A TEORIA DO ETIQUETAMENTO SOCIAL E A REINCIDÊNCIA CRIMINAL NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

PDF: Clique aqui


REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17556459


Gracielle Almeida de Aguiar1


RESUMO
A reincidência criminal no Brasil não é apenas um indicador de falha do sistema penal, mas um reflexo de dinâmicas sociais e institucionais mais amplas, que perpetuam desigualdades e marginalizações históricas. A Teoria do Etiquetamento Social (Labeling Theory), desenvolvida por Howard Becker e Erving Goffman, fornece um arcabouço teórico fundamental para compreender como o processo de criminalização e rotulagem dos indivíduos como “delinquentes” contribui para a manutenção de ciclos de exclusão social. Inserido em um contexto de encarceramento em massa, o sistema prisional brasileiro tende a reforçar o estigma e a invisibilidade social, dificultando o rompimento com trajetórias criminais e inviabilizando a ressocialização. O presente estudo adota uma abordagem qualitativa, com revisão bibliográfica e análise documental de relatórios do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), além de estudos acadêmicos sobre reincidência e execução penal. Os resultados indicam que a rotulagem institucional e a seletividade penal são fatores decisivos na reprodução da reincidência. Argumenta-se, por fim, que políticas alternativas, como o método APAC, demonstram maior eficácia ao valorizar a dimensão humana do condenado, rompendo parcialmente com a lógica da exclusão.
Palavras-chave: Reincidência criminal. Estigmatização. Teoria do Etiquetamento Social. Sistema prisional. Reintegração social.

ABSTRACT
Criminal recidivism in Brazil is not merely an indicator of penal system failure but a reflection of broader social and institutional dynamics that perpetuate historical inequalities and marginalization. The Labeling Theory, developed by Howard Becker and Erving Goffman, provides a fundamental framework for understanding how the process of criminalization and the labeling of individuals as “delinquents” contribute to cycles of social exclusion. Within a context of mass incarceration, the Brazilian prison system reinforces stigma and social invisibility, hindering the breaking of criminal trajectories and undermining resocialization. This study adopts a qualitative approach, combining bibliographic review and documentary analysis of reports from the National Penitentiary Department (DEPEN) and the National Council of Justice (CNJ), along with academic research on recidivism and penal execution. The findings indicate that institutional labeling and penal selectivity are key factors in the reproduction of recidivism. It is argued that alternative models, such as the APAC method, show greater effectiveness by valuing the human dimension of the offender and partially breaking with the logic of exclusion.
Keywords: Criminal recidivism. Stigmatization. Labeling Theory. Prison system. Social reintegration.

1. INTRODUÇÃO

A reincidência criminal no Brasil constitui um dos indicadores mais expressivos do fracasso das políticas de execução penal. Mais do que um dado estatístico, trata-se de um fenômeno que revela as deficiências estruturais do sistema prisional e a persistência de desigualdades sociais que o alimentam. As elevadas taxas de retorno ao cárcere evidenciam a incapacidade do Estado em promover a ressocialização e garantir o exercício pleno da cidadania dos egressos (Sapori; Santos; Maas, 2017).

A partir da perspectiva da Teoria do Etiquetamento Social (Labeling Theory), é possível compreender que o desvio não é uma conduta isolada, mas um processo social de construção identitária e de reação institucional. De acordo com Becker (1963), os grupos sociais criam o desvio ao estabelecer regras e aplicá-las seletivamente, rotulando determinados indivíduos como outsiders — termo utilizado pelo autor para designar aqueles que são percebidos como “de fora” da ordem social, ou seja, pessoas marginalizadas por não se conformarem às normas predominantes. Esse processo de rotulação, ao definir quem é considerado desviante, cria e reforça as fronteiras morais da sociedade.

Complementarmente, Lemert (1951) distingue entre o desvio primário, que compreende atos iniciais de transgressão ainda não rotulados, e o desvio secundário, que ocorre quando o indivíduo internaliza o rótulo social de desviante e passa a agir conforme essa identidade. Nessa mesma linha, Goffman (1963) conceitua o estigma como um atributo que degrada a identidade social do indivíduo, convertendo-o em alguém “marcado” e permanentemente associado a uma identidade deteriorada, mesmo após o cumprimento da pena.

No contexto brasileiro, a lógica da rotulagem se intensifica diante de um sistema penal seletivo e racialmente orientado. Wacquant (2001) argumenta que as sociedades contemporâneas vivem um processo de “expansão do Estado penal”, no qual a punição substitui as políticas sociais e reforça o controle sobre grupos marginalizados, especialmente os pobres e negros das periferias. Essa análise é particularmente pertinente ao caso brasileiro, em que o encarceramento em massa é utilizado como resposta a problemas sociais historicamente negligenciados (Adorno, 2019).

Dessa forma, o sistema prisional brasileiro não apenas falha em cumprir sua função ressocializadora, mas também reforça os mecanismos de exclusão e marginalização. A Teoria do Etiquetamento Social fornece, portanto, um instrumental analítico para compreender como o estigma institucionalizado no cárcere contribui para a manutenção do ciclo da reincidência e para o fracasso das políticas penais tradicionais.

Nesse cenário, a presente pesquisa busca responder à seguinte questão: de que modo o sistema prisional brasileiro, ao operar sob a lógica da estigmatização prevista pela Teoria do Etiquetamento Social, reforça a marginalização dos apenados e impede sua efetiva reintegração social?

O objetivo geral consiste em analisar a relação entre o labeling process e a reincidência criminal, investigando como a rotulagem institucional e social contribui para a manutenção de comportamentos delituosos e para a perpetuação da exclusão. Especificamente, pretende-se discutir os efeitos do encarceramento na identidade social do egresso e avaliar políticas públicas alternativas à prisão, como o método APAC, que buscam romper com o paradigma punitivista.

A relevância desta pesquisa reside na necessidade de repensar o papel do sistema prisional à luz de teorias sociológicas críticas, demonstrando que a persistência da reincidência não decorre apenas de falhas individuais, mas de mecanismos estruturais de desigualdade e estigmatização. Ao articular os aportes teóricos de Becker, Goffman e Wacquant aos dados empíricos sobre reincidência, busca-se contribuir para o debate sobre políticas criminais orientadas pela dignidade humana, pela justiça restaurativa e pela reintegração social efetiva.

2. METODOLOGIA

A pesquisa adota uma abordagem qualitativa e exploratória, adequada à natureza interpretativa do problema. Utilizou-se o método indutivo, com base em revisão bibliográfica e análise documental. A revisão bibliográfica contemplou autores clássicos e contemporâneos da criminologia e da sociologia do desvio, incluindo Becker (2008), Goffman (1988), Lemert (1951), Wacquant (2001) e Garland (2008). Foram também analisadas produções brasileiras sobre reincidência e execução penal (Adorno, 2019; Sapori et al., 2017).

Na análise documental, foram examinados relatórios do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), especialmente o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), e publicações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Destaca-se que a metodologia privilegiou a triangulação entre teoria, evidências empíricas e análise crítica do discurso jurídico-penal, buscando compreender como a estrutura institucional e simbólica da punição influencia as trajetórias de reincidência.

3. REFERENCIAL TEÓRICO

A chamada Teoria do Etiquetamento Social (Labeling Theory) desenvolvida no âmbito da sociologia interacionista parte da premissa de que o desvio não é uma qualidade intrínseca ao ato ou ao indivíduo, mas sim o resultado de um processo social de rotulação e estigmatização (Becker, 1963). Segundo Howard Becker (1963), “os grupos sociais criam o desvio ao estabelecerem regras cuja infração constitui o desvio, e ao aplicarem essas regras a pessoas específicas, rotulando-as como outsiders”. Já Edwin Lemert, ao distinguir desvio primário e secundário, explica que o primeiro refere-se a atos iniciais ainda não rotulados institucionalmente, enquanto o segundo decorre da internalização do rótulo e da assunção de uma identidade desviante (Lemert, 1951).

Em complemento, Erving Goffman (1963) trata o estigma como uma marca social que reduz o indivíduo a uma “identidade manchada”, limitando suas possibilidades de interação e participação social plena. A interconexão entre a teoria interacionista e a sociologia do desvio revela que a rotulagem exerce efeitos tanto sociais quanto individuais: a reação de outros ao ato desviante pode transformar a identidade do sujeito e perpetuar o comportamento desviante (Bernburg, 2019).

No âmbito da criminologia, a teoria do etiquetamento sugere que a intervenção penal — prisional ou judicial — pode amplificar o risco de reincidência ao conferir ao indivíduo um status de “desviante” que passa a orientar suas relações sociais e oportunidades (Besemer et al., 2017). A crítica à teoria evidencia, no entanto, que ela não explica completamente por que se cometem os atos iniciais desviantes, nem sempre há internalização dos rótulos e nem todo rotulado reincide (Knutsson, 1975).

Em contexto mais amplo, a obra de Loïc Wacquant (2001) sobre o “Estado penal” analisa como o sistema de justiça criminal contemporâneo tornou-se veículo de controle social, especialmente de populações pobres e periféricas, reforçando o caráter seletivo da punição. Esse enfoque estrutural complementa o foco micro da teoria do etiquetamento, ao mostrar que não apenas o rótulo importa, mas o contexto de desigualdade, racismo institucional e segregação social que define quem é passível de rotulação.

No Brasil, marcado por forte seletividade penal — o encarceramento massivo de negros, jovens e pessoas de baixa escolaridade — a teoria do etiquetamento mostra-se particularmente útil para explicar a persistência da reincidência como fenômeno social e institucional. A experiência carcerária brasileira, com condições precárias, punição predominantemente repressiva e escassa atenção à reinserção, favorece a internalização do rótulo de “egresso” ou “ex-presidiário”, com consequências identitárias negativas. Estudos recentes demonstram que o estigma da entrada no sistema penal, somado à exclusão social pós-pena, atua como facilitador de trajetórias de reincidência: o indivíduo rotulado passa a ser percebido e tratado como “risco”, restringindo emprego, moradia e redes de apoio.

A aplicação da teoria do etiquetamento ao campo da reincidência implica reconhecer que o retorno ao crime não é apenas função de falhas individuais ou de políticas isoladas, mas parte de um mecanismo que envolve rotulação institucional, estigmatização social e limitações estruturais. Dentro desse marco, as políticas de execução penal que ignoram o aspecto simbólico da punição — ou seja, o impacto identitário da rotulagem — tendem a reproduzir o ciclo de exclusão e reincidência, em vez de revertê-lo. O modelo tradicional de prisão, ao tratar o egresso como um sujeito marcado, reforça o efeito “máster status” do rótulo criminoso, segundo Becker, no qual esse rótulo passa a dominar todas as outras identidades possíveis do indivíduo.

Alternativas à prisão que incorporam práticas de reintegração, reconstrução identitária e valorização dos vínculos comunitários alinham-se à perspectiva da teoria do etiquetamento ao neutralizar ou reduzir o impacto do rótulo negativo. Por exemplo, projetos de reinserção que evitam a nomenclatura “ex-presidiário”, priorizam a identificação como “egresso em reinserção”, e envolvem a comunidade como agente de apoio, podem reduzir o peso da rotulação social e favorecer trajetórias distintas.

Assim, a intersecção entre teoria do etiquetamento e justiça restaurativa revela que a reconstrução social do sujeito rotulado — e não apenas sua punição — é central para romper o ciclo de reincidência. Do ponto de vista metodológico, pesquisas sobre rotulagem e reincidência recomendam o uso de indicadores longitudinais, reconstrução da identidade pós-pena e mensuração dos efeitos da estigmatização, para que se compreenda a dinâmica entre rótulo, contexto social e comportamento.

Em síntese, o referencial teórico fundamentado na teoria do etiquetamento e ampliado por abordagens estruturais permite compreender a reincidência criminal como fenômeno que ultrapassa o mérito individual e revela falhas profundas no sistema penal e na reinserção social.

4. RESULTADOS E DISCUSSÕES OU ANÁLISE DOS DADOS

A análise dos dados revelou que a reincidência criminal no Brasil é um fenômeno multifatorial, no qual variáveis sociais, econômicas e institucionais interagem de maneira complexa. A ausência de políticas consistentes de reintegração, o estigma social e a precariedade das condições carcerárias formam um ciclo que reproduz a marginalização.

Segundo levantamento conjunto do DEPEN e da UFPE (Carrillo et al., 2022), 21,2% dos egressos reincidem no primeiro ano e 37,6% retornam ao cárcere em até cinco anos, números que evidenciam a ineficiência das políticas prisionais. Dados apontam que aproximadamente 21% dos egressos do sistema prisional brasileiro reincidem no crime já no primeiro ano de liberdade, e que essa taxa sobe para cerca de 38,9% no período de cinco anos após a saída do cárcere (DEPEN & UFPE, 2022). Esse nível expressivo de reincidência revela que o retorno ao delito não ocorre apenas em casos isolados, mas constitui um fenômeno estrutural, exigindo que as políticas penais e de reinserção considerem os determinantes sociais, econômicos e institucionais que incubam o ciclo da exclusão.

Paralelamente, levantamento divulgado pelo portal “Portal para Liberdade” com base em mais de cem estudos empíricos no Brasil estima uma média de reincidência por volta de 32% (Instituto Igarapé, 2022). Mesmo sendo inferior às taxas maximalistas frequentemente divulgadas na mídia, esse número confirma que o problema transcende o âmbito meramente jurídico: a reincidência funciona como indicador de falha no processo de reintegração social, de fragilidade dos vínculos pós-pena e de persistência de estigmas que acompanham os egressos do sistema penal.

Esses índices variam conforme o perfil do egresso: homens jovens, negros, com baixa escolaridade e histórico de envolvimento precoce com o crime apresentam maior propensão à reincidência. Essa constatação reforça a tese de Wacquant (2001) sobre a “criminalização da pobreza”, segundo a qual o Estado penal contemporâneo substitui políticas sociais por políticas de encarceramento.

A Teoria do Etiquetamento ajuda a compreender como o estigma institucionalizado reforça essas dinâmicas. Becker (2008) argumenta que o desvio secundário — aquele que surge após o indivíduo ser rotulado — é consequência direta da reação social e da exclusão. O preso, ao sair, encontra-se simbolicamente marcado: o “ex-presidiário” é uma categoria social estigmatizada, cujas oportunidades de inserção são drasticamente reduzidas. Goffman (1988) complementa essa análise ao destacar que o estigma é uma forma de controle social que reduz o indivíduo a uma identidade deteriorada.

No Brasil, a rotulagem é intensificada por uma cultura punitiva que associa o crime à culpa moral e à inferioridade pessoal. A mídia, ao reforçar estereótipos sobre “bandidos”, contribui para consolidar o imaginário social de que o preso é irrecuperável. Esse discurso legitima a exclusão e sustenta a política de encarceramento em massa.

Por outro lado, experiências como o método APAC demonstram que é possível romper com essa lógica. Baseado em disciplina, trabalho, espiritualidade e corresponsabilidade, o modelo apresenta taxas de reincidência em torno de 15% (Gonçalves, 2024). A filosofia APAC valoriza a dignidade do ser humano e a reconstrução de vínculos sociais, elementos que a Teoria do Etiquetamento identifica como essenciais para a ruptura com o estigma.

O supracitado constitui uma proposta brasileira de execução penal humanizada, desenvolvida em 1972, na cidade de São José dos Campos (SP), pelo advogado e jornalista Mário Ottoboni. Idealizado inicialmente como uma experiência comunitária vinculada à Pastoral Carcerária, o método foi posteriormente institucionalizado com a criação da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), entidade responsável por coordenar e supervisionar as unidades APAC em parceria com o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A filosofia que orienta o método se baseia na recuperação integral da pessoa humana, fundada em valores como a confiança, a corresponsabilidade e o respeito à dignidade. Em oposição ao modelo prisional tradicional, a APAC propõe um ambiente sem o uso de agentes armados ou policiais, estruturado sobre o princípio de que o condenado — denominado recuperando — deve participar ativamente de seu próprio processo de reabilitação.

Os resultados obtidos nas unidades APAC demonstram a eficácia do modelo: as taxas de reincidência variam entre 15% e 20%, significativamente inferiores aos índices observados no sistema penitenciário convencional, que ultrapassam 40% (Gonçalves, 2024; CNJ, 2023). Além disso, os custos operacionais são menores, e os episódios de violência interna são quase inexistentes.

A experiência das APACs reforça a hipótese de que a humanização da pena e o reconhecimento da subjetividade do apenado são fatores decisivos na redução da reincidência. Ao romper com o paradigma punitivo e aproximar-se de uma perspectiva restaurativa, o método concretiza, em termos práticos, os pressupostos da Teoria do Etiquetamento Social, ao oferecer ao indivíduo a possibilidade de reconstruir sua identidade para além do estigma de “criminoso”.

Assim a comparação entre os modelos evidencia que o problema da reincidência não é apenas jurídico, mas profundamente simbólico e social. Enquanto o sistema tradicional reproduz a exclusão, modelos humanizados demonstram que a reconstrução identitária e a participação comunitária são fatores decisivos para evitar o retorno ao crime.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise desenvolvida ao longo deste estudo evidencia que a reincidência criminal no Brasil está intrinsecamente relacionada aos mecanismos de estigmatização social e institucional descritos pela Teoria do Etiquetamento Social. O sistema prisional, longe de cumprir sua função ressocializadora, revela-se um instrumento de reprodução das desigualdades, operando sob uma lógica punitiva e seletiva que recai, de forma desproporcional, sobre indivíduos pobres, negros e periféricos.

A pesquisa demonstrou que o encarceramento em massa, ao invés de reduzir a criminalidade, reforça ciclos de exclusão, cristalizando a identidade do “criminoso” e dificultando o retorno do egresso à vida em sociedade. A ausência de políticas públicas eficazes de reintegração social, associada à precariedade das condições prisionais, acentua o caráter desumanizador do sistema, transformando o cárcere em um espaço de degradação e não de reeducação.

Sob essa perspectiva, o sistema penal brasileiro deve ser compreendido como parte de um modelo de controle social excludente, cuja função simbólica é mais voltada à reafirmação de uma ordem social desigual do que à efetiva promoção da justiça. Conforme argumenta Wacquant (2001), o Estado penal moderno assume o papel de administrar a marginalidade, utilizando o cárcere como instrumento de gestão da pobreza e da insegurança. Esse diagnóstico é especialmente válido para o Brasil, onde a expansão carcerária convive com a ausência de políticas sociais básicas e com a ineficiência na execução penal.

A experiência das Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (APACs), embora ainda limitada em alcance, demonstra que modelos humanizados e comunitários de execução da pena podem produzir resultados concretos na redução da reincidência e na reconstrução da dignidade dos condenados. Tais experiências reforçam a tese de que o caminho para um sistema penal mais justo não está na intensificação da punição, mas na revalorização do indivíduo e na promoção de sua reinserção social efetiva.

É imprescindível reconhecer que a reincidência criminal não decorre apenas de falhas individuais, mas de falhas estruturais e políticas. Assim, torna-se urgente fomentar pesquisas empíricas interdisciplinares que articulem o Direito, a Sociologia e as Ciências Políticas, a fim de produzir diagnósticos mais precisos sobre as causas da reincidência e os impactos das políticas penais vigentes. O investimento em pesquisa aplicada e baseada em evidências é condição indispensável para o desenho de políticas públicas integradas que assegurem oportunidades reais de recomeço para egressos do sistema prisional.

Conclui-se que somente por meio da articulação entre conhecimento científico e ação estatal será possível romper com o paradigma do encarceramento punitivista e consolidar uma política criminal orientada pela dignidade humana, pela justiça social e pela reconstrução da cidadania. O desafio, portanto, não é apenas jurídico, mas ético e político: construir um sistema penal que reconheça no indivíduo em conflito com a lei não um inimigo, mas um sujeito de direitos em potencial processo de reconstrução social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Adorno, Sérgio. Sociologia e justiça: estudos sobre o Judiciário. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

Becker, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 [1963]. Disponível em: https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788537818268/outsiders. Acesso em: 09 abr. 2025.

Bernburg, Jón Gunnar. Labeling theory. Journal of Crime and Justice, v. 42, n. 5, p. 573–585, 2019. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s12103-025-09854-3. Acesso em: 10 abr. 2025.

Besemer, Sytske; Farrington, David P.; Bijleveld, Catrien C. J. H. Labeling and intergenerational transmission of crime: the interaction between criminal justice intervention and a convicted parent. PLoS ONE, v. 12, n. 3, 2017. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC5342201/. Acesso em: 09 abr. 2025.

Brasil. Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN. Brasília: Ministério da Justiça, 2021. Disponível em: https://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias. Acesso em: 10 abr. 2025.

Brasil. Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Reincidência criminal no Brasil. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública; Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), 2022. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/depen-divulga-relatorio-previo-de-estudo-inedito-sobre-reincidencia-criminal-no-brasil. Acesso em: 09 abr. 2025.

Brasil. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Dispõe sobre a execução penal. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 13 jul. 1984. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 11 abr. 2025.

Carrillo, Bladimir; Sampaio, Breno (coord.); Britto, Diogo G. C.; Sampaio, Gustavo; Vaz, Paulo; Sampaio, Yony. Reincidência criminal no Brasil. Brasília: Departamento Penitenciário Nacional; Grupo de Avaliação de Políticas Públicas e Econômicas da Universidade Federal de Pernambuco (GAPPE/UFPE), 2022.

Corrêa, Maiara. Dados sobre reincidência criminal no Brasil apresentam equívocos. Jornal da USP no Ar, São Paulo, 13 jul. 2023. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/dados-sobre-reincidencia-criminal-no-brasil-apresentam-equivocos/. Acesso em: 11 abr. 2025.

Goffman, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Tradução: Mathias Lambert. Rio de Janeiro: LTC, 1988 [1963]. Disponível em: https://www.mprj.mp.br/documents/20184/151138/goffman,erving.estigma_notassobreamanipulacaodaidentidadedeteriorada.pdf.

Gonçalves, Paulo José. O modelo APAC e humanização da pena: uma análise detalhada dos dados e da estatística comparadas. Revista Brasileira de Execução Penal, Brasília, v. 5, n. 1, p. 310–323, jan./jun. 2024.

Instituto Igarapé. Qual a taxa de reincidência no Brasil e que fatores contribuem para que pessoas que já estiveram privadas de liberdade voltem para a prisão? Revista/Portal Para Liberdade [online], 2022. Disponível em: https://portalparaliberdade.igarape.org.br/estudos/. Acesso em: 12 jun. 2025

Knutsson, Johannes. Labeling theory – a critical examination. Scandinavian Studies in Criminology, v. 5, p. 75–94, 1975. Disponível em: https://www.ojp.gov/ncjrs/virtual-library/abstracts/labeling-theory-critical-examination. Acesso em: 11 abr. 2025.

Lemert, Edwin M. Social pathology: a systematic approach to the theory of sociopathic behavior. New York: McGraw-Hill, 1951.

Nev-USP. A volta ao erro – quantos ex-detentos voltam a cometer crimes? Revista FAPESP, São Paulo, 15 jun. 2023. Disponível em: https://nev.prp.usp.br/noticias/15-6-2023-nev-na-midia-revista-fapesp-a-volta-ao-erro-quantos-ex-detentos-voltam-a-cometer-crimes/. Acesso em: 11 abr. 2025.

Sapori, Luis Flávio; Santos, Roberta Fernandes; Maas, Lucas Wan Der. Fatores sociais determinantes da reincidência criminal no Brasil: o caso de Minas Gerais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, 2017. Disponível em: 10.17666/329409/2017" target="_new">https://doi.org/10.17666/329409/2017. Acesso em: 11 abr. 2025.

Wacquant, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.


1 Psicóloga. Mestranda em Psicologia na Universidade Federal de Santa Maria-RS. Graduanda em Direito na Faculdade de Ciências Jurídicas de Santa Maria-RS. E-mail: [email protected]