de identidade:
Transexualismo é uma desordem pouco comum, na qual uma pessoa anatomicamente normal sente-se como membro do sexo oposto e, consequentemente, deseja trocar seu sexo, embora suficientemente consciente de seu verdadeiro sexo biológico. A condição é rara, embora não se saiba o quanto, em parte por não haver unanimidade sobre o que deva ser chamado transexual (Stoller, 1982, p. 2-3).
Em junho de 1969, iniciou-se uma rebelião que lançaria bases para o movimento pelos direitos LGBT. O movimento conhecido como Stoneall Riot (Rebelião de Stonewall), aconteceu dia 28 de junho, quando a polícia realizou um mandato para fazer a inspeção em um estabelecimento LGBT em Stonewall, por tratamento agressivo dos policiais contra as pessoas LGBT, as pessoas começaram uma rebelião para se protegerem. Depois deste episódio, as manifestações nos arredores da cidade ocorreram por cinco dias e teve milhares de pessoas. Após um ano da rebelião, milhares de pessoas LGBT+ marcharam até o local do bar no Central Park.
Essa marcha ficou conhecida como Primeira Parada do Orgulho LGBTQIA+ dos Estados Unidos. No Brasil, o movimento LGBT começa a partir da década de 70, em meio a ditadura militar (1964-1985), um movimento que foi caracterizado pela crescente busca da visibilidade e cidadania. Em 1978, na cidade de São Paulo, ocorria a primeira reunião de um grupo com o nome “Somos – Grupo de Afirmação Homossexual”, que daria início Brasil afora com o surgimento de diversos grupos em outros estados. Além do jornal mensal Lampião da Esquina, considerado a primeira publicação de circulação nacional nas lutas políticas travadas pela imprensa alternativa e feita de homossexuais para homossexuais. (Green, 2018, p. 10)
Esse movimento é marcado por forte caráter antiautoritário em relação ao contexto da ditadura, pois tratava-se se grupos de reflexão nos quais as coordenações eram rotativas de modo a evitar concentração de poder. O processo da identidade coletiva “homossexual ativista” fazia com que o grupo fosse visto de uma comunidade de “iguais”, compartilhando da mesma condição e necessidades. O grupo Somos, tinha como principal foco reuniões de “Identificação” como o compartilhamento de experiências pessoas e o esvaziamento de caráter pejorativo das palavras “bicha” e “lésbica.
A “segunda onda” do movimento corresponde a década de 1980, com o aumento da visibilidade e lenta expansão de mercados de bens e serviços destinado ao público homossexual e a chegada da epidemia da AIDS. Nesse contexto os grupos triângulo rosa e Atobá do Rio de Janeiro e o grupo Gay da Bahia tinham como objetivos as atividades comunitárias e promoção de mudanças na sociedade, em especial aos direitos civis homossexuais.
Com a criação do Sistema Único de Saúde – SUS, em 1988, a saúde passa a ser um direito de todos e dever do Estado. Sendo garantido por políticas sociais e econômicas, reduzindo o risco de doenças e promovendo acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.
Nesse contexto, deu-se a partir da década de 1980, o enfrentamento da epidemia do HIV/AIDS em parceria com os movimentos sociais vinculados à defesa dos direitos de grupos gays. O movimento e reconhecimento da complexidade da saúde LGBT exigiu amparo com outras áreas de Ministério da Saúde e ampliação de suas demandas. Nesse contexto, surgem encontros voltados para discussão relacionada à AIDS; havendo dois Encontros Nacionais de ONGs/AIDS, um em Belo Horizonte e o segundo em Porto Alegre. (Mott, 1993)
Na década de 1990, surgem vários grupos organizados no Brasil que começam a articular entre si parcerias e apoios em órgãos do governo, trazendo em pauta a retirada da homossexualidade como patologia da Classificação Internacional de Doenças, assim como na lista de doenças do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) feita em 1982. (Green et al.,2018, p. 124).
No ano de 1993, aconteceu o I Encontro Nacional de Travestis e Transexuais, no Rio de Janeiro. Já em 1995, aconteceu o I Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas, que abordaram temas como políticas públicas relacionadas à aids, terapias alternativas, aconselhamento e vacina. A Comissão de Direitos Humanos e a Câmara dos Deputados promoveram em 2003 o I Seminário Nacional de Políticas Afirmativos e Direitos da Comunidade de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBTT) e o principal objetivo era tratar questões de visibilidade e cidadania desses grupos. Em 2005, aconteceram vários Congressos importantes para o Movimento LGBT, onde foram abordados temas como união civil, direitos LGBT e garantia de cidadania, além de políticas públicas de saúde e famílias homoparentais. (Mott, 2015)
2.2 TRANSEXUALIDADE, PRECONCEITO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE LGBT
Instituída pela Portaria 2.836 de 01 de dezembro de 2011, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSI-LGBT) visa promover a saúde da população LGBTQIA+, no intuito de contribuir para a redução de desigualdades, tendo o Sistema Único de Saúde (SUS) como sistema universal e equitativo. (Brasil, 2013, p.09)
Em 2004, o Governo Federal instituiu o programa Brasil sem Homofobia – Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLBT (Gays, Lésbicas, Transgêneros e Bissexuais) e a Promoção da Cidadania de Homossexuais – com objetivo de diferentes ações voltadas para apoiar e fortalecer instituições públicas na promoção da cidadania homossexual e no combate à homofobia, assim como capacitação de profissionais e representais de movimentos homossexuais que atuam em defesa dos direitos humanos. (Ministério da Saúde, 2004)
Nas últimas décadas, a compreensão sobre sexualidade, identidade de gênero e diversidade tem passado por transformações significativas, impulsionadas por avanços nos campos das ciências humanas, sociais e da saúde. Essa evolução tem permitido uma abordagem mais inclusiva sobre temas historicamente invisibilizados, como a vivência de pessoas trans e não binárias. No contexto das políticas públicas brasileiras, destaca-se a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), que, embora inicialmente voltada à população masculina cisgênera, vem sendo pressionada a considerar as especificidades dos homens trans, incluindo aspectos relacionados à saúde reprodutiva e à gestação. A gestação trans, nesse cenário, desafia não apenas os modelos tradicionais de corpo e maternidade, mas também as estruturas institucionais de cuidado, que muitas vezes não estão preparadas para acolher essas demandas com respeito e equidade (Avelino et al. , 2025)
No caso de homens trans e pessoas não binárias que engravidam, o acesso ao pré-natal, parto e puerpério deve ocorrer com base nos mesmos direitos garantidos a qualquer pessoa gestante. Isso inclui o direito a um atendimento humanizado, respeitoso e livre de discriminação, com o uso do nome social, sigilo sobre a identidade de gênero quando desejado, e acesso a informações claras e adequadas sobre saúde sexual e reprodutiva. (Silva et al. 2024; Oliveira et al., 2024; Carfoso et al., 2024; Avelino et al. 2025)
A vivência de homens trans no contexto da saúde reprodutiva revela um cenário marcado por exclusão, desinformação e estigma institucionalizado e convergem para o reconhecimento de que a cisheteronormatividade — ou seja, a normatividade que presume corpos cisgêneros e heterossexuais como padrão — estrutura os serviços de saúde de maneira excludente para pessoas transmasculinas. A presença de homens trans em serviços de pré-natal e ginecologia gera estranhamento e resistência por parte dos profissionais de saúde, como demonstrado por Cardoso et al. (2024), que identificaram estigmas associados à identidade de gênero e à gestação de homens trans, expressos em atitudes de descrédito, rótulos, distanciamento e discriminação. Essa realidade é agravada pela falta de preparo dos profissionais e pela ausência de protocolos específicos que atendam às suas demandas.
Durante o ciclo gravídico-puerperal, essas pessoas enfrentam um aumento da disforia de gênero, frequentemente intensificada por experiências de negligência e invisibilidade nos serviços de saúde. A predominância de uma lógica cisnormativa nos protocolos e formulários institucionais — como a referência exclusiva à “mãe” nos documentos de nascimento — contribui para o apagamento dessas vivências, ainda que pequenas conquistas, como a substituição de “mãe” por “parturiente” em registros oficiais, representem avanços tímidos.
O preconceito também se manifesta na falta de políticas públicas eficazes e na escassez de dados populacionais, o que reforça a invisibilidade das pessoas transmasculinas nos sistemas de informação em saúde. A ausência de linguagem inclusiva e a estrutura de acolhimento baseada em papéis tradicionais de gênero dificultam o acesso equitativo ao cuidado, limitando a autonomia reprodutiva dessas pessoas.(Boff; Santos, 2024)
No entanto, há propostas para romper com esse ciclo de exclusão. A criação de instrumentos como a "Caderneta do Gestante" adaptada para pessoas transmasculinas, bem como a implementação de ambientes de cuidado acolhedores e informados, são caminhos apontados pela literatura como promissores para promover a saúde integral e os direitos reprodutivos dessa população. O reconhecimento da diversidade de experiências de parentalidade — que inclui homens trans como gestantes e cuidadores — exige uma reconceitualização das categorias tradicionais de gênero, gestação e família.
O princípio da equidade do SUS, previsto na Constituição Federal e reforçado na PNSI-LGBT, determina que diferentes sujeitos devem receber atenção conforme suas necessidades específicas. Assim, o respeito às identidades trans durante a gestação não é apenas uma questão de sensibilidade individual dos profissionais de saúde, mas um direito legal e institucionalizado, que deve ser garantido por meio de protocolos, formação profissional e políticas públicas inclusivas. (Silva et al. 2024; Oliveira et al., 2024; Carfoso et al., 2024; Avelino et al. 2025)
Além disso, é fundamental assegurar o direito ao planejamento reprodutivo para pessoas trans, o que inclui o acesso a métodos contraceptivos, à laqueadura, à fertilização assistida e ao direito de decidir sobre a maternidade/paternidade de forma autônoma. A violação desses direitos, seja pela recusa de atendimento ou pela invisibilização dessas experiências nos serviços de saúde, representa uma forma de violência institucional.
Portanto, reconhecer a gestação trans como uma realidade legítima e digna de proteção jurídica, ética e social é uma ação fundamental para consolidar uma política de saúde verdadeiramente integral e inclusiva, como propõem as diretrizes nacionais. É dever do Estado, das instituições e da sociedade civil garantir que a dignidade humana de todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero, seja plenamente respeitada.
Combater o preconceito contra a comunidade trans no campo da saúde requer mais do que ajustes pontuais: exige uma transformação estrutural nos modelos de cuidado, formação profissional e políticas públicas. É necessário afirmar a legitimidade dos corpos e vivências trans, garantindo-lhes respeito, acolhimento e acesso pleno aos direitos reprodutivos.
2.3 GESTAÇÃO TRANS: DESAFIOS DA SAÚDE PÚBLICA E ACOLHIMENTO
A gestação de homens trans representa uma experiência complexa que desafia os padrões normativos de gênero ainda fortemente enraizados nas estruturas sociais e institucionais, sobretudo no sistema de saúde. Embora o direito à parentalidade de pessoas trans seja garantido em princípios legais e éticos, na prática esse direito é frequentemente desrespeitado por barreiras simbólicas, estruturais e relacionais.
Os desafios começam na própria concepção da gestação como fenômeno exclusivamente feminino. Conforme destacam Avelino et al. (2025), os serviços de saúde sexual e reprodutiva estão historicamente organizados a partir de uma lógica cisgênero e heteronormativa, o que torna a presença de homens trans nesses espaços algo visto como “fora do lugar”. Esse estranhamento se materializa na linguagem, na abordagem dos profissionais e na estrutura física e simbólica dos serviços.
Cardoso et al. (2024) evidenciam que a estigmatização da gestação trans se manifesta através de rotulações, estereótipos e práticas discriminatórias por parte de médicas e enfermeiras, principalmente nas unidades de atenção primária. Essa falta de preparo técnico e sensibilidade cultural cria um ambiente hostil, que compromete não apenas a qualidade do cuidado, mas também a saúde mental e emocional do homem trans durante o ciclo gravídico-puerperal.
Outro desafio significativo é o apagamento institucional dessas vivências. Os registros oficiais, formulários, protocolos e mesmo os materiais educativos muitas vezes não contemplam identidades trans, o que contribui para a invisibilidade dessas experiências. A revisão conduzida por Silva et al. (2024) aponta que 98,8% dos artigos científicos sobre gravidez utilizam linguagem voltada exclusivamente para mulheres cisgênero, marginalizando outras expressões de gestação. No campo do acolhimento, iniciativas isoladas como a criação da “Caderneta do Gestante” para pessoas transmasculinas emergem como experiências positivas. Esse tipo de abordagem visa não apenas adaptar a linguagem, mas também reconhecer as especificidades e subjetividades dessa população, contribuindo para um cuidado mais humanizado e inclusivo.
Além disso, Oliveira et al. (2024) destacam a importância de práticas de cuidado que contemplem tanto o aspecto físico quanto o mental da saúde dos homens trans, com atenção ao uso correto de pronomes, respeito ao nome social, oferta de suporte psicológico e a necessidade de capacitação contínua dos profissionais de saúde.
A literatura também alerta para a relação entre disforia de gênero e gestação. O aumento da disforia durante o pré-natal e o parto é um fator recorrente, agravado pela inadequação dos espaços e pela violência simbólica a que esses indivíduos são submetidos. O impacto psicológico dessas vivências pode ser profundo, incluindo ansiedade, depressão e evasão dos serviços de saúde.
Diante de todo o exposto, é imprescindível que a sociedade avance para além do reconhecimento formal dos direitos da população trans, colocando em prática ações efetivas que garantam sua dignidade e pleno acesso à cidadania. A gestação trans, enquanto realidade ainda marginalizada, exige políticas públicas que ampliem a formação de profissionais da saúde, adaptem os serviços com linguagem e acolhimento inclusivos, e promovam campanhas educativas que enfrentem o preconceito e desinformação.
Como proposta de intervenção, recomenda-se a implementação de diretrizes específicas dentro da rede de atenção à saúde do SUS voltadas para a gestação de pessoas trans, incluindo a criação de protocolos de atendimento, materiais informativos inclusivos e mecanismos de denúncia contra discriminação. Também é necessário incluir o tema nas grades curriculares de cursos da área da saúde, para que profissionais estejam capacitados desde sua formação acadêmica.
Além disso, é fundamental o fortalecimento de espaços de escuta e apoio psicológico para pessoas trans em processo de gestação, que enfrentam desafios não apenas físicos, mas também emocionais e sociais. A promoção de campanhas de conscientização para a sociedade em geral pode contribuir para a desconstrução de estigmas e a valorização da diversidade. Somente com ações integradas e efetivas será possível garantir que todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero, tenham seus direitos assegurados e possam viver com respeito, segurança e dignidade. O reconhecimento da gestação trans é mais do que uma questão de saúde: é um compromisso com os direitos humanos e com a construção de uma sociedade verdadeiramente inclusiva. Isso implica reconhecer os homens trans como sujeitos legítimos de cuidado, escutar suas demandas específicas e adaptar as práticas clínicas e administrativas para garantir um atendimento digno, respeitoso e centrado na pessoa.
3 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente texto nos indicou que os direitos da população trans ainda é um constante devir. Nesse sentido, os direitos conquistados até o presente momento não foram concedidos mas processos de lutas que envolvem esses públicos e todos aqueles que se afinam com a causa. Para tanto, sua manutenção e consolidação desses direitos depende de luta e defesa dos mesmos tendo em vista o avanço do tradicionalismo na sociedade contemporânea e, na sociedade brasileira.
No que diz respeito a questão da gestação, como podemos inferir, há que se destacar que trata-se, por igual medida, de um elemento associado ao acesso da população trans junto ao Sistema Único de Saúde. Esse acesso é uma demonstração, uma apresentação de como o direito de acesso a uma política social se mostra importante e necessária. Isso posto, há que se considerar o enorme contingente de pessoas trans que não possui acesso a medicina privada para atenção de demandas atreladas à saúde, inclusive, aquelas que provém da gestação. Por conseguinte, ainda que alguns elementos sejam apresentados como positivos, ainda há várias demandas que precisam e carecem de alinhamento e aprimoramento.
Por conseguinte, estudos como esse requerem também de maior profundidade. Isso porque no presente texto apresentamos alguns elementos pontuais acerca do tema, mas, há que se destacar a necessidade de estudos e pesquisas complementares, como, por exemplo, estudos de campo que nos auxiliem no entendimento e no mapeamento de vivências que são apresentadas por esses segmentos no seu cotidiano. Em larga medida, esperamos que a produção de conhecimento colabore com a sociedade, retornando a essa saberes que colaborem com a minimização de preconceitos e de estereótipos acerca do tema em pauta.
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1 Psicóloga Clínica, graduada na Unip, e, atualmente atende na clínica Amor-Saúde E-mail: [email protected]
2 Docente do Curso Superior de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas da UNIP, Campus Assis. Mestre em Psicologia pela Unesp de Assis, Mestre em História pela Unesp de Assis e Doutora em História pela Unesp de Assis e-mail: [email protected]
3 Disponível em https://www.letras.com/lady-gaga/born-this-way/traducao.html. Acesso: 10 de jun de 2025.