A RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO: A EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL BRASILEIRA E OS IMPACTOS NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17221476
Lilia Gyslla Coelho Louzada1
Fagner da Rocha Rosa2
RESUMO
O artigo tem como tema a responsabilidade civil decorrente do abandono afetivo parental, abordando a evolução da jurisprudência brasileira e os impactos dessa conduta no desenvolvimento infantil. O objetivo central visa analisar como o entendimento jurídico tem se consolidado sobre a possibilidade de indenização por danos morais em casos de omissão injustificada no dever de cuidado, ressaltando também os impactos emocionais e sociais causados à criança. A metodologia adotada consistiu em pesquisa bibliográfica e documental, com base na Constituição Federal, no Código Civil, no Estatuto da Criança e do Adolescente, em doutrinas e na análise de precedentes do Superior Tribunal de Justiça, destacando a virada jurisprudencial ao longo dos anos, quando passou a ser reconhecida a indenização em decorrência de abandono afetivo. Os resultados demonstram que, embora inicialmente houvesse resistência ao reconhecimento do dano moral, o entendimento atual é de que o dever de cuidado é obrigação jurídica dos pais e, quando descumprido e comprovado os prejuízos quanto à formação psicológica do filho, configura ato ilícito passível de reparação. Além disso, o estudo evidenciou os efeitos do abandono afetivo, como baixa autoestima, dificuldades relacionais e maior predisposição a transtornos psíquicos, reforçando a importância de políticas públicas e decisões judiciais que assegurem vínculos afetivos estáveis e a proteção integral da criança e do adolescente.
Palavras-chave: Abandono afetivo. Responsabilidade civil. Jurisprudência. Família. Desenvolvimento infantil.
ABSTRACT
This article addresses civil liability arising from parental emotional abandonment, addressing the evolution of Brazilian case law and the impacts of this behavior on child development. The main objective is to analyze how legal understanding has consolidated regarding the possibility of compensation for moral damages in cases of unjustified omission of the duty of care, also highlighting the emotional and social impacts caused to the child. The methodology adopted consisted of bibliographical and documentary research, based on the Federal Constitution, the Civil Code, the Child and Adolescent Statute, doctrines, and analysis of precedents from the Superior Court of Justice, highlighting the shift in case law over the years, when compensation for emotional abandonment began to be recognized. The results demonstrate that, although there was initially resistance to recognizing moral damages, the current understanding is that the duty of care is a legal obligation of parents and, when breached and the harm to the child's psychological development is proven, constitutes a wrongful act subject to reparation. Furthermore, the study highlighted the effects of emotional abandonment, such as low self-esteem, relationship difficulties, and a greater predisposition to psychological disorders, reinforcing the importance of public policies and judicial decisions that ensure stable emotional bonds and the comprehensive protection of children and adolescents.
Keywords: Emotional abandonment. Civil liability. Jurisprudence. Family. Child development.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 (CRFB/88) estabelece família como núcleo privilegiado da vida social, impondo ao Estado, à sociedade e à família a responsabilidade compartilhada pela proteção e promoção de seus membros, especialmente das crianças e adolescentes. Em seus dispositivos centrais, reconhece a família como instituição essencial para o desenvolvimento humano e para a construção de uma sociedade justa, igualitária e solidária. O núcleo da família e sua proteção especial pelo Estado, está conferido no art. 226, caput “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado (Brasil, 1988)”.
A família é considerada a base primordial da formação do indivíduo, sendo responsável não apenas pela provisão de sustento material, mas principalmente pelo desenvolvimento emocional, social e psicológico da criança. Nesse contexto, a presença e o afeto dos pais exercem papel fundamental na construção da identidade e da estabilidade emocional dos filhos.
A partir da Constituição Federal de 1988, o ordenamento jurídico brasileiro se consolida em princípios básicos que orientam a proteção dos direitos fundamentais. Entre esses, destacam-se o da dignidade da pessoa humana, que figura como principal fundamento da Constituição, orientando a configuração de direitos, garantias e políticas públicas que reconhecem a pessoa humana como fim e condição de toda atuação estatal, serve de filtro para a elaboração de normas, políticas e serviços que respeitem a dignidade, a autonomia, a integridade física e psíquica, bem como a ampliação das oportunidades de participação social.
O princípio da isonomia, que busca pela igualdade perante a lei, sem discriminação de qualquer natureza, orienta o acesso a direitos, oportunidades e recursos. Esse princípio sustenta a vedação de práticas excludentes e a promoção de ações afirmativas que visem reduzir desigualdades estruturais, assegurando tratamento isonômico a todos os cidadãos, especialmente grupos vulneráveis.
Ainda, o princípio da proteção da infância e adolescência ou princípio da proteção integral, reconhece a prioridade absoluta na efetivação dos direitos de crianças e adolescentes. Para isso, é importante que existam políticas públicas que trabalhem de forma integrada, promovendo o bem-estar, a educação, a saúde, a proteção e o desenvolvimento completo de crianças e adolescentes.
Por fim, o princípio da paternidade responsável, que diz respeito aos pais, que têm a obrigação, tanto legal quanto moral, de assegurar que seus filhos tenham uma vida saudável e um crescimento pleno. Isso não significa apenas fornecer o sustento financeiro, mas também cuidar do bem-estar emocional, oferecer educação adequada, promover um ambiente familiar harmonioso e respeitar a dignidade da criança ou do adolescente.
Tais princípios definem um conjunto de leis que buscam assegurar condições mínimas de desenvolvimento humano, convivência social justa e proteção integral aos indivíduos em todas as fases de sua vida.
O abandono afetivo parental, caracterizado pela omissão injustificada de um dos genitores no exercício dos deveres afetivos e educacionais, constitui uma grave violação dos direitos da criança e do adolescente, podendo gerar consequências danosas ao seu desenvolvimento integral.
Com a evolução do ordenamento jurídico brasileiro e a ampliação do conceito de responsabilidade civil, surgem debates relevantes acerca da possibilidade de indenização por danos morais em razão do abandono afetivo. Diante disso, o presente trabalho objetiva analisar a evolução jurisprudencial sobre a responsabilização civil decorrente do abandono afetivo parental, seus reflexos jurídicos e, sobretudo, os impactos causados no desenvolvimento infantil, evidenciando a importância da família como o principal pilar da formação pessoal e social do ser humano.
2 FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL E PARENTAL NO CONTEXTO FAMILIAR.
A responsabilidade civil é um dos institutos mais importantes do Direito brasileiro e tem por objetivo fundamental assegurar a reparação de danos injustamente causados a outrem. Conceitualmente, trata-se de um dever jurídico de compensação de um prejuízo causado por uma pessoa a outra, seja de natureza patrimonial ou extrapatrimonial. Nas palavras de Marco Aurélio Bezerra de Melo (2015, p.2):
Podemos definir a responsabilidade civil como a obrigação patrimonial de reparar o dano material ou compensar o dano moral causado ao ofendido pela inobservância por parte do ofensor de um dever jurídico legal ou convencional.
Em termos simples, a responsabilidade civil se enquadra quando um dano é causado por uma conduta humana que resulta em prejuízo a terceiros, o que torna necessário o restabelecimento do equilíbrio violado entre as partes. Assim, tal reparação pode ocorrer por meio do pagamento de uma quantia a título indenizatório (Diniz, 2024).
A legislação brasileira, por meio do Código Civil de 2002, regulamenta esse instrumento jurídico, que busca a proteção dos direitos individuais e coletivos. Veja-se:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Cabe considerar que os danos decorrentes de um ato lesivo podem ser classificados em duas categorias principais: dano patrimonial e dano extrapatrimonial. Essa distinção é fundamental para a correta compreensão das consequências jurídicas do ato ilícito e para a adequada fixação das indenizações devidas à vítima.
O dano patrimonial corresponde ao prejuízo que atinge diretamente o patrimônio da pessoa afetada, ou seja, trata-se de uma perda materialmente mensurável, que pode ser apurada por diferentes provas. Esse tipo de dano se divide em duas espécies: o dano emergente, que representa a perda efetiva sofrida, e o lucro cessante, que diz respeito ao que a vítima deixou de ganhar em razão do ocorrido (Tartuce, 2025).
Já o dano extrapatrimonial está relacionado ao prejuízo que não tem natureza econômica direta, pois atinge valores imateriais ligados à dignidade da pessoa humana, como a honra, a imagem, a integridade psíquica, o nome, a liberdade ou a vida privada. Sendo assim, não pode ser quantificado de forma exata, pois envolve aspectos subjetivos concernentes à vítima, portanto, a fixação da indenização precisa pautar-se na extensão do dano, na gravidade da conduta, na situação econômica das partes e no caráter compensatório e pedagógico da medida (Tartuce, 2025).
Desse modo, enquanto o dano patrimonial busca recompor o patrimônio violado, o dano extrapatrimonial visa reparar simbolicamente uma ofensa a direitos da personalidade, restabelecendo, na medida do possível, o equilíbrio emocional ou moral da vítima, sendo ambos plenamente reconhecidos no ordenamento jurídico brasileiro, podendo inclusive coexistir em uma mesma circunstância.
Já no contexto familiar, ao tratar de responsabilidade, a legislação brasileira estabelece as obrigações concernentes aos pais em relação aos filhos, as quais compõem o chamado poder familiar, que é caracterizado como o conjunto de direitos e deveres previstos conferidos aos pais no exercício da autoridade parental sobre os filhos menores (Brasil. Código Civil, 2002).
Para tanto, é válido compreender que a família é reconhecida pela Constituição Federal como a base da sociedade, e exerce um papel insubstituível na formação moral, social e educacional de seus membros, por se tratar de uma sociedade natural, formada por pessoas unidas por laços sanguíneos, civis ou afetivos, constituindo o primeiro ambiente de convivência do indivíduo (Lando, Cunha e Lima, 2016).
Nesse cenário, os pais ocupam a posição de representantes legais dos filhos menores, que, por estarem em desenvolvimento, encontram-se em condição de vulnerabilidade, carecendo de cuidados, orientação e proteção até que alcancem a capacidade civil plena. O Código Civil brasileiro, em seus artigos 1.630 a 1.638, disciplina o poder familiar e os deveres decorrentes dele. Assim, nos moldes do artigo 1.634 da referida legislação:
Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos:
I - dirigir-lhes a criação e a educação;
II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior;
V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município;
VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição (Brasil. Código Civil, 2002).
No mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD) - Lei nº 8.069/1990 - reforça as mencionadas obrigações em seu artigo 22, ao afirmar que "aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais", consolidando-se como um marco na proteção da infância e juventude.
Por sua vez, a CRFB/88, no artigo 227, caput, destaca que:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Brasil, Constituição 1988).
Ainda na conjuntura constitucional, cabe frisar que a Carta Magna de 1988 inovou no aspecto do tratamento dos filhos, conferindo-lhes igualdade, independente da origem. Em seu artigo 227, § 6º, o texto estabelece que os sucessores, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, de modo a resguardar a dignidade da pessoa humana e a igualdade entre os filhos (Brasil, Constituição 1988).
Estabelecidas legalmente as obrigações parentais, o descumprimento destas pode gerar graves consequências jurídicas, incluindo a suspensão ou perda do poder familiar, nos termos do artigo 1.638 do Código Civil. Contudo, ressalta-se que os encargos dos responsáveis não se extinguem em casos de separação ou divórcio, uma vez que, ainda que o vínculo conjugal se desfaça, a filiação permanece inalterada, e ambos os pais continuam legalmente responsáveis pelos filhos.
Em síntese, a legislação brasileira atribui aos pais um papel essencial na proteção e formação dos filhos, conferindo-lhes deveres legais que extrapolam o mero sustento financeiro. Trata-se de uma responsabilidade integral, em que a função social da família se revela na sua capacidade de proporcionar um ambiente saudável, seguro e estruturado, no qual seus membros, especialmente os filhos menores, possam desenvolver-se de forma digna e integral (Lando, Cunha e Lima, 2016).
3 ABANDONO AFETIVO ENQUANTO DANO EXTRAPATRIMONIAL E SEU RECONHECIMENTO JURISPRUDENCIAL
3.1 A Evolução da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Era adotada uma posição pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), inicialmente, de forma majoritária, contraria à indenização por abandono afetivo. A posição inicial partia do ponto da impossibilidade de compensar o afeto.
Como exemplo, no julgamento do Recurso Especial n° 757.411/MG, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, firmou o entendimento de que o descumprimento do dever de convivência familiar, por si só, não configurava ato ilícito passível de indenização pecuniária:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 757.411/MG, relator Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 29/11/2005, DJ de 27/3/2006, p. 299.)
Os argumentos essenciais usados foram a inexistência do dever jurídico de amar, onde a jurisprudência entendia que não era possível impor de forma judicial o afeto, que este seria uma faculdade, não uma obrigação legal; a dificuldade de quantificar o dano, pois era considerado complexo e subjetivo de forma que impossibilitava mensurar em valor financeiro a dor da falta de afeto e ainda, o risco de monetização das relações familiares, onde havia certo temor de que as relações entre pais e filhos fosse excessivamente judicializada, transformando o afeto em um valor financeiro.
Nessa fase inicial, a responsabilidade parental era vista principalmente sob o aspecto material (alimentos) e formal (educação e guarda), de modo que havia separação do campo moral e afetivo no âmbito jurídico indenizatório.
No decorrer, no ano de 2012 houve a grande virada, o chamado “Leading Case” ou “Caso Líder”, com o julgamento do Recurso Especial n° 1159242/SP, pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça. O termo indica uma decisão judicial que estabelece um marco interpretativo ou mesmo uma nova orientação jurisprudencial sobre um relevante tema, servindo de referências para decisões posteriores, de forma que sirva de orientação para tribunais inferiores.
Portanto, este caso ficou marcado por romper o entendimento anterior de que não se aplicava o dano moral em casos de abandono afetivo, definindo-se como o leanding case sobre o referido tema.
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. (REsp n. 1.159.242/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/4/2012, DJe de 10/5/2012.)
Sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, o Superior Tribunal de Justiça, por maioria votos, reformou sua posição anterior e passou a reconhecer a possibilidade de indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo, gerando uma nova decisão que foi fundamentada sob uma nova perspectiva do dever de cuidado.
O novo entendimento teve alguns pontos centrais como a distinção entre amar e cuidar, que nas palavras da Relatora “Amar é faculdade, cuidar é dever”. Por conta disso, a atenção da análise passou a se concentrar mais no descumprimento de uma obrigação legal clara, que é o dever de cuidado. Esse dever inclui aspectos como a convivência, apoio emocional, amparo psicológico, assistência emocional e o desenvolvimento da personalidade de cada criança.
Outro ponto citado foi o cuidado como valor jurídico, considerando sua importância, o acórdão estabeleceu que para o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes, este é um valor fundamental e que quando há ausência desse cuidado, não é um mero dissabor, mas a violação de um direito.
O ato ilícito como terceiro ponto, deixou decidido que o descaso voluntário e injustificado em relação ao dever de cuidar da criança configura uma ação ilegal, como previsto no art. 186 do Código Civil “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito (Brasil, Código Civil 2002)”. A omissão dos pais em prover o amparo necessário para o desenvolvimento e formação do filho passou a ser vista como uma conduta que viola a lei.
Por fim, a decisão ressaltou que a indenização não é concedida automaticamente. É necessário provar que houve dano, desde prejuízos psicológicos, traumas ou angústia, e ainda, a comprovação do nexo de causalidade entre a conduta omissiva do genitor e o sofrimento do filho.
Após o julgamento em 2012, a tese da possibilidade de indenização por abandono afetivo começou a se consolidar no Superior Tribunal de Justiça e nos tribunais inferiores. A jurisprudência passou a definir melhor os critérios para a aplicação da referida tese, mantendo a cautela e de forma excepcional. Decisões posteriores, como o Recurso Especial n° 1.087.561/RS, reforçaram que o descumprimento de deveres parentais, mesmo aqueles de natureza material, quando causarem danos que prejudiquem a integridade psicológica do filho, caracteriza ato ilícito e gera o direito à reparação por dano moral, com base no princípio da dignidade da pessoa humana.
RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. ABANDONO MATERIAL. MENOR. DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE PRESTAR ASSISTÊNCIA MATERIAL AO FILHO. ATO ILÍCITO (CC/2002, ARTS. 186, 1.566, IV, 1.568, 1.579, 1.632 E 1.634, I; ECA, ARTS. 18-A, 18-B E 22). REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. POSSIBILIDADE. RECURSO IMPROVIDO. 1. O descumprimento da obrigação pelo pai, que, apesar de dispor de recursos, deixa de prestar assistência material ao filho, não proporcionando a este condições dignas de sobrevivência e causando danos à sua integridade física, moral, intelectual e psicológica, configura ilícito civil, nos termos do art. 186 do Código Civil de 2002. 2. Estabelecida a correlação entre a omissão voluntária e injustificada do pai quanto ao amparo material e os danos morais ao filho dali decorrentes, é possível a condenação ao pagamento de reparação por danos morais, com fulcro também no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. 3. Recurso especial improvido. (REsp n. 1.087.561/RS, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 13/6/2017, DJe de 18/8/2017.)
Simplificando, a evolução é vista de forma que antes de 2012, prevalecia a tese de que não era possível compensar a falta de afeto, separando o dever moral do dever jurídico. A partir de 2012, o Superior Tribunal de Justiça passou a reconhecer que o dever de cuidado é uma obrigação jurídica e seu descumprimento, comprovado o dano causado, constitui ato ilícito que gera o dever de indenizar.
3.2 Dos Requisitos para a Configuração do Dano Moral.
Como abordado, a posição do Superior Tribunal de Justiça, se consolidou no entendimento de que é possível a compensação por danos morais nos casos em que houver abandono afetivo, desde que os requisitos sejam todos preenchidos.
Frisa-se, que o Superior Tribunal de Justiça não impôs o “dever de amar”, mas o reconhecimento da tese é no sentido de que o descumprimento do dever de cuidado, inerente ao poder familiar, pode configurar um ato ilícito e gerar o dever de indenizar. No entanto, para que haja a concessão da indenização pleiteada, é necessário que seja tratada de forma excepcional, exigindo uma análise cautelosa de cada caso concreto.
Como previsto no art. 186 do Código Civil, é necessário a comprovação de três pressupostos da responsabilidade civil para que haja a efetivação da indenização. No entanto, temos a conduta ilícita, realizada por ação ou omissão, onde é preciso que o genitor ou a genitora demonstre que houve o descumprimento do dever de cuidado, cuidado esse que vai além do simples sustento material. Este dever envolve desde o oferecimento de uma base sólida de relacionamento parental, de forma que viabilize o adequado e saudável desenvolvimento psicológico e de personalidade da criança e também a responsabilidade de promover o afeto, oferecer cuidado adequado e orientar de forma consciente e amorosa.
Neste caso, a atitude ou conduta que deve ser levada em consideração é aquela que causa uma ruptura brusca na convivência, ou ainda, um total descaso com o bem-estar do filho.
Em relação ao dano moral, ele não é algo presumido automaticamente. Sendo necessária a comprovação da conduta do genitor, que efetivamente causou prejuízo concreto quanto à formação psicológica e à personalidade do filho. As condutas realizadas que causaram danos como traumas, ansiedade, angústia, ou qualquer outro prejuízo perceptível, precisam ser comprovados, por meio de laudos periciais e relatórios psicológicos por profissionais especializados, que servirão como meios de provas do dano sofrido.
Por fim, é de suma importância que exista uma conexão direta entre a atitude, omissiva ou comissiva, do genitor e o dano psicológico sofrido pelo filho. Essa ligação se dá pelo nexo de causalidade, de modo que haja a configuração, é necessária a cautela de investigar se o resultado produzido (dano) foi efetivamente motivado por uma conduta.
A exigência destes requisitos é clara no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, como vemos na decisão do Recurso Especial n° 1.557.978/DF, onde há o destaque da necessidade de examinar as circunstâncias de cada caso concreto para verificar a quebra ou não do dever de cuidado e convivência familiar.
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ABANDONO AFETIVO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. ALEGADA OCORRÊNCIA DO DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE CUIDADO. NÃO OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA CONFIGURAÇÃO DO NEXO CAUSAL. APLICAÇÃO DA TEORIA DO DANO DIRETO E IMEDIATO. PREQUESTIONAMENTO INEXISTENTE NO QUE TANGEAOS ACORDOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS Nº.s 282 E 235 DO STF. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO CARACTERIZADO. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. 1. Não há ofensa ao art. 535 do CPC quando os embargos de declaração são rejeitados pela inexistência de omissão, contradição ou obscuridade, e o Tribunal a quo dirime a controvérsia de forma completa e fundamentada, embora de forma desfavorável à pretensão do recorrente. 2. Considerando a complexidade dos temas que envolvem as relações familiares e que a configuração de dano moral em hipóteses de tal natureza é situação excepcionalíssima, que somente deve ser admitida em ocasião de efetivo excesso nas relações familiares, recomenda-se uma análise responsável e prudente pelo magistrado dos requisitos autorizadores da responsabilidade civil, principalmente no caso de alegação de abandono afetivo de filho, fazendo-se necessário examinar as circunstâncias do caso concreto, a fim de se verificar se houve a quebra do dever jurídico de convivência familiar, de modo a evitar que o Poder Judiciário seja transformado numa indústria indenizatória. 3. Para que se configure a responsabilidade civil, no caso, subjetiva, deve ficar devidamente comprovada a conduta omissiva ou comissiva do pai em relação ao dever jurídico de convivência com o filho (ato ilícito), o trauma psicológico sofrido (dano a personalidade), e, sobretudo, o nexo causal entre o ato ilícito e o dano, nos termos do art. 186 do CC/2002. Considerando a dificuldade de se visualizar a forma como se caracteriza o ato ilícito passível de indenização, notadamente na hipótese de abandono afetivo, todos os elementos devem estar claro e conectados. 4. Os elementos e as peculiaridades dos autos indicam que o Tribunal a quo decidiu com prudência e razoabilidade quando adotou um critério para afastar a responsabilidade por abandono afetivo, qual seja, o de que o descumprimento do dever de cuidado somente ocorre se houver um descaso, uma rejeição ou um desprezo total pela pessoa da filha por parte do genitor, o que absolutamente não ocorreu. 5. A ausência do indispensável estudo psicossocial para se estabelecer não só a existência do dano mas a sua causa, dificulta, sobremaneira, a configuração do nexo causal. Este elemento da responsabilidade civil, no caso, não ficou configurado porque não houve comprovação de que a conduta atribuída ao recorrido foi a que necessariamente causou o alegado dano à recorrente. Adoção da teoria do dano direto e imediato. 6. O dissídio jurisprudencial não foi comprovado nos moldes legais e regimentais, pois além de indicar o dispositivo legal e transcrever os julgados apontados como paradigmas, cabia ao recorrente realizar o cotejo analítico, demonstrando-se a identidade das situações fáticas e a interpretação diversa dada ao mesmo dispositivo legal, o que não ocorreu. 7. Recurso especial não provido. (STJ - REsp: 1557978 DF 2015/0187900-4, Relator.: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 03/11/2015, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/11/2015)
Portanto, á luz do ordenamento jurídico brasileiro, o abandono afetivo se configura ato ilícito por ação ou omissão, quando um dos genitores deixa de cumprir, de forma injustificada, o exercício dos deveres legais e constitucionais que lhe são inerentes à paternidade ou maternidade. A violação desses deveres, especialmente quando resulta em prejuízos emocionais comprovados, enseja a responsabilidade civil por dano extrapatrimonial.
A negligência desses deveres pode gerar sérios prejuízos emocionais e psicológicos, afetando o desenvolvimento saudável da criança ou do adolescente, além de comprometer sua autoestima, segurança e bem-estar geral. Essa situação é considerada uma forma de abandono afetivo, que pode ter implicações jurídicas e sociais, pois o papel dos pais é fundamental para garantir um ambiente de amor, proteção e estabilidade para os filhos.
3.3 A Teoria da Existência da Responsabilidade Extrapatrimonial.
A responsabilidade civil, conforme dispõe o artigo 186 do Código Civil, impõe que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, deve repará-lo. Tal responsabilidade não abrange apenas prejuízos patrimoniais, mas também danos de ordem moral e psíquica, conhecidos como danos extrapatrimoniais (Gagliano; Filho, 2014).
Ainda se tratando do Código Civil, os textos dispostos nos artigos 11 a 21, dizem a respeito dos direitos da personalidade, que são direitos reconhecidos a cada indivíduo para que haja a proteção e sejam assegurados sua dignidade, integridade e autonomia da pessoa. De modo que tais direitos são irrenunciáveis e inalienáveis.
No enquadramento do abandono afetivo, esse dano assume relevância de forma singular, uma vez que afeta profundamente o bem-estar emocional da vítima, geralmente um filho ou parceiro. Segundo Gagliano e Filho (2014), o dano moral decorre de uma violação de direitos de personalidade, como o afeto, a dignidade e a integridade psíquica, protegidos pelo ordenamento jurídico brasileiro.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, incisos V e X, assegura o direito à indenização por dano moral e a inviolabilidade da vida privada, honra e imagem (Brasil, Constituição 1988). Assim, o abandono afetivo viola esses direitos fundamentais, justificando a responsabilização do agente causador do dano.
Quando falamos no aspecto ideal-moral, é importante destacar que a proteção dos direitos humanos é a forma mais sólida de assegurar o que dispõe o sistema constitucional, exigindo que as normas das Constituições modernas sejam de fato eficazes, assegurando a dignidade da pessoa humana.
O autor Heitor Santana Lopes de Albuquerque menciona, na 68ª edição da Revista IDBFAM (2025, p.81): família e sucessões, um trecho do precedente do Recurso Extraordinário nº 466.343 do Supremo Tribunal Federal (STF):
E no que se refere ao aspecto ideal-moral, não se pode deixar de considerar a proteção aos direitos humanos como a fórmula mais concreta de que dispõe o sistema constitucional, a exigir dos atores da vida sociopolítica do Estado uma contribuição positiva para a máxima eficácia das normas das Constituições modernas que protegem a cooperação internacional amistosa como princípio vetor das relações entre os Estados Nacionais e a proteção dos direitos humanos como corolário da própria garantia da dignidade da pessoa humana. (Brasil, 2008 apud Albuquerque, 2025)
Autor acima mencionado, aborda sobre como os casos em que filhos sofrem de abandono afetivo, deveriam ser considerados como urgência constitucional, em suas palavras:
O dano moral decorrente de abandonos moral e físico por qualquer dos pais em relação a seus filhos repercute, inexoravelmente, na psique do infante, na do adolescente e, ainda, na do adulto desprezado parentalmente enquanto jovem (Albuquerque, 2025, p.85).
Rolf Madaleno, na mesma visão:
Também têm sido fonte de demandas judiciais casos de abandono afetivo dos pais em relação a seus filhos. Dentre os inescusáveis deveres paternos figura o de assistência moral, psíquica e afetiva, e quando os pais ou apenas um deles deixa de exercitar o verdadeiro e mais sublime de todos os sentidos da paternidade, respeitante à interação do convívio e entrosamento entre pai e f ilho, principalmente quando os pais são separados, ou nas hipóteses de famílias monoparentais, em que um dos ascendentes não assume a relação fática de genitor, preferindo deixar o filho no mais completo abandono, sem exercer o dever de cuidado que tem em relação à sua prole [...].
A desconsideração da criança e do adolescente no campo de suas relações, ao lhes criar inegáveis deficiências afetivas, traumas e agravos morais, cujo peso se acentua no rastro de gradual desenvolvimento mental, físico e social do filho, que assim padece com o injusto repúdio público que lhe faz o pai, deve gerar, inescusavelmente, o direito à integral reparação do agravo moral sofrido pela negativa paterna do direito que tem o filho à sadia convivência e referência parental, privando o descendente de um espelho que deveria seguir e amar. E, embora possa ser até dito que não há como o Judiciário obrigar a amar, também deve ser considerado que o Judiciário não pode se omitir de tentar, buscando de uma vez por todas acabar com essa cultura da impunidade que grassa no sistema jurídico brasileiro desde os tempos em que as visitas configuravam um direito do adulto e não como um evidente e incontestável dever que têm os pais de assegurar aos filhos a convivência familiar, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CF, art. 227). [...]
Contudo, ao filho choca ter transitado pela vida, em tempo mais curto ou mais longo, sem a devida e necessária participação do pai em sua história pessoal e na sua formação moral e psíquica, desconsiderando o descendente no âmbito de suas relações, causando-lhe irrecuperáveis prejuízos, que ficarão indelevelmente marcados por toda a existência do descendente socialmente execrado pelo genitor, suscitando insegurança, sobressaltos e um profundo sentimento de insuperável rejeição, e que o ressarcimento pecuniário não terá a função de compensar, mas cuidará apenas de certificar no tempo a nefasta existência desse imoral e covarde abandono do pai, e muito provavelmente, servirá de exemplo e alerta para os próximos abandonos, bem ao sabor da moderna doutrina que trata dos danos punitivos que são concedidos com uma finalidade dissuasória, preventiva e desincentivadora. (Madaleno, 2023, p. 435-440)
Diante do exposto, conclui-se que o abandono afetivo viola direitos de ordem moral e emocional, direitos estes que são protegidos pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código Civil, justificando assim a responsabilização do causador do dano.
4 EFEITOS DO ABANDONO AFETIVO NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL.
4.1 Impactos, Aspectos e Consequências Psicológicas e Sociais do Abandono Afetivo em cada Indivíduo.
Os impactos causados pelo abandono afetivo referem-se às consequências emocionais e psicológicas que acompanham cada indivíduo ao longo de toda sua vida, mesmo que a experiência do abandono direto já tenha se findado. O abandono afetivo ocorre quando um indivíduo, em regra, um dos genitores, age com a falta de cuidados emocionais à um filho. A negligência emocional, abuso físico e emocional e a rejeição são algumas das diferentes maneiras que o abandono se manifesta e faz perdura-se por longos anos ou por toda a vida do indivíduo que foi submetido a esse descuidado.
Entre os efeitos desse abandono, destacam-se a dificuldade em estabelecer novos vínculos afetivos saudáveis, de modo que o indivíduo tenha tido grande parte de sua capacidade social comprometida, devido ao medo futuro de novamente confiar e de poder agir de forma emocionalmente vulnerável, em razão do receio criado de sofrer outro abandono. Essa desconfiança nos outros e até em si mesmo pode acarretar o isolamento social e emocional.
Temos como efeito também, baixa autoestima e a autocrítica elevada, onde o indivíduo rejeitado começa a se sentir negligenciado, levando-o a ter uma visão negativa sobre si mesmo, podendo levar também a construção da autocrítica constante. Quem sofre por abandono afetivo acredita fielmente ser indigno de amor, atenção e cuidado, futuramente resultando em sua incapacidade de autovalorização e de manter-se em relacionamentos saudáveis.
O abandono afetivo, as emoções não processadas de maneira adequada e a falta de apoio emocional podem levar a uma série de sintomas psicológicos debilitantes. O abandono também está ligado a uma grande probabilidade do indivíduo que sofreu, desenvolver problemas mentais, como ansiedade, depressão e transtorno de personalidade.
Insta salientar que, como efeitos do abandono, os padrões repetitivos de comportamento, muitas vezes decorrem daqueles que sofreram abandono afetivo em alguma idade da vida, levando ao indivíduo, mesmo que inconscientemente, buscar repetir os padrões de relacionamentos disfuncionais em suas vidas adultas, podendo replicar a mesma dinâmica de rejeição e abandono que experimentaram na infância, perpetuando assim, a não quebra de um ciclo de dor emocional.
No artigo “Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II)”, Freud descreve a compulsão à repetição como um mecanismo em que o sujeito, de forma consciente ou não, revive padrões de sofrimento ou situações conflitantes. Essa repetição não seria somente mero acaso; é o inconsciente do indivíduo contando uma história, que ele mesmo ainda não foi capaz de elaborar, como “um vinil riscado que repete o mesmo trecho”. Como objetivo do texto, busca-se observar a condução da análise diante do fato de que os pacientes, na maioria dos casos, não se recordam dos conteúdos reprimidos, mas os repetem em suas ações, mesmo que de forma inconsciente, fenômeno denominado por ele como “compulsão à repetição” (Freud, 1914).
No mesmo sentido de ideias, o abandono, especialmente durante a infância, gera profundas consequências no âmbito psíquico, de modo que a ausência de cuidado e de um vínculo emocional forte, seguro e presente, fragilize a estrutura interna da criança, que passa a desenvolver “buracos psíquicos”, que seriam espaços vazios na vida emocional, resultantes de lacunas de afeto durante a infância ou outras fases importantes, gerando sensação de inadequação ou até mesmo dependência de estímulos externos para sentir-se válido. O enfraquecimento desses vínculos facilita que impulsos destrutivos encontrem saída, haja vista que não há uma base estável que modere ou contenha essas manifestações. Em prática de atividade psicanalista, Daniel descreve em seu estudo psicanalítico que “os buracos psíquicos decorrentes de uma situação de abandono afetivo tendem a ser preenchidos por expressões da destrutividade liberada pelo enfraquecimento do vínculo” (Green, 1980 apud Schor, 2017, p. 80).
Portanto, quando nos referimos que o indivíduo tende a preencher esse vazio por expressões da destrutividade liberada, falamos que, ao invés de buscar vínculos seguros e saudáveis, o indivíduo pode canalizar essa energia psíquica em comportamentos autodestrutivos, agressivos ou impulsivos.
Em resumo, a carência proveniente do abandono afetivo gera lacunas emocionais. Sem um vínculo estável capaz de regular a afetividade, o indivíduo pode direcionar a dor para manifestações destrutivas, como forma de descarregar, compensar ou chamar a atenção para a necessidade de cuidado. Em termos terapêuticos, a ideia enfatiza a importância de reconstruir vínculos seguros e desenvolver mecanismos saudáveis de manejo emocional a fim de evitar que esses vazios sejam ocupados por comportamentos autodestrutivos.
O tratamento, portanto, desloca-se do simples recordar para o elaborar, ou seja, enfrentar os obstáculos, dar tempo ao paciente para vivenciar e trabalhar seus conflitos no campo transferencial, de modo a transformar a repetição em material de análise, sendo esse o recurso principal para converter a compulsão repetitiva em lembrança consciente, permitindo a superação das resistências (Freud, 1914).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Em considerações finais, ao retomar os objetivos que foram propostos no início deste trabalho, observa-se que foi direcionado e dedicado de forma a compreender o sofrimento e angústia vividos por indivíduos em razão do abandono afetivo, salientando-se evidências dos impactos emocionais, comportamentais e sociais.
Ainda, a evolução da jurisprudência brasileira que, no decorrer dos anos, se consolidou no sentido de que o abandono afetivo não se limita apenas a uma ausência afetiva de fato, mas configura uma violação de direitos de convivência, desenvolvimento e bem-estar, com consequências que refletem na saúde mental, construção de vínculos afetivos e sintomas psicológicos debilitantes. A análise realizada no sentido jurisprudencial revelou uma trajetória de reconhecimento gradual da importância do afeto como fator central para o desenvolvimento infantil. Que incialmente era regida por flexões interpretativas restritas, e atualmente, tem se consolidado no sentido de que é possível a reparação de danos motivados por negligência afetiva e a relevância de medidas protetivas que promovam o convívio saudável com ambos os genitores.
Ainda há uma dificuldade em aplicar essa evolução jurisprudencial em práticas efetivas no cotidiano de famílias, necessitando de extrema cautela ao analisar cada caso de forma individual.
Portanto, como principais recursos para a efetiva aplicação da tese, temos a necessidade de ampliar o entendimento no princípio do melhor interesse do menor, para que além da proteção física, inclua dimensões afetivas, psicológicas e educacionais; orientação jurídica e social contínua às famílias, de modo que previna o abandono afetivo e surja o fomento de criar vínculos estáveis; a consolidação de parâmetros claros para aferição do abandono afetivo e necessidade de intervenção judicial; o fortalecimento de políticas públicas integradas que articulem educação, saúde mental e assistência social, assegurando redes de apoio acessíveis e eficazes, bem como, decisões judiciais que assegurem, de modo efetivo, o direito das crianças a viverem com vínculos afetivos estáveis e reparadores, para que haja uma melhoria nas condições de vida dos indivíduos que enfrentam o abandono afetivo, de modo que os impactos positivos sejam duradouros e eficazes.
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1 Bacharelanda em Direito – FDCI. [email protected]
2 Bacharel em Direito – FDCI / Pós-graduado em Direito Previdenciário / Advogado .[email protected]