A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA NO TRIBUNAL DO JÚRI: ENTRE O COMBATE À VIOLÊNCIA DE GÊNERO E O DIREITO À PLENITUDE DE DEFESA
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17239386
Lívia Araújo Azevedo do Nascimento1
Márcia Pruccoli Gazoni Paiva2
RESUMO
O artigo analisa a (in)constitucionalidade da tese da legítima defesa da honra no Tribunal do Júri, investigando seus fundamentos históricos, jurídicos e sociais. Embora apresentada como argumento técnico, a tese revela-se construção retórica enraizada no patriarcado, utilizada para justificar absolvições em casos de feminicídio e transferir à vítima a responsabilidade pela própria morte, perpetuando a violência de gênero e a impunidade de práticas misóginas. Demonstra-se que a invocação da honra masculina como justificativa para crimes passionais possui raízes culturais, mas é incompatível com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade de gênero e da proteção à vida. Destaca-se a importância da ADPF nº 779/DF, julgada em 2023 pelo Supremo Tribunal Federal, que declarou a inconstitucionalidade da tese e vedou sua utilização em qualquer fase do processo penal. Por fim, conclui-se que a plenitude de defesa não pode servir de pretexto para legitimar discursos discriminatórios, sendo necessária a superação definitiva dessa tese para assegurar uma atuação processual constitucionalmente legítima e eticamente responsável.
Palavras-Chave: Legítima Defesa da Honra; Violência de Gênero; ADPF 779/DF; Tribunal do Júri.
ABSTRACT
This article analyzes the (un)constitutionality of the thesis of legitimate defense of honor in the Jury Trial, investigating its historical, legal, and social foundations. Although presented as a technical argument, the thesis reveals itself to be a rhetorical construct rooted in patriarchy, used to justify acquittals in femicide cases and to transfer responsibility for one's own death to the victim, perpetuating gender-based violence and impunity for misogynistic practices. The article demonstrates that the invocation of male honor as a justification for crimes of passion has cultural roots but is incompatible with the constitutional principles of human dignity, gender equality, and the protection of life. The article highlights the importance of ADPF No. 779/DF, ruled on in 2023 by the Supreme Federal Court, which declared the thesis unconstitutional and prohibited its use in any phase of the criminal process. Finally, it is concluded that the fullness of defense cannot serve as a pretext to legitimize discriminatory speeches, and that it is necessary to definitively overcome this thesis to ensure constitutionally legitimate and ethically responsible procedural action.
Keywords: Legitimate Defense of Honor; Gender Violence; ADPF 779/DF; Jury Court.
1 INTRODUÇÃO
A chamada “legítima defesa da honra” foi historicamente utilizada no Tribunal do Júri como estratégia para absolver acusados de feminicídio, atribuindo à vítima, geralmente mulheres em relações afetivas com o réu, a responsabilidade por sua própria morte. Longe de corresponder à legítima defesa prevista em lei, essa tese funciona como instrumento de perpetuação da violência de gênero e da impunidade, reproduzindo padrões patriarcais sob aparência de juridicidade.
O tema ganha relevância diante do cenário brasileiro atual, marcado por índices elevados de feminicídio e por uma cultura social ainda dominada pelo machismo. Surge, assim, a necessidade de discutir a compatibilidade dessa tese com os princípios constitucionais, sobretudo diante do dever do Estado de combater a violência contra a mulher e promover a igualdade. A questão central é: a declaração de inconstitucionalidade da legítima defesa da honra no Tribunal do Júri compromete o direito à plenitude de defesa?
O trabalho tem como objetivo analisar criticamente a (in)constitucionalidade dessa tese, à luz da dignidade da pessoa humana, da igualdade de gênero e da plenitude de defesa, demonstrando também os impactos de sua permanência nos julgamentos do Júri.
A pesquisa utiliza o método bibliográfico, com base em doutrina, artigos acadêmicos, jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - com na ADPF 779/DF - e na análise de casos concretos. Busca-se mostrar como o discurso jurídico pode tanto reforçar desigualdades quanto contribuir para superá-las.
O estudo organiza-se em seis capítulos: o segundo aborda as origens históricas da tese; o terceiro analisa a decisão do STF na ADPF 779/DF; o quarto discute os limites entre a proibição da tese e o direito à plenitude de defesa; o quinto relaciona o discurso de ódio e ao patriarcado; e, por fim, nas considerações finais, são apresentadas as propostas por uma atuação defensiva que seja, ao mesmo tempo, constitucionalmente legítima e eticamente responsável.
2 HISTÓRICO E CONTEXTUALIZAÇÃO DA TESE “LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA”
A legítima defesa é uma excludente de ilicitude prevista no artigo 25 do Código Penal, consistindo na utilização moderada dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de outrem. Segundo Cezar Roberto Bitencourt (2024), trata-se de um direito natural de resistência à agressão injusta, que não apenas isenta o agente de pena, mas reconhece a licitude do seu comportamento.
Guilherme de Souza Nucci (2024) complementa que a legítima defesa deve ser compreendida como uma manifestação concreta do instinto de conservação, juridicamente autorizada, desde que observados os requisitos legais, especialmente, a atualidade ou iminência da agressão, a injustiça do ataque e a moderação no uso dos meios de defesa.
Cleber Masson (2024) ressalta, ainda, que a legítima defesa se aplica apenas a situações em que o bem jurídico é ameaçado de forma real e objetiva, não bastando percepções subjetivas de desrespeito ou abalo moral. Para o autor, a legítima defesa não constitui um “vale-tudo” emocional nem um instrumento para perpetuar valores discriminatórios ou desiguais.
À luz dessas premissas, torna-se evidente a inadmissibilidade da chamada “legítima defesa da honra”, construção histórica e cultural originada em sociedades patriarcais e autoritárias.
Historicamente, essa tese se desenvolveu em contextos nos quais a honra masculina, especialmente no âmbito familiar e conjugal, era considerada um valor central a ser preservado (Lerner, 2019). Em países latinos, e particularmente no Brasil, a honra era tratada como extensão da identidade masculina, de modo que qualquer comportamento da esposa considerado violador dessa “honra” servia frequentemente como justificativa para ações violentas, inclusive homicídios (Aguiar, 2000).
No século XIX e início do século XX, o Código Penal brasileiro, influenciado pelas doutrinas vigentes, permitia que a honra fosse alegada como motivo atenuante em casos de violência doméstica e crimes passionais (Nucci, 2018). Supunha-se que o homem, ao ter sua honra “ofendida” por comportamentos tidos como inaceitáveis da esposa ou companheira, detinha um suposto “direito natural” de restaurá-la por meio da violência. Essa lógica patriarcal se consolidava em um sistema jurídico que atribuía à mulher um papel submisso, vinculando sua fidelidade à manutenção da imagem pública e privada do marido.
Um dos casos mais emblemáticos da utilização dessa tese foi o “Caso Doca Street”, ocorrido em 30 de dezembro de 1976, em Búzios, litoral do Rio de Janeiro, quando o empresário Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street, assassinou a socialite Ângela Diniz. Popular no Rio de Janeiro como a “Pantera de Minas”, Eluf (2013) relata que a vítima tinha uma vida agitada e marcada por incidentes.
Segundo Eluf (2013), a defesa baseou-se fortemente na ideia de que o réu agira para preservar sua honra, mencionando o passado da vítima como tentativa de justificar a conduta de Doca Street. Na época, tal argumento sensibilizou o júri, resultando em uma pena inicial bastante branda. O episódio tornou-se símbolo da desigualdade de gênero na aplicação da justiça e da condescendência do sistema penal frente à violência contra a mulher.
Outro caso emblemático, que à época favoreceu-se da tese da “legítima defesa da honra” foi de Pontes Visgueiro, ocorrido em 14 de agosto de 1873. Eluf (2013) descreve que José Cândido de Pontes Visgueiro, desembargador e aos 62 anos de idade, matou Maria da Conceição, conhecida como “Mariquinhas”, uma jovem de 17 anos, por quem estava apaixonado. Contudo, movido por ciúmes e pela infidelidade da jovem, que era prostituta, Visgueiro decide ceifar sua vida.
Com o avanço dos direitos humanos e da igualdade de gênero, questões como essas passaram a ser amplamente questionadas. A promulgação da Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo paradigma, elevando a dignidade da pessoa humana e a igualdade entre homens e mulheres à condição de fundamentos do Estado Democrático de Direito. Nesse contexto, a invocação da honra como justificativa para homicídios passionais revelou-se não apenas anacrônica, mas incompatível com os valores constitucionais.
Além dos casos acima mencionados, outro que merece destaque e ensejou a inclusão do homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos (Lei nº 8.072/90), pós-Constituição, foi o de Daniella Perez. De acordo com Eluf (2013), Daniella Perez foi assassinada por Guilherme de Pádua e sua esposa, Paula Almeida Thomaz, movida por ciúmes, com dezoito golpes de tesoura em um matagal na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, local em que o corpo foi encontrado. À época, Guilherme e Daniella contracenavam juntos na novela De Corpo e Alma, da Rede Globo de Televisão. Conforme relata Eluf (2013), ambos os assassinos confessaram a autoria do crime e foram levados a Júri por homicídio duplamente qualificado: motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima. Muito se discutiu, no entanto, acerca da execução e das razões que levaram ao cometimento do crime.
Diante disso, com o advento da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) reforçou-se a incompatibilidade dessa tese com a ordem jurídica, representando um avanço significativo no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher, ao estabelecer mecanismos de proteção e responsabilização mais eficazes. A partir de então, a invocação da honra passou a ser percebida como ainda mais anacrônica e contrária à realidade constitucional e legal.
Apesar disso, mesmo após a Constituição de 1988 e a promulgação de legislações específicas, a tese da legítima defesa da honra continuou a ser evocada por defesas técnicas em julgamentos pelo Tribunal do Júri, especialmente em crimes de feminicídio. Alegava-se, por exemplo, que o acusado agira movido por intensa emoção provocada por traição ou abandono, representando formas eufemísticas de justificar a violência contra a mulher como reação a um suposto desrespeito aos valores familiares. Tal prática foi reiteradamente contestada por juristas, estudiosos e movimentos sociais, culminando em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que vedaram a admissibilidade dessa tese no plenário do júri por considerá-la inconstitucional e discriminatória.
Portanto, a evolução doutrinária e jurisprudencial evidencia que a “legítima defesa da honra” não possui fundamento jurídico válido no ordenamento brasileiro atual. Observa-se a perpetuação de uma estratégia retórica, travestida de excludente de ilicitude, cujo objetivo é naturalizar e justificar a violência de gênero. Conforme Lerner (2019), embora o sistema jurídico tenha se reformado, resquícios culturais do patriarcado ainda ecoam nos discursos e práticas forenses, exigindo vigilância crítica para que tais alegações não sejam mais toleradas.
3 A DECISÃO DO STF NA ADPF 779: PROIBIÇÃO DA TESE DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA
Historicamente, a chamada “legítima defesa da honra” foi utilizada como um instrumento retórico para justificar atos de violência, especialmente contra mulheres no contexto de relações conjugais. Essa tese se apoiava em costumes patriarcais e no machismo estrutural, alegando que uma suposta ofensa à honra masculina legitimaria homicídios, em especial feminicídios. Tal distorção representava uma grave ameaça aos princípios constitucionais que garantem dignidade, igualdade e direito à vida.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 779 representou um divisor de águas no enfrentamento da violência de gênero no Brasil. Ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) em 2021, com o objetivo de afastar definitivamente a tese da legítima defesa da honra do ordenamento jurídico brasileiro.
O caso foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e objetivou coibir o uso de argumentos que historicamente permitiam absolvições de autores de crimes passionais, sob a alegação de defesa da honra. No julgamento, o STF reconheceu, por unanimidade, que a tese da legítima defesa da honra é incompatível com os preceitos fundamentais da Constituição de 1988.
De acordo com o relator, ministro Dias Toffoli (2023), trata-se de argumento “odioso, desumano e cruel”, utilizado para imputar às vítimas a culpa de suas próprias mortes ou lesões, institucionalizando desigualdade de gênero e tolerando a violência doméstica.
Nesse julgamento, a Suprema Corte enfatizou que a legítima defesa da honra não se trata de tese jurídica legítima, mas de artifício retórico, contrário à Constituição e aos tratados internacionais de direitos humanos. A sua utilização perpetuava uma visão discriminatória das mulheres, contribuindo para a manutenção da cultura da violência de gênero. Nesse sentido expõe o ministro relator Dias Toffoli (2023):
É inaceitável, diante do sublime direito à vida e à dignidade da pessoa humana, que o acusado de feminicídio seja absolvido, na forma do art. 483, inciso III, § 2º, do Código de Processo Penal, com base na esdrúxula tese da ‘legítima defesa da honra’. Há de se exigir um controle mínimo do pronunciamento do tribunal do júri quando a decisão de absolvição se der por quesito genérico, de forma a avaliar, à luz dos atos processuais praticados em juízo, se a conclusão dos jurados se deu a partir de argumentação discriminatória, indigna, esdrúxula e inconstitucional. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2023, p. 4).
O Supremo Tribunal Federal também reforçou que a soberania dos veredictos do júri não é absoluta, devendo estar em harmonia com os direitos fundamentais. Essa ponderação se mostra essencial para impedir que absolvições pautadas em narrativas discriminatórias sejam legitimadas sob a justificativa da liberdade de convicção dos jurados.
Outro ponto fundamental foi a determinação de nulidade dos atos processuais em que a tese fosse suscitada. O STF reconheceu que permitir o uso desse argumento representaria um estímulo à impunidade e, por consequência, à continuidade da violência contra a mulher. Assim, estabeleceu-se que tanto a defesa, quanto a acusação, além do juízo e da polícia estão proibidos de lançar mão desse recurso:
Na hipótese de a defesa lançar mão, direta ou indiretamente, da tese da ‘legítima defesa da honra’ [...], caracterizada estará a nulidade da prova, do ato processual ou, caso não obstada pelo presidente do júri, dos debates por ocasião da sessão do júri, facultando-se ao titular da acusação apelar na forma do art. 593, inciso III, alínea a, do Código de Processo Penal. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2023, p. 3-4).
Doravante, a decisão se manifesta no sentido de que não houve cerceamento do direito de defesa. A Suprema Corte entendeu que a plenitude de defesa no Tribunal do Júri deve respeitar parâmetros constitucionais, não podendo ser invocada para sustentar teses que afrontem a dignidade da pessoa humana e o direito à vida.
Outro aspecto de relevância foi o diálogo entre a decisão e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. O acórdão reafirmou que a manutenção da tese da legítima defesa da honra seria incompatível com a Convenção de Belém do Pará e com outras normas de proteção internacional dos direitos humanos das mulheres, ao declarar que:
A tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF). (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2023, p. 4).
Por fim, a ADPF 779 fortaleceu a posição da Corte como guardiã da Constituição e da democracia, reafirmando que a justiça criminal não pode servir como instrumento de reprodução de estigmas sociais e de reforço ao patriarcado. Ao declarar a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, o STF deu um passo importante para a construção de um sistema de justiça mais justo, igualitário e protetivo em relação às mulheres.
4 A PLENITUDE DE DEFESA NO TRIBUNAL DO JÚRI
O princípio da plenitude de defesa constitui uma das garantias basilares do Tribunal do Júri, assegurado expressamente pelo art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal de 1988, norma de caráter cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV, CF). Trata-se de prerrogativa que ultrapassa a ampla defesa, impondo ao defensor a possibilidade de atuação mais abrangente, a fim de garantir ao acusado todas as condições necessárias para um julgamento justo. Além disso, a Constituição consagra como princípios do Júri o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Conforme leciona Capez (2025), a finalidade do Júri Popular é ampliar o direito de defesa, funcionando como verdadeira garantia individual. Para tanto, transfere-se a competência de julgamento de um juiz togado, conhecedor da lei, para um corpo de jurados leigos, representantes da sociedade, desde que preencham requisitos básicos como nacionalidade, maioridade, idoneidade e residência na comarca.
Acerca dessa finalidade e de seus princípios norteadores, ensina Capez:
Sua finalidade é a de ampliar o direito de defesa dos réus, funcionando como uma garantia individual dos acusados pela prática de crimes dolosos contra a vida e permitir que, em lugar do juiz togado, preso a regras jurídicas, sejam julgados pelos seus pares. Como direito e garantia individual, não pode ser suprimido nem por emenda constitucional, constituindo verdadeira cláusula pétrea (núcleo constitucional intangível). Tudo por força da limitação material explícita contida no art. 60, § 4º, IV, da CF. Seus princípios básicos são: a plenitude da defesa, o sigilo nas votações, a soberania dos veredictos e a competência mínima para julgamento dos crimes dolosos contra a vida. A plenitude da defesa implica o exercício da defesa em um grau ainda maior do que a ampla defesa. Defesa plena, sem dúvida, é uma expressão mais intensa e mais abrangente do que defesa ampla. (CAPEZ, Curso de Processo Penal, 2025, p.425).
No mesmo sentido, Campos (2018) complementa:
O Júri é um órgão especial do Poder Judiciário de primeira instância, pertencente à Justiça comum, colegiado e heterogêneo – formado por um juiz togado, que é seu presidente, e por 25 cidadãos –, que tem competência mínima para julgar os crimes dolosos praticados contra a vida, temporário (porque constituído para sessões periódicas, sendo depois dissolvido), dotado de soberania quanto às suas decisões, tomadas de maneira sigilosa e inspiradas pela íntima convicção, sem fundamentação, de seus integrantes leigos. (CAMPOS, Tribunal do Júri, 2018, p.2).
Dessa forma, observa-se que a plenitude de defesa é elemento central do Júri. Conforme Capez (2025), trata-se de defesa exercida em grau mais amplo do que a ampla defesa, enquanto Nucci (2020) destaca que os dois institutos não se confundem: nos processos penais comuns assegura-se a ampla defesa, mas no Tribunal do Júri garante-se a plenitude defensiva. Nesse cenário, como explica Campos (2018), exige-se que a atuação do defensor esteja acima da média, próxima da perfeição. Tanto é assim que o Código de Processo Penal, em seu art. 497, V, autoriza o juiz presidente a nomear novo defensor ou mesmo dissolver o Conselho de Sentença, caso considere o réu indefeso.
No entanto, a aplicação desse princípio não é ilimitada. A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a (in)constitucionalidade da legítima defesa da honra ilustra bem esse limite. Embora seja possível, em tese, invocar excludentes de ilicitude, não se admite a tese da legítima defesa da honra, justamente pela absoluta desproporcionalidade entre ofensa e repulsa (NUCCI, 2020).
Nas palavras do Ministro Relator Dias Toffoli (2023):
(…) a legítima defesa da honra é estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida e totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do feminicídio no país. Mas, ainda que assim não fosse, não se pode ignorar que a cláusula tutelar da plenitude de defesa não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. Sob essa perspectiva, a cláusula tutelar da plenitude de defesa, invocada para sustentar a tese de legítima defesa da honra, teria a função ultrajante de salvaguardar a prática ilícita do feminicídio ou de qualquer outra forma de violência contra a mulher, o que é inaceitável em um país em que a vida é considerada o bem jurídico mais valioso do Direito, por opção inequívoca da Constituição de 1988. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 2023, p.15).
Portanto, a vedação à tese da legítima defesa da honra não representa cerceamento da plenitude de defesa. Isso porque o direito de defesa não é absoluto, devendo ser exercido dentro de parâmetros constitucionais legítimos. O que se afasta é apenas o uso de argumentos inconstitucionais e atentatórios à dignidade humana.
Dessa forma, assegura-se que a defesa se realize de maneira plena, mas em harmonia com os valores supremos do ordenamento jurídico, garantindo julgamentos justos, compatíveis com o Estado Democrático de Direito e com a proteção prioritária da vida e da igualdade.
5 A TESE DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA COMO DISCURSO DE ÓDIO E REPRODUÇÃO DO PATRIARCADO
A tese da chamada “legítima defesa da honra” deve ser compreendida para além de uma simples estratégia jurídica ultrapassada. Trata-se de um discurso que, sob o manto da proteção da honra masculina, legitima a violência contra as mulheres e reforça estruturas históricas de dominação. O Supremo Tribunal Federal, na ADPF 779, classificou-a como um recurso retórico “odioso, desumano e cruel”, incompatível com a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a igualdade de gênero. Ao imputar à vítima a causa de sua própria morte, esse argumento não apenas perpetua estigmas, mas também naturaliza o feminicídio.
Essa construção jurídica possui raízes profundas no funcionamento do patriarcado, sistema histórico de opressão descrito por Lerner (2019), no qual os homens se apropriaram da sexualidade e da capacidade reprodutiva das mulheres como forma de consolidar poder. Segundo a autora, a subordinação feminina foi institucionalizada por meio da lei, da religião e da cultura, sendo vista como algo “natural”. A tese da defesa da honra é um exemplo contemporâneo desse processo, pois sustenta que a mulher pertence ao homem e que sua conduta pode ser punida com violência, legitimada social e juridicamente.
Nesse sentido, Lerner (2019) menciona a “defesa da honra” como um discurso de ódio que, em vez de proteger direitos, atua como forma de discriminação institucionalizada, ao considerar aceitável que a vida de uma mulher seja sacrificada em nome da preservação da masculinidade ferida. O STF declarou que tal tese, ao ser admitida no plenário do júri, estimula práticas violentas contra mulheres, tornando-se um mecanismo de perpetuação do feminicídio.
Por conseguinte, Lerner (2019) aponta que o patriarcado não se sustenta apenas pela força, mas também pela cooperação de mulheres condicionadas a aceitar sua inferioridade e a internalizar os papéis de “respeitáveis” ou “indignas”. O discurso da honra dialoga diretamente com esse mecanismo, atribuindo valor à mulher a partir de sua fidelidade e submissão ao homem, desqualificando aquelas que contrariam esse papel social. Assim, quando um homem comete feminicídio sob alegação de honra, reafirma-se um padrão milenar de dominação que reduz a mulher a objeto de controle.
O discurso da honra também evidencia como o direito, em determinados contextos históricos, serviu para legitimar desigualdades. Como observa Lerner (2019), a ordem patriarcal utilizou o aparato legal para naturalizar hierarquias de gênero, transformando o controle da mulher em um dever moral e social. Do mesmo modo, a utilização dessa tese nos tribunais reflete a reprodução de uma cultura jurídica que, por séculos, considerou legítimo o assassinato de mulheres em nome da moralidade masculina.
Portanto, ao proibir a invocação da “legítima defesa da honra”, o Supremo Tribunal Federal não apenas reafirma princípios constitucionais, mas rompe simbolicamente com uma tradição patriarcal que historicamente legitimou a violência de gênero. A decisão expressa o entendimento de que o Tribunal do Júri, ainda que dotado de soberania, não pode servir de instrumento para a perpetuação de discursos discriminatórios e de ódio. Desse modo, a superação dessa tese representa uma conquista para os Direitos Humanos e um passo importante no processo de desconstrução das bases jurídicas e culturais do patriarcado no Brasil.
Além disso, é preciso compreender que a manutenção de discursos como a defesa da honra no espaço jurídico produz efeitos sociais que extrapolam o âmbito processual. Como destaca Lerner (2019), o patriarcado se sustenta não apenas em práticas materiais, mas também em narrativas simbólicas que moldam consciências e naturalizam desigualdades. Assim, ao ser reproduzida em tribunais, essa tese reafirma um imaginário coletivo no qual a violência contra a mulher é tolerada ou justificada, retardando o avanço de uma cultura de igualdade e respeito.
Considerando isso, a rejeição definitiva dessa tese demonstra que o direito pode atuar como instrumento de transformação social. O STF, ao afastá-la do ordenamento jurídico, não apenas cumpriu seu papel de guardião da Constituição, mas também contribuiu para o processo de eliminação de práticas patriarcais ainda persistentes na sociedade.
Portanto, a decisão reafirma que a proteção da vida e a igualdade de gênero devem prevalecer sobre qualquer resquício cultural que naturalize a violência contra as mulheres, abrindo caminho para uma justiça mais sensível às demandas de gênero e comprometida com os Direitos Humanos.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da (in)constitucionalidade da legítima defesa da honra no Tribunal do Júri evidencia que tal tese não encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo. Trata-se de uma construção retórica, forjada em um contexto patriarcal, que, ao longo da história, serviu como artifício para legitimar a violência contra as mulheres sob o disfarce de juridicidade. Ao transferir para a vítima a responsabilidade por sua própria morte, esse argumento afronta diretamente a dignidade da pessoa humana, a igualdade de gênero e a proteção da vida, pilares constitucionais inegociáveis.
O julgamento da ADPF 779 pelo Supremo Tribunal Federal representou, nesse sentido, um divisor de águas. Ao declarar a inconstitucionalidade da tese, a Corte não apenas eliminou uma prática processual anacrônica e discriminatória, mas reafirmou que a soberania dos veredictos e a plenitude de defesa não são valores absolutos, devendo ser exercidos em conformidade com a Constituição. A decisão evidenciou que a defesa não pode se transformar em espaço para discursos odiosos ou discriminatórios que naturalizam a violência.
É fundamental frisar que a vedação da legítima defesa da honra não restringe indevidamente o direito de defesa, mas apenas lhe impõe limites constitucionais. A ampla defesa, princípio basilar do Estado Democrático de Direito, não autoriza a utilização de teses ilícitas e ofensivas à dignidade humana. Ao contrário: admitir tais argumentos comprometeria a própria essência do processo penal democrático, que deve servir à realização da justiça e não à reprodução da opressão.
Do ponto de vista social, a decisão do STF contribui para a ruptura de narrativas misóginas e para a consolidação de uma cultura jurídica comprometida com a igualdade. Ao rechaçar a “honra” como justificativa para o feminicídio, o Judiciário assume postura ativa na necessária transformação simbólica de combate ao patriarcado.
Assim, a declaração de inconstitucionalidade da tese não compromete a plenitude de defesa; ao contrário, reafirma que a atuação defensiva deve se dar dentro dos marcos constitucionais e éticos. A superação definitiva dessa construção retórica é passo essencial para um sistema de justiça criminal coerente com a Constituição de 1988 e com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na proteção dos direitos humanos das mulheres.
Conclui-se, portanto, que a vedação da legítima defesa da honra não fragiliza o direito de defesa, mas o fortalece, ao assegurar que este seja exercido de forma legítima, responsável e compatível com os valores democráticos, a proteção da vida e a dignidade de todas as pessoas.
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1 Graduanda de Direito na Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim – FDCI; E-mail: [email protected].
2 Professora Orientadora na Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim – FDCI. Especialista em Ciências Criminais com Formação para o Ensino Superior pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Gama Filho. Advogada Criminalista. E-mail: [email protected].