ABORDAGEM CIRÚRGICA DA SEPSE ABDOMINAL: ATUALIZAÇÃO CRÍTICA BASEADA NAS DIRETRIZES INTERNACIONAIS

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.18029119


Fernanda Cristina Galerani Gualtieri Parpinelli


RESUMO
Introdução: A sepse abdominal constitui uma das principais causas de mortalidade cirúrgica em unidades de terapia intensiva, caracterizando-se por resposta inflamatória sistêmica desregulada secundária a infecção intra-abdominal persistente. O controle cirúrgico precoce do foco infeccioso é reconhecido como o fator isolado mais determinante do prognóstico.
Objetivo: Analisar criticamente as estratégias cirúrgicas contemporâneas no manejo da sepse abdominal, com ênfase no source control, no tempo ideal de intervenção, na indicação da cirurgia de controle de danos e na aplicação prática das diretrizes da World Society of Emergency Surgery (WSES 2024).
Métodos: Revisão narrativa crítica da literatura, baseada em diretrizes internacionais, revisões sistemáticas e estudos observacionais de grande impacto, publicados entre 2020 e 2025, nas bases PubMed, Scopus, SciELO e LILACS.
Resultados: As evidências demonstram associação consistente entre atraso no controle do foco infeccioso e aumento exponencial da mortalidade. A cirurgia de controle de danos mostrou benefício significativo em pacientes com instabilidade hemodinâmica, acidose metabólica e coagulopatia, ao permitir interrupção precoce da agressão cirúrgica e ressuscitação fisiológica intensiva. O manejo efetivo depende da integração imediata entre intervenção cirúrgica, antibioticoterapia precoce e suporte intensivo avançado.
Conclusão: A sepse abdominal deve ser tratada como emergência cirúrgica tempo-dependente. A aplicação sistemática das recomendações da WSES 2024, priorizando o controle precoce do foco infeccioso e o uso criterioso da cirurgia de controle de danos, é fundamental para a redução da morbimortalidade associada.
Palavras-chave: Sepse abdominal; Controle do foco; Cirurgia de emergência; Damage control surgery; Diretrizes WSES.

ABSTRACT
Introduction: Abdominal sepsis is one of the leading causes of surgical mortality in intensive care units and is characterized by a dysregulated systemic inflammatory response secondary to persistent intra-abdominal infection. Early surgical control of the infectious source is recognized as the single most important prognostic determinant.
Objective: To critically analyze contemporary surgical strategies in the management of abdominal sepsis, with emphasis on source control, optimal timing of intervention, indications for damage control surgery, and the practical application of the World Society of Emergency Surgery (WSES) 2024 guidelines.
Methods: A critical narrative review of the literature was conducted, based on international guidelines, systematic reviews, and high-impact observational studies published between 2020 and 2025, retrieved from PubMed, Scopus, SciELO, and LILACS databases.
Results: The evidence demonstrates a consistent association between delays in infectious source control and an exponential increase in mortality. Damage control surgery showed significant benefit in patients with hemodynamic instability, metabolic acidosis, and coagulopathy by allowing early interruption of surgical stress and intensive physiological resuscitation. Effective management relies on the immediate integration of surgical intervention, early antimicrobial therapy, and advanced intensive care support.
Conclusion: Abdominal sepsis should be managed as a time-dependent surgical emergency. Systematic implementation of the WSES 2024 recommendations—prioritizing early source control and the selective use of damage control surgery—is essential to reduce the associated morbidity and mortality.
Keywords: Abdominal sepsis; Source control; Emergency surgery; Damage control surgery; WSES guidelines.

1. INTRODUÇÃO

A sepse abdominal representa uma das formas mais graves de infecção intra-abdominal e permanece como importante causa de morbimortalidade cirúrgica em todo o mundo, particularmente em unidades de terapia intensiva. Apesar dos avanços em diagnóstico, antibioticoterapia e suporte intensivo, as taxas de mortalidade associadas à sepse abdominal continuam elevadas, sobretudo quando há atraso no reconhecimento e no controle da fonte infecciosa.

As principais etiologias incluem perfuração de víscera oca, peritonite secundária a apendicite ou diverticulite complicadas, deiscência anastomótica e trauma abdominal. Independentemente da causa inicial, o elemento fisiopatológico central é a persistência da contaminação peritoneal, que desencadeia e sustenta uma resposta inflamatória sistêmica desregulada, culminando em disfunção orgânica progressiva e choque séptico.

Nesse contexto, o controle cirúrgico do foco infeccioso (source control) assume papel central no manejo terapêutico, sendo reconhecido como o principal determinante de sobrevida. Evidências contemporâneas demonstram que a mortalidade aumenta de forma significativa a cada hora de atraso na intervenção cirúrgica, superando inclusive o impacto isolado da antibioticoterapia precoce.

À luz das definições do consenso Sepsis-3 e das diretrizes atualizadas da World Society of Emergency Surgery (WSES 2024), observa-se uma mudança paradigmática no tratamento da sepse abdominal, com crescente valorização do timingcirúrgico, da estratificação fisiológica do paciente e da aplicação seletiva da cirurgia de controle de danos. Essa abordagem reconhece as limitações impostas pela falência orgânica e prioriza a interrupção precoce da agressão séptica, seguida de ressuscitação intensiva e reconstrução cirúrgica definitiva em momento oportuno.

Diante desse cenário, o presente artigo tem como objetivo revisar criticamente as estratégias cirúrgicas contemporâneas no manejo da sepse abdominal, integrando aspectos fisiopatológicos, critérios de gravidade e recomendações internacionais, com foco na tomada de decisão cirúrgica baseada em evidências e na otimização dos desfechos clínicos.

2. METODOLOGIA

Trata-se de revisão narrativa crítica da literatura, conduzida entre janeiro de 2024 e fevereiro de 2025.

Bases de dados: PubMed, Scopus, SciELO, LILACS e documentos oficiais da WSES.

Descritores (MeSH): abdominal sepsis, source control, damage control surgery, peritonitis, open abdomen.

Critérios de inclusão: Diretrizes internacionais, revisões sistemáticas, estudos de coorte e consensos publicados entre 2020 e 2025.

Critérios de exclusão: Relatos de caso isolados, séries pequenas e publicações sem revisão por pares.

3. RESULTADOS

A revisão da literatura, à luz das diretrizes WSES 2024, permitiu identificar três pilares fundamentais que determinam o prognóstico na sepse abdominal: a janela temporal crítica para o controle do foco, os gatilhos fisiológicos para a cirurgia de controle de danos e o manejo do abdome aberto.

3.1. O Desafio Diagnóstico e a Ressuscitação Inicial Guiada por Metas

A identificação precoce da sepse abdominal exige um alto índice de suspeição clínica, uma vez que a apresentação clássica de peritonite pode estar ausente em populações vulneráveis. As diretrizes atuais da World Society of Emergency Surgery (WSES) reforçam que a avaliação clínica isolada, especialmente em pacientes idosos, imunossuprimidos ou sedados sob ventilação mecânica, possui baixa sensibilidade. A Tomografia Computadorizada (TC) de abdome com contraste permanece como o padrão-ouro diagnóstico, apresentando sensibilidade superior a 90% para detecção de coleções, pneumoperitônio e isquemia intestinal.

No entanto, um dilema frequente na sala de emergência é o risco associado ao transporte do paciente hemodinamicamente instável para o setor de radiologia. Nesse contexto, a aplicação da ultrassonografia point-of-care (POCUS) à beira do leito ganhou destaque nas recomendações de 2024. A identificação imediata de líquido livre na cavidade abdominal ou a detecção de pneumoperitônio maciço pelo ultrassom em um paciente chocado pode servir como gatilho suficiente para a indicação cirúrgica imediata, abreviando o tempo até o controle do foco e evitando atrasos logísticos letais.

Paralelamente ao diagnóstico, a estratégia de ressuscitação volêmica não deve, sob nenhuma hipótese, retardar o controle cirúrgico. A administração de cristaloides balanceados (inicialmente 30 ml/kg) deve ser instituída prontamente. Diferente do trauma, onde a hipotensão permissiva é tolerada, na sepse abdominal a otimização da perfusão tecidual é mandatória antes da indução anestésica para evitar o colapso cardiovascular durante a intubação orotraqueal. O uso de vasopressores, preferencialmente a noradrenalina, deve ser iniciado precocemente para manter a Pressão Arterial Média (PAM) > 65 mmHg. Evidências recentes sugerem ainda que o início concomitante de vasopressina em casos de choque refratário pode auxiliar na preservação da microcirculação esplâncnica, prevenindo a isquemia intestinal secundária que perpetua a resposta inflamatória.

3.2. Impacto do Tempo no Controle do Foco (source Control)

As evidências atuais corroboram que a sepse abdominal é uma condição estritamente tempo-dependente. Estudos observacionais de grande impacto, validados pelo WSES Sepsis Group, demonstram que o atraso no controle cirúrgico está associado a um aumento linear e independente na mortalidade [1, 10].

  • A "Janela de Ouro": A intervenção realizada dentro das primeiras 6 horas após o diagnóstico de peritonite grave é identificada como o fator isolado mais determinante para a sobrevida [3, 4].

  • Mortalidade Progressiva: Dados indicam que, após esse período inicial, a mortalidade aumenta significativamente a cada hora de atraso, independentemente da adequação e da precocidade da antibioticoterapia empírica [4, 10].

  • Falha no Controle: A incapacidade de obter o controle primário do foco (source control inadequado) resulta em taxas de reoperação e mortalidade superiores a 30-50% em pacientes com choque séptico, tornando fúteis os esforços subsequentes de terapia intensiva [5].

3.3. Indicações Objetivas para Cirurgia de Controle de Danos (DCS)

A aplicação da cirurgia de controle de danos (Damage Control Surgery) na sepse não traumática mostrou benefício significativo apenas quando indicada precocemente — não como um último recurso desesperado, mas como uma estratégia planejada para interromper a "tríade letal" antes do colapso irreversível [1, 8].

A literatura atual define os seguintes gatilhos fisiológicos intraoperatórios para a conversão imediata de uma cirurgia definitiva para DCS (laparostomia abreviada) [3, 8]:

  • Acidose Metabólica: pH arterial < 7.2, lactato sérico > 5 mmol/L ou déficit de base (BE) < -8.

  • Hipotermia: Temperatura central < 35ºC.

  • Coagulopatia: INR > 1.5 (na ausência de anticoagulação prévia) ou evidência clínica de sangramento microvascular difuso (coagulopatia de consumo).

  • Instabilidade Hemodinâmica: Necessidade de vasopressores em doses crescentes para manter PAM > 65 mmHg apesar da ressuscitação volêmica adequada.

A interrupção precoce da agressão cirúrgica nestes cenários permite o transporte imediato do paciente para a UTI para a restauração da fisiologia, traduzindo-se em maior sobrevida global quando comparada à insistência em procedimentos reconstrutivos longos (anastomoses) em terreno fisiológico hostil [8].

A. Diverticulite Aguda Perfurada (Hinchey III e IV) Historicamente, o procedimento de Hartmann (retossigmoidectomia com colostomia terminal) foi considerado a regra absoluta para peritonites purulentas ou fecais. Contudo, as evidências atuais desafiam esse dogma. Para pacientes hemodinamicamente estáveis com peritonite purulenta (Hinchey III), a lavagem laparoscópica com drenagem emergiu como uma alternativa viável em centros com expertise, embora exija vigilância estrita devido ao risco de coleções residuais. Já para casos de peritonite fecal (Hinchey IV) ou pacientes mais graves, a ressecção com anastomose primária protegida por ileostomia em alça tem ganhado preferência sobre a cirurgia de Hartmann. Estudos indicam que a anastomose primária, quando tecnicamente viável, não apenas evita a morbidade associada a um estoma definitivo — visto que a reversão do procedimento de Hartmann é complexa e frequentemente não realizada — mas também pode oferecer melhores desfechos de qualidade de vida a longo prazo. No entanto, em cenários de instabilidade extrema que exigem cirurgia de controle de danos, a ressecção sem anastomose (apenas estapleamento dos topos intestinais) seguida de abdome aberto permanece a conduta mais segura.

B. Infecções Biliares Graves e Pancreatite Infectada Na colecistite aguda grave associada à sepse (Tokyo Guidelines Grade III), a colecistectomia de emergência em pacientes com múltiplas comorbidades carrega taxas elevadas de mortalidade. A colecistostomia percutânea consolidou-se como uma ponte eficaz ("bridge-to-surgery"), permitindo o controle da fonte infecciosa e a estabilização clínica para uma intervenção definitiva eletiva. Similarmente, na pancreatite necrosante infectada, a abordagem "step-up" (drenagem percutânea ou endoscópica seguida de necrosectomia minimamente invasiva, se necessário) substituiu a necrosectomia aberta precoce, que está associada a hemorragias graves e fístulas pancreáticas. A intervenção cirúrgica aberta deve ser postergada, idealmente, para após a quarta semana de evolução, quando a necrose está delimitada (walled-off necrosis).

C. Isquemia Mesentérica e Necrose Intestinal Esta etiologia representa a forma mais letal de sepse abdominal, exigindo ressecção imediata de todo o segmento necrótico. O desafio intraoperatório reside na definição precisa dos limites de viabilidade intestinal. Nestes casos, a estratégia de second-look programado (revisão da cavidade em 24 a 48 horas) é mandatória. A realização de anastomoses intestinais na primeira abordagem de uma isquemia mesentérica extensa é contraindicada; o risco de deiscência anastomótica e progressão da necrose é proibitivo. O abdome aberto é, portanto, a regra nestes cenários, permitindo a reavaliação direta das alças intestinais após a otimização da perfusão sistêmica na UTI.

Figura 1. Algoritmo de Decisão Cirúrgica na Sepse Abdominal (Baseado na WSES 2024)

4. DISCUSSÃO

A análise das diretrizes WSES 2024 revela uma evolução conceitual marcante no tratamento da sepse abdominal: a transição de uma abordagem puramente "anatomocêntrica" (focada apenas no reparo cirúrgico) para uma abordagem "fisiocêntrica" (focada na preservação da vida e limitação do dano metabólico).

4.1 O Paradigma da Estabilização Fisiológica Enquanto historicamente a cirurgia definitiva imediata era a regra absoluta, as evidências atuais sugerem que, em pacientes com falência orgânica estabelecida, a insistência em reparos complexos (como anastomoses intestinais primárias) em um ambiente de acidose e hipoperfusão aumenta proibitivamente o risco de deiscências e mortalidade. A validação da cirurgia de controle de danos (DCS) para a sepse não traumática representa um avanço crucial, mas exige cautela. A crítica central que emerge da literatura recente é o risco do "uso excessivo" da técnica (overuse). A DCS não deve ser o padrão para todos, mas sim uma ferramenta de resgate para aqueles que preenchem os critérios de instabilidade refratária.

Quadro 1. Mudança de Paradigma: Abordagem Tradicional vs. Atual

AspectoAbordagem TradicionalAbordagem Atual (WSES 2024)
Prioridade CirúrgicaAnatomia: Reparar tudo na primeira cirurgia (anastomoses, reconstruções).Fisiologia: Interromper a contaminação e estabilizar o paciente (Life over limb).
Tempo de Intervenção"O mais rápido possível" (conceito vago).Emergência tempo-dependente: Meta ideal < 6h para controle do foco.
Cirurgia de Controle de DanosReservada apenas para trauma grave.Indicada para sepse abdominal com instabilidade hemodinâmica e falência metabólica.
Manejo AbdominalFechamento primário ou drenos simples.Uso liberal de Abdome Aberto com terapia por pressão negativa em casos graves.
AntibioticoterapiaCiclos longos e fixos (7-14 dias).Ciclos curtos, guiados pela eficácia do controle do foco e biomarcadores (ex: Procalcitonina).

4.2 O Dilema do Abdome Aberto

A laparostomia, embora salvadora de vidas ao prevenir a síndrome de compartimento abdominal, introduz uma nova morbidade: o abdome hostil. A revisão aponta que o benefício de sobrevivência inicial pode ser anulado por complicações tardias, como fístulas enteroatmosféricas e perdas hidroeletrolíticas graves, se o fechamento não for priorizado. Portanto, a discussão moderna não é apenas sobre como abrir, mas sobre estratégias agressivas para fechar a parede abdominal o mais cedo possível (idealmente dentro da primeira semana), utilizando sistemas de pressão negativa para manter o domínio do espaço abdominal.

4.2.1. O Desafio Fisiológico do Abdome Aberto na Terapia Intensiva

A decisão de manter o abdome aberto (laparostomia), embora salvadora de vidas ao prevenir a síndrome de compartimento abdominal, impõe um "segundo golpe" fisiológico ao paciente crítico. A exposição visceral e a peritoniostomia resultam em perdas massivas de fluidos ricos em proteínas e eletrólitos, que podem atingir 2 a 3 litros diários, exigindo uma reposição hidroeletrolítica meticulosa guiada por metas dinâmicas.

Do ponto de vista nutricional, persiste o mito de que pacientes com abdome aberto não podem receber nutrição enteral. Pelo contrário, as diretrizes da WSES e da European Society of Intensive Care Medicine recomendam o início precoce de nutrição enteral (dentro de 24-48 horas), mesmo em baixos volumes (trófica). A presença de nutrientes no lúmen intestinal é vital para manter a integridade da barreira mucosa, prevenir a atrofia vilosa e reduzir a translocação bacteriana. A instabilidade hemodinâmica controlada (com doses estáveis ou decrescentes de vasopressores) não contraindica a dieta, desde que haja monitoramento rigoroso para sinais de intolerância ou isquemia intestinal não-oclusiva.

Quanto ao fechamento, o uso de sistemas de pressão negativa (Vácuo) demonstrou superioridade técnica em relação a métodos passivos (como a Bolsa de Bogotá). O sistema a vácuo exerce tração medial contínua nas bordas da aponeurose, prevenindo a retração lateral que leva ao "abdome congelado", além de remover ativamente citocinas inflamatórias e reduzir o edema das alças

4.3 Desafios na Era da Multirresistência 

Outro ponto crítico, frequentemente subestimado em protocolos cirúrgicos puramente técnicos, é o manejo antimicrobiano. Diferente de diretrizes passadas, a WSES 2024 enfatiza que o source control eficaz permite encurtar a duração da antibioticoterapia, mas a escolha empírica inicial deve ser guiada rigorosamente pela ecologia local e fatores de risco para patógenos multirresistentes (MDR). A simples escalada de antibióticos sem drenagem efetiva do foco é fútil; a "faca" do cirurgião continua sendo o melhor "antibiótico" para a sepse abdominal.

4.4 Limitações

É importante ressaltar que grande parte das evidências sobre o timing exato da intervenção provém de estudos observacionais, havendo carência de ensaios clínicos randomizados robustos que definam janelas terapêuticas precisas para subgrupos específicos, como idosos frágeis e imunossuprimidos

4.5. Stewardship Antimicrobiano e o Manejo de Multirresistentes

A terapia antimicrobiana na sepse abdominal vive um momento de transição paradigmática. Estudos recentes, validados pelas diretrizes da WSES 2024, demonstram que ciclos curtos de antibióticos (4 a 5 dias) após o controle adequado do foco são tão eficazes quanto ciclos longos, com a vantagem crucial de reduzir a pressão seletiva para resistência bacteriana e o risco de infecção por Clostridioides difficile.

No entanto, a escolha empírica inicial tornou-se um desafio complexo devido à disseminação global de enterobactérias produtoras de beta-lactamase de espectro estendido (ESBL) e enterobactérias resistentes a carbapenêmicos (CRE). A estratificação de risco é essencial:

  1. Pacientes de Baixo Risco: Em infecções comunitárias sem choque séptico, esquemas baseados em cefalosporinas de 3ª geração associadas ao metronidazol continuam sendo a base terapêutica.

  2. Pacientes de Alto Risco: Em cenários de choque séptico, infecção hospitalar prévia ou exposição recente a antibióticos, a terapia deve ser ampla e agressiva (ex: Carbapenêmicos ou Piperacilina-Tazobactam), com descalonamento (de-escalation) obrigatório guiado por culturas assim que os resultados microbiológicos estiverem disponíveis.

O Papel dos Antifúngicos: A cobertura empírica para Candida spp. não deve ser rotineira. As recomendações atuais reservam o uso de equinocandinas (primeira linha em pacientes críticos) para situações específicas: perfurações gastroduodenais tardias, peritonites terciárias (recorrentes), pacientes imunossuprimidos ou aqueles em choque séptico refratário com múltiplos focos de colonização por fungos (Candida score elevado). O uso indiscriminado de antifúngicos aumenta custos e toxicidade sem benefício comprovado na sobrevida global.

5. CONCLUSÃO

A análise crítica das evidências recentes e das diretrizes da WSES 2024 confirma que a sepse abdominal não permite hesitação terapêutica. A sobrevivência do paciente não depende apenas da habilidade técnica do cirurgião, mas fundamentalmente da sua capacidade de julgamento fisiológico e da rapidez na tomada de decisão.

Conclui-se que:

  1. O Tempo é Tecido e Vida: A janela de 6 horas para o controle do foco constitui o limite de segurança; ultrapassá-lo sob a justificativa de "estabilização clínica" em um paciente com foco não drenado é uma estratégia falha que aumenta exponencialmente a mortalidade.

  2. Respeito à Fisiologia: A indicação da cirurgia de controle de danos (Damage Control) não deve ser baseada na intuição, mas sim no reconhecimento objetivo dos gatilhos de exaustão fisiológica (acidose, hipotermia e coagulopatia). A insistência em cirurgias definitivas prolongadas em terreno hostil é um erro evitável.

  3. Abordagem Multidisciplinar: O manejo moderno exige o fim do isolamento entre as especialidades. A integração entre o controle cirúrgico agressivo, a terapia intensiva guiada por metas e a antibioticoterapia racional (stewardship) é a única via para reduzir os índices inaceitáveis de letalidade atuais.

Em suma, a mudança do paradigma "anatomocêntrico" para o "fisiocêntrico" não é apenas uma tendência teórica, mas uma necessidade prática imperativa para a melhoria dos desfechos na sepse abdominal grave.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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