A FORMAÇÃO DO HOMEM LIVRE NA CULTURA EDUCACIONAL GREGA

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15468737


Gabriela da Costa Oliveira1
Atila Barros2


RESUMO
Esta pesquisa investiga a educação na Grécia Antiga a partir do conceito de paideia, entendido como formação integral voltada à virtude (areté) e à participação política. Justifica-se por sua relevância histórica e filosófica, ao influenciar ideais educacionais ocidentais, mesmo apresentando contradições entre emancipação e exclusão. O estudo busca compreender como os modelos educacionais gregos expressaram esse ideal e revelaram tensões entre educação, cidadania e desigualdade. Segundo Werner Jaeger, a paideia foi central na cultura grega, simbolizando a transição do ideal aristocrático para os valores democráticos das pólis. Platão e Aristóteles formularam visões distintas da educação como caminho à razão e à eudaimonia, enquanto os sofistas propunham uma formação pragmática. Em contraste, Esparta organizava a agogé, um sistema disciplinar interpretado por Foucault como tecnologia política. A pesquisa propõe, assim, uma reflexão crítica sobre a educação como instrumento de emancipação, considerando suas ambivalências históricas e implicações atuais.
Palavras-chave: Grécia Antiga, Paideia, Educação, Filosofia, Cidadania.

ABSTRACT
This research investigates education in Ancient Greece through the concept of paideia, understood as an integral formation oriented toward virtue (areté) and political participation. It is justified by its historical and philosophical relevance, having influenced Western educational ideals despite contradictions between emancipation and exclusion. The study seeks to understand how Greek educational models embodied this ideal and revealed tensions between education, citizenship, and inequality. According to Werner Jaeger, paideia was central to Greek culture, symbolizing the transition from aristocratic ideals to the democratic values of the polis. Plato and Aristotle developed distinct conceptions of education as a path to reason and eudaimonia, while the Sophists proposed a pragmatic, rhetoric-based formation. In contrast, Sparta organized the agogé, a disciplinary system interpreted by Foucault as a political technology. The study thus offers a critical reflection on education as a tool for emancipation, considering its historical ambivalences and current implications.
Keywords: Ancient Greece, Education, Paideia, Philosophy, Citizenship.

INTRODUÇÃO

A educação na Grécia Antiga constitui um dos pilares fundacionais do pensamento ocidental, não apenas por seu legado intelectual, mas por sua centralidade na constituição dos modelos de cidadania, ética e poder. No contexto das poleis gregas, especialmente durante os períodos Arcaico e Clássico, o conceito de paideia emergiu como um ideal de formação integral do ser humano, abrangendo aspectos físicos, morais, estéticos e racionais. No entanto, esse ideal não se manifestava de forma homogênea entre as diversas cidades-estado. Dois modelos paradigmáticos, o espartano e o ateniense, revelam visões contrastantes sobre o papel da educação. Enquanto Esparta privilegiava uma pedagogia estatal voltada à submissão e à eficiência militar, Atenas desenvolvia um modelo centrado na retórica, na filosofia e na participação política. Esses sistemas educativos expressavam não apenas diferentes projetos de formação, mas também distintas concepções de humanidade, virtude e cidadania.

A escolha do tema justifica-se pela relevância que os modelos educacionais da Grécia Antiga exercem na conformação histórica do pensamento pedagógico ocidental, servindo de base para reflexões contemporâneas sobre a finalidade da educação e seu papel na formação cidadã. O objeto de pesquisa deste trabalho é, portanto, a análise comparativa entre os modelos educativos de Esparta e Atenas, com especial atenção à sua fundamentação filosófica e às suas interpretações historiográficas. Este estudo propõe-se a examinar criticamente esses modelos educacionais, suas fundamentações filosóficas e suas interpretações historiográficas contemporâneas. A partir da análise dos pensamentos de Sócrates, Platão e Aristóteles, pensadores que elevaram a paideia ao estatuto de princípio ético e político, bem como das leituras historiográficas de Werner Jaeger, Mogens Herman Hansen, André Leonardo Chevitarese e Marta Mega de Andrade, busca-se compreender a paideia como um campo de disputas entre ideais de emancipação e estratégias de dominação. Tal abordagem permite não apenas uma reavaliação do legado grego, mas também uma reflexão crítica sobre os desafios contemporâneos da educação. A transição da areté heroica da tradição homérica para a paideia clássica reflete uma profunda reconfiguração do ideal formativo grego, que passa a valorizar não apenas o desempenho bélico ou aristocrático, mas a formação racional, ética e política do cidadão (Vieira, 2018, p. 45). O ciclo de estudos básicos (egkýklios paideía) promovia uma formação humanística ampla, que integrava saberes matemáticos, musicais e filosóficos como base da atuação cívica (Spinelli, 2016, p. 89).

A paideia não deve ser compreendida apenas como um conjunto de conteúdos escolares, mas como um ideal de excelência humana, uma formação do caráter orientada para a vida na pólis (Bortolini & Nunes, 2018, p. 112). A cidadania, nesse sentido, torna-se o horizonte último da educação, o que diferencia profundamente o modelo ateniense do modelo espartano. Em Esparta, a educação era rigidamente organizada pelo Estado e subordinada à lógica da guerra e da disciplina, com ênfase na obediência coletiva e na supressão da individualidade (Chevitarese, 2010, p. 77; Jaeger, 2003, p. 101). A leitura crítica adverte contra uma idealização acrítica da paideia ateniense, destacando seus limites de classe, gênero e exclusão (Hansen, 1993, p. 36). De fato, a educação cívica de Atenas estava restrita a uma minoria de cidadãos homens livres, deixando de fora mulheres, escravos e estrangeiros. Ainda assim, o ideário da paideia influenciou profundamente as reflexões filosóficas de Sócrates, Platão e Aristóteles, que buscaram elaborar modelos educativos capazes de formar não apenas bons oradores, mas cidadãos éticos, autônomos e virtuosos. Essas contribuições permitem uma compreensão mais ampla e crítica da educação na Grécia Antiga, superando visões simplistas e valorizando tanto seus avanços quanto suas contradições internas. O resgate das fontes clássicas aliado às interpretações historiográficas contemporâneas enriquece o debate sobre os fundamentos históricos da educação ocidental e sua atualidade.

O CONCEITO CENTRAL DA EDUCAÇÃO GREGA

A palavra paideia (παιδεία) pode ser traduzida como "educação" ou "formação", mas seu significado vai muito além de uma simples instrução escolar. Trata-se de um conceito amplo que designa a formação integral do ser humano, englobando os aspectos físicos, morais, estéticos, intelectuais e espirituais. A paideia era vista na Grécia Antiga como o processo pelo qual um indivíduo se tornava verdadeiramente humano, sendo preparado não apenas para o convívio social, mas para a atuação plena na vida política da cidade- estado (pólis).

O objetivo da paideia era formar cidadãos completos, dotados de virtude (areté) e capazes de contribuir para o bem comum da pólis. Segundo Jaeger (Werner Jaeger, 2013), a paideia era o eixo em torno do qual girava toda a cultura grega, funcionando como um ideal de perfeição humana. Não se tratava apenas de acumular conhecimento, mas de moldar o caráter e elevar o espírito. A transformação do conceito de paideia de um ideal heroico aristocrático para uma concepção mais filosófica e racional reflete as profundas mudanças sociais e culturais da Grécia entre os séculos VII e V a.C. Inicialmente, a areté era associada às qualidades heroicas, como coragem, honra e lealdade, características dos guerreiros aristocráticos descritos nas epopeias de Homero. No entanto, com o surgimento das pólis democráticas, esse ideal passou a valorizar a racionalidade, a temperança e a participação cívica. Vernant (Jean-Pierre Vernant, 1990) destaca essa transição como uma ruptura fundamental no imaginário grego, em que a excelência deixa de ser um privilégio hereditário para se tornar, idealmente, um objetivo acessível ao cidadão ativo na vida pública. Essa evolução implicou também uma reconfiguração das práticas educacionais. A educação grega passou a privilegiar o debate racional, o exercício do pensamento crítico e a reflexão ética, elementos antes secundários frente às tradições orais e guerreiras. Segundo Chaui (Marilena Chaui, 2002), a paideia tornou-se uma prática política por excelência, pois preparava o cidadão para deliberar sobre o destino coletivo da pólis. Isso marca um deslocamento da formação voltada à vida privada para uma educação comprometida com a vida pública e a construção da democracia.

Platão e Aristóteles consolidaram a abordagem filosófica da paideia. Em A República, Platão (Platão, séc. IV a.C.) propõe um sistema educacional estruturado em estágios, destinado a conduzir a alma rumo ao conhecimento do Bem e da verdade. Ele acreditava que apenas os mais preparados intelectualmente, aqueles que tivessem desenvolvido plenamente sua razão, poderiam governar de forma justa. Já Aristóteles, em Ética a Nicômaco e Política (Aristóteles, séc. IV a.C.), defende que a formação da virtude por meio do hábito e da razão é essencial para a realização da eudaimonia, ou seja, a vida plena e feliz. Ambos os filósofos argumentam que a educação não deveria ser utilitária ou técnica, mas voltada à formação moral e racional do cidadão. Contudo, como observa Veyne (Paul Veyne, 1983), a paideia operava também como um instrumento de distinção social. O domínio da retórica, da filosofia e das artes liberais era monopolizado pelas elites, que assim consolidavam sua superioridade simbólica e política. Foucault (Michel Foucault, 1984) acrescenta que os sistemas educacionais antigos, ao normatizarem os corpos e as mentes, reproduziam relações de poder sob a aparência de virtude e saber. A educação, nesse sentido, também era um dispositivo de controle, que regulava comportamentos e legitimava hierarquias sociais.

A riqueza conceitual da paideia reside justamente em sua ambivalência: ao mesmo tempo em que propõe um ideal elevado de formação humana, também revela as contradições e exclusões estruturais da sociedade grega. Assim, o estudo da paideia permite compreender não apenas a educação na Grécia Antiga, mas também os debates contemporâneos sobre o papel da educação na formação cidadã e na reprodução das desigualdades sociais.

O CONCEITO DE PAIDEIA E A GRÉCIA ANTIGA

A noção de paideia, concebida na Grécia Antiga, constitui uma das matrizes formadoras mais influentes da cultura ocidental, sendo compreendida não apenas como educação formal, mas como um processo de formação integral do ser humano em suas dimensões física, ética, estética, intelectual e espiritual. A paideia expressa um ideal normativo de humanidade, orientado à areté (virtude) e à participação cívica no espaço público da polis. Contudo, à luz da análise foucaultiana, torna-se possível desnaturalizar tal conceito e revelar os dispositivos de saber-poder que estruturam sua constituição histórica e funcionalidade política. A paideia grega se realiza como um processo de subjetivação orientado pela produção de uma conduta desejada. Como observa Foucault em Microfísica do poder (2011), o poder não se exerce apenas pela coerção, mas através da circulação de saberes que configuram formas de ver, agir e pensar. A educação, nesse contexto, não é apenas transmissão de conteúdos, mas uma estratégia de constituição do sujeito através da normatização dos corpos, das condutas e da linguagem.

A partir de Estratégia, poder-saber (2012), Foucault propõe que o saber não é neutro nem independente, mas funciona como técnica de poder. Assim, a paideia não deve ser lida exclusivamente como um humanismo originário, mas como um dispositivo cultural voltado à produção de subjetividades que garantam a ordem da polis. A formação do cidadão grego implicava a interiorização de princípios como moderação, coragem, lealdade e autocontrole, os quais eram performatizados em práticas como a ginástica, a música, a filosofia e a retórica. Foucault (1975), em Vigiar e Punir, descreve como as sociedades modernas desenvolveram formas disciplinares de controle através da vigilância e do adestramento dos corpos. Embora ambientado em outro período histórico, seu conceito de "disciplina" permite compreender as instituições educacionais da Grécia como dispositivos de poder que organizam o corpo social pela regulação do comportamento individual. O ideal de liberdade associado à paideia não excluía o uso de mecanismos de sujeição. A formação do homem livre dependia da conformação do sujeito a um conjunto normativo de saberes e condutas.

Em As palavras e as coisas (1999), Foucault aponta que cada formação discursiva institui um regime de verdade, isto é, um conjunto de regras que define o que pode ser dito, pensado e legitimado. No contexto da paideia, as verdades sobre o que significa ser um "bom cidadão" ou um "homem virtuoso" não eram naturais, mas socialmente construídas e mantidas por práticas educativas e discursivas. A educação, nesse sentido, funcionava como uma "ordem do discurso" (Foucault, 1995), delimitando os saberes autorizados e os sujeitos legítimos do conhecimento. A seleção dos indivíduos que poderiam participar da paideia também evidencia seu caráter excludente. Mulheres, escravizados e estrangeiros eram privados do acesso aos espaços de formação e de deliberação pública. A liberdade, tão exaltada no discurso educacional, era privilégio de poucos. Em Nascimento da biopolítica (2008), Foucault mostra como a gestão da vida é seletiva e diferenciada, operando através de mecanismos que produzem inclusão e exclusão sob a roupagem da racionalidade. A paideia constituía, portanto, não apenas uma pedagogia da virtude, mas uma biopolítica da cidade.

Por fim, em A coragem da verdade (2008), Foucault retoma a noção de "parresia", a fala verdadeira como ato de coragem do sujeito diante do poder. Nesse contexto, a paideia poderia ser interpretada como a formação do sujeito parresiasta, aquele que se educa não apenas para repetir a verdade instituída, mas para assumi-la como risco e compromisso com o comum. Ainda assim, tal potencial crítico da paideia sempre esteve tensionado com seus usos normativos e seus mecanismos de controle.

Conclui-se, portanto, que o conceito de paideia, ao ser lido através da lente foucaultiana, revela-se menos como um ideal transcendente de humanização e mais como um campo de forças no qual se articulam saberes, poderes e formas de subjetivação. A educação na Grécia Antiga, ao mesmo tempo que propunha a formação do homem virtuoso, operava também como máquina de distinção social, de produção de verdades e de controle dos corpos. Em tempos contemporâneos, a genealogia da paideia oferece subsídios críticos para pensar a educação não como um bem absoluto, mas como prática historicamente situada e politicamente disputada.

A FORMAÇÃO DO HOMEM LIVRE NA CULTURA EDUCACIONAL GREGA

A cultura educacional da Grécia Antiga consagrou o conceito de paideia como um ideal de formação integral do sujeito, voltado não apenas à excelência intelectual, mas sobretudo à virtude (areté), à participação política e à liberdade. No entanto, a formação do "homem livre" na cultura grega não se constrói como um processo linear ou consensual. Pelo contrário, à luz dos estudos de Michel Foucault, é possível desvelar as tênues relações entre saber, poder e subjetivação que estruturam as práticas pedagógicas e políticas da Antiguidade. A paideia, entendida como formação do homem ideal da pólis, não se limitava à instrução formal, mas implicava um processo de moldagem do corpo, da linguagem e da conduta, produzindo um sujeito apto ao exercício da liberdade no interior de um regime de normas e de verdade. Nesse sentido, a paideia pode ser compreendida como uma "tecnologia de si" — nos termos propostos por Foucault (2008) em "A coragem da verdade", uma forma histórica de constituição do sujeito atravessada por saberes e práticas disciplinares.

Foucault, em "Vigiar e Punir" (1975), evidencia como os dispositivos de disciplina operam no corpo e na alma dos indivíduos, promovendo a internalização das normas sociais. Embora voltado ao contexto moderno, esse conceito ilumina aspectos essenciais da educação grega: o ginásio, a música e a retórica não eram apenas meios de formação, mas também instrumentos de docilidade e normatividade. A disciplina do corpo, a regulação dos afetos e o controle da linguagem eram condições para a constituição do sujeito livre. A tensão entre liberdade e sujeição aparece com especial força no exame da agogé espartana, um sistema educacional centrado na formação de guerreiros disciplinados. Como observa Foucault (2012), as práticas educativas podem ser lidas como estratégias de poder-saber, em que o corpo é tomado como superfície de inscrição dos dispositivos normativos. A agogé, nesse sentido, seria uma manifestação precoce de uma biopolítica, um regime em que a vida é gerida por tecnologias disciplinares que visam não apenas o controle, mas a produção de corpos útis e obedientes.

Contudo, é na paideia ateniense que a ambivalência se acentua. A educação aténsica, ao propor a formação do homem livre e racional, operava também como mecanismo de exclusão. Mulheres, escravizados e estrangeiros eram afastados do acesso ao saber e à vida política. A formação da liberdade, portanto, implicava simultaneamente a produção da alteridade como negada ou subjugada. Como afirma Foucault em "As palavras e as coisas" (1999), todo regime de verdade instaura também um campo de exclusões, de silenciamentos e de interdições. Nesse contexto, a formação do sujeito livre não pode ser pensada como autonomia absoluta, mas como resultado de relações de força, de regimes discursivos e de práticas sociais. A liberdade, longe de ser uma essência, é um efeito das condições históricas de possibilidade do sujeito. Em "Microfísica do poder" (2011), Foucault problematiza as formas sutis pelas quais o poder se exerce, não apenas por repressão, mas por meio da produção de saberes e de normas. A paideia, ao mesmo tempo que eleva o indivíduo ao ideal da areté, o submete a um regime estrito de condutas e valores.

No campo do discurso, também se observa o controle exercido sobre o saber e sua transmissão. Em "A ordem do discurso" (1995), Foucault analisa como certos saberes são autorizados e outros interditados, o que se aplica à seleção dos conteúdos educativos, ao modelo de formação filosófica e à constituição da autoridade do mestre. Platão, por exemplo, ao fundar a Academia, instituía também uma nova forma de regular o discurso, com base em uma verdade universalmente estabelecida, excluindo o relativismo sofístico.

Assim, a cultura educacional grega, lida a partir de Michel Foucault, revela uma complexa articulação entre liberdade e normatividade, entre formação e controle. A formação do homem livre, longe de ser um processo espontâneo, era condicionada por tecnologias de poder-saber que operavam sobre o corpo, a linguagem e o pensamento.

Em conclusão, refletir sobre a formação do homem livre na Grécia Antiga à luz de Foucault é também problematizar os fundamentos da educação contemporânea. Se a liberdade é uma construção histórica, atravessada por relações de poder e dispositivos de saber, então é urgente reexaminar os discursos pedagógicos que se pretendem neutros ou libertadores. A genealogia da paideia, nesse sentido, não é apenas um estudo do passado, mas um instrumento crítico para pensar a educação como campo de disputa pela constituição do sujeito, da verdade e da liberdade.

A FORMAÇÃO PARA A GUERRA E A OBEDIÊNCIA AO ESTADO

Esparta era uma sociedade essencialmente militarizada, e sua educação refletia essa característica. O sistema educacional espartano, conhecido como agoge, era obrigatório, estatal e voltado à formação de guerreiros leais, disciplinados e fisicamente preparados. Pomeroy (Sarah B. Pomeroy, 2002) destaca que a agoge funcionava como um poderoso instrumento de controle social e de manutenção da rígida estrutura oligárquica espartana. A partir dos sete anos, os meninos eram retirados de suas famílias e passavam a viver em comunidades coletivas supervisionadas pelo Estado. Ali, eram submetidos a um regime severo, com treinamento físico intenso, alimentação limitada, castigos físicos e estímulo à competição. Segundo Chevitarese (Renato Chevitarese, 2010), a agoge visava moldar cidadãos obedientes, resistentes à dor e preparados para o sacrifício pela pátria. A educação em Esparta era, portanto, uma pedagogia do corpo e da obediência, que suprimia a individualidade e desencorajava o pensamento crítico.

A formação durava até os trinta anos, e durante esse período os jovens eram continuamente testados em provas de resistência, combates, furtos e estratégias militares. A violência e a austeridade eram justificadas pela necessidade de forjar soldados aptos a manter a supremacia militar de Esparta. Foucault (Michel Foucault, 1984) interpreta a agoge como uma tecnologia do corpo, um sistema disciplinar que regulava e adestrava os corpos desde a infância, convertendo os cidadãos em instrumentos do Estado. As meninas também recebiam educação física e treinamento básico, com o objetivo de garantir a produção de filhos fortes e saudáveis. Embora subordinadas à lógica patriarcal, as mulheres espartanas gozavam de relativa autonomia e prestígio, especialmente quando comparadas às mulheres de outras pólis. Pomeroy (Sarah B. Pomeroy, 2002) ressalta que essa maior autonomia refletia a centralidade da reprodução da elite guerreira na ideologia espartana. A educação espartana, portanto, não visava ao desenvolvimento intelectual, artístico ou filosófico, mas sim à conformação absoluta ao modelo de soldado ideal. Sua eficácia organizacional, embora indiscutível, implicava sérias restrições à liberdade individual, à criatividade e à reflexão crítica, aspectos centrais de outras tradições educativas da Grécia, como a ateniense.

Diferente de Esparta, Atenas desenvolveu um modelo educacional que tinha como objetivo central a formação de cidadãos livres, racionais e politicamente engajados. A educação ateniense valorizava a autonomia do pensamento, a expressão retórica, o cultivo da ética e o exercício da filosofia. Chaui (Marilena Chaui, 2002) afirma que a educação em Atenas era voltada à construção da cidadania, pois fomentava a capacidade de argumentar, deliberar e participar das decisões coletivas.

O sistema educacional ateniense dividia-se em duas grandes fases. A primeira, elementar, iniciava-se por volta dos sete anos de idade e incluía leitura, escrita, música, ginástica e aritmética. O objetivo era proporcionar uma formação básica que unisse corpo e mente, preparando o jovem para a convivência social e cívica. A segunda fase, voltada aos adolescentes e jovens adultos, incluía a formação superior, muitas vezes sob a orientação de mestres renomados como os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles. Essa fase abrangia retórica, lógica, filosofia, política e ciências.

Platão (Platão, séc. IV a.C.), em A República, propõe uma educação dividida em etapas rigorosas que conduzem o indivíduo à contemplação do Bem. Ele defende a necessidade de uma formação filosófica dos governantes, capaz de desenvolver as virtudes da alma e assegurar a justiça na pólis. Aristóteles (Aristóteles, séc. IV a.C.), em Política, sustenta que a educação deve preparar o cidadão para o exercício da razão e da virtude, permitindo- lhe alcançar a eudaimonia e contribuir para a estabilidade da cidade. Ambos os filósofos viam a educação como uma prática ética e política. Não bastava saber governar; era preciso ser justo, racional e virtuoso. A educação, assim, tornava-se o principal meio para a formação do cidadão ideal. Essa concepção influenciaria profundamente os modelos pedagógicos ocidentais.

Entretanto, a educação ateniense era marcada por limitações. Apenas os homens livres, filhos de cidadãos atenienses, tinham pleno acesso ao modelo de paideia. Mulheres, estrangeiros (metecos) e escravizados eram sistematicamente excluídos. Rancière (Jacques Rancière, 1995) denuncia esse paradoxo entre a retórica democrática e a prática excludente da educação ateniense, alertando que a emancipação intelectual era privilégio de uma elite. Além disso, Veyne (Paul Veyne, 1983) afirma que a cultura clássica era, na prática, um instrumento de distinção social. O domínio da filosofia e da retórica servia para legitimar o poder das elites, enquanto a maioria da população permanecia afastada dos saberes formais. Mesmo os sofistas, que buscavam democratizar o saber por meio do ensino da retórica, foram marginalizados por Platão e Aristóteles, acusados de manipular a verdade. No entanto, como aponta Jaeger (Werner Jaeger, 2013), os sofistas tiveram papel crucial na difusão da paideia entre os cidadãos comuns, propondo um modelo mais acessível e pragmático de educação.

Dessa forma, a análise da educação na Grécia Antiga exige uma abordagem crítica e dialética, capaz de reconhecer tanto seus avanços quanto suas contradições. A paideia, com todas as suas ambivalências, continua sendo uma chave interpretativa fundamental para refletir sobre o papel da educação na construção da cidadania, na promoção da liberdade e na reprodução das desigualdades.

A PAIDEIA ATENIENSE E SUAS LIMITAÇÕES

Apesar do ideal de formação racional e cívica, a educação ateniense era profundamente excludente. Apenas os cidadãos homens livres, filhos de pais atenienses, tinham acesso ao modelo completo de paideia. Mulheres, estrangeiros (metecos) e escravizados estavam à margem do sistema educacional. Jacques Rancière (1995) alerta para esse paradoxo entre a retórica democrática e a prática excludente da educação ateniense. Segundo ele, a ideia de emancipação intelectual era restringida a uma elite, enquanto a maior parte da população era mantida fora dos espaços de saber e poder. A crítica contemporânea à paideia também enfatiza os mecanismos de dominação simbólica presentes na educação ateniense. Paul Veyne (1983) argumenta que a cultura clássica não era um patrimônio coletivo, mas um instrumento de distinção das elites, que legitimavam seu poder por meio do domínio das letras e da filosofia. Assim, a paideia era tanto uma forma de emancipação quanto uma técnica de exclusão e dominação. Mesmo figuras como os sofistas, que buscavam democratizar o saber por meio do ensino da retórica e da argumentação, foram marginalizados por Platão e Aristóteles, que os acusavam de relativismo e manipulação. No entanto, como destaca Werner Jaeger (2013), os sofistas desempenharam papel fundamental na difusão da paideia entre os cidadãos comuns, sendo responsáveis por um modelo educativo mais pragmático e acessível.

A análise da educação na Grécia Antiga, portanto, exige uma abordagem crítica que reconheça tanto os avanços filosóficos e políticos quanto as contradições e limitações dos modelos educacionais propostos pelas pólis gregas. A riqueza conceitual da paideia ainda hoje inspira debates sobre a função social da educação e sobre os mecanismos de exclusão que podem estar presentes mesmo nos sistemas mais idealizados. As epopeias de Homero, Ilíada e Odisseia, foram fundamentais na educação grega do período pré-clássico. Elas estabeleceram padrões de areté, ou virtude, especialmente associada à coragem, honra e heroísmo. A paideia grega foi moldada por esses ideais, usados como modelo de conduta moral para a juventude. Segundo Vernant (1990), os valores heroicos homéricos foram a base inicial para os conceitos de virtude e cidadania que seriam mais tarde reelaborados nas pólis democráticas. Os jovens eram incentivados a refletir sobre as ações dos heróis homéricos e a aplicar esses valores à vida cotidiana.

Os sofistas do século V a.C. introduziram uma educação voltada para a retórica, argumentação e sucesso na vida pública, mas sua relativização da verdade atraiu críticas severas de filósofos como Platão e Aristóteles. Platão, em A República, criticava a abordagem pragmática e utilitária dos sofistas, defendendo uma educação orientada para a busca da verdade e da justiça (Platão, 1993 [originalmente século IV a.C.]). Aristóteles via a educação como um processo ético e racional que levava à eudaimonia, a realização plena da vida humana (Aristóteles, 2004). A crítica filosófica à sofística evidenciou as limitações de um ensino desprovido de compromisso com a moral e a verdade. Na concepção grega de educação integral, a música (mousiké) e a ginástica (gymnastiké) não eram atividades secundárias ou meramente recreativas, mas sim pilares fundamentais do processo formativo. Ambas desempenhavam funções pedagógicas essenciais no ideal de formação do cidadão, concebido como um ser que deveria desenvolver plenamente tanto as capacidades do corpo quanto as da alma. A educação na Grécia Antiga, especialmente em Atenas, visava à paideia, ou seja, à formação completa do ser humano, orientada para a virtude (areté) e para a participação ativa na vida cívica da pólis.

A música, nesse contexto, era compreendida como instrumento de cultivo da alma e de desenvolvimento da sensibilidade moral e estética. Ela estava associada à harmonia interna, à disciplina emocional e à formação do caráter. Através do ritmo, da melodia e da poesia, a música educava os afetos e moldava o comportamento, funcionando como um meio de ordenar interiormente o indivíduo para que ele estivesse em sintonia com a ordem do cosmos e com os valores da comunidade. De acordo com Jaeger (2013), a música era concebida como um recurso civilizador, capaz de suavizar os instintos e orientar o espírito em direção à medida, à moderação e à beleza.

A ginástica, por sua vez, tinha como finalidade o fortalecimento físico, o cultivo da coragem e da resistência, e a preparação do corpo para a ação no mundo. Mas não se tratava apenas de vigor físico por si só: a prática corporal era orientada por valores éticos, como o autocontrole, a disciplina e o equilíbrio. Assim como a música harmonizava a alma, a ginástica moldava o corpo para que este estivesse apto a servir com dignidade à pólis e a sustentar uma vida virtuosa. Essa integração entre corpo e alma é reafirmada por Aristóteles, que, em Política, defende que a educação deve ser dirigida tanto à parte racional quanto à parte física do ser humano, em busca de uma vida plena, equilibrada e ética. Para o filósofo, formar o cidadão significa cultivar a excelência em todas as dimensões da existência humana, intelectual, moral e corporal (Aristóteles, 2004). Portanto, tanto Jaeger quanto Aristóteles apontam que o verdadeiro ideal pedagógico grego está no equilíbrio dinâmico entre o físico e o espiritual, entre o treinamento do corpo e o refinamento da alma. Essa visão da educação continua a inspirar reflexões contemporâneas sobre o que significa, de fato, formar seres humanos completos e conscientes de seu papel na sociedade.

O FORMAR SERES HUMANOS COMPLETOS E CONSCIENTES DE SEU PAPEL NA SOCIEDADE SEGUNDO A GRÉCIA ANTIGA

A Grécia Antiga legou à cultura ocidental um ideal de formação humana que transcendia a mera instrução ou capacitação técnica. Tal formação, condensada no conceito de paideia, almejava a realização integral do ser humano por meio do cultivo da areté (excelência ou virtude), da razão e do engajamento político. Ser completo, nesse contexto, implicava desenvolver-se corporal, intelectual, moral e espiritualmente, em consonância com a ordem da polis. Entretanto, uma leitura foucaultiana permite problematizar essa concepção clássica, evidenciando os dispositivos de poder-saber que atravessam a constituição do sujeito dito "pleno".

A paideia não consistia unicamente em uma proposta humanista, mas em um regime de formação normativo que implicava a interiorização de saberes, condutas e afetos socialmente regulados. Como aponta Foucault (2011), o poder não atua somente de maneira repressiva, mas por meio de uma "microfísica" que disciplina os corpos, organiza os espaços e regula os discursos. Formar um sujeito completo, na Grécia Antiga, significava conformá-lo a um ideal específico de humanidade, articulado ao funcionamento da cidade e à manutenção da ordem social.

Em Estratégia, poder-saber (2012), Foucault e Motta exploram a relação entre conhecimento e domínio, demonstrando que todo saber é uma técnica de poder. Sob essa perspectiva, a formação grega aparece como um conjunto de práticas discursivas e corporais voltadas à produção de um tipo ideal de cidadão: racional, moderado, eloquente e combativo. O ideal de completude do sujeito se dá, portanto, não por expansão ilimitada de suas potencialidades, mas por sua adequação a um modelo legítimo e hegemônico de humanidade. Essa análise pode ser aprofundada com Vigiar e Punir (1975), onde Foucault descreve a formação do "corpo dócil" como resultado das técnicas disciplinares. Ainda que ambientado na modernidade, esse conceito permite repensar as práticas educativas gregas — como a ginástica, a música, a retórica e a filosofia — não apenas como exercícios de autodesenvolvimento, mas como métodos de regulação social e subjetivação. O sujeito grego não se realiza plenamente fora das fronteiras normativas da polis, sendo que sua identidade é moldada pelo discurso e pela disciplina. Em As palavras e as coisas (1999), Foucault afirma que cada cultura institui seu próprio regime de verdade, isto é, seus critérios de inteligibilidade, legitimidade e valor. No caso grego, o saber filosófico e retórico se constituiu como instrumento de distinção entre o homem livre e o barbaroi, entre o cidadão e o escravo, entre os incluídos e os silenciados. Formar um ser humano completo, nesse sentido, era formar um sujeito inserido no campo de enunciação válido, capaz de produzir sentido dentro da ordem discursiva vigente.

A paideia também se configura como uma tecnologia biopolítica, conforme desenvolve Foucault em Nascimento da biopolítica (2008). Ao estabelecer quem deve viver e como deve viver, o projeto educacional da Grécia Antiga atua como uma política da vida, operando seleções, hierarquias e distribuições dos corpos e saberes. Mulheres, escravizados e estrangeiros não são apenas excluídos do ideal de formação; eles são regulados à margem, convertidos em contrapartes silenciosas da liberdade do cidadão grego. Essa dinâmica de inclusão-exclusão é particularmente visível nas práticas de formação do discurso. Em A ordem do discurso (1995), Foucault mostra como certas falas são autorizadas enquanto outras são interditadas. O saber grego, ao instituir o logos como princípio da racionalidade e da verdade, silencia formas outras de saber e de expressão, consolidando uma pedagogia do enunciado legítimo. A formação plena exige, assim, a adesão ao modelo discursivo hegemônico.

Em A coragem da verdade (2008), Foucault resgata a figura do parresiasta, aquele que, por coragem ética, fala a verdade mesmo diante do risco. Na Grécia, essa figura estava ligada à educação filosófica, cujo fim não era apenas a transmissão de saberes, mas a constituição de sujeitos capazes de se conduzir a si mesmos com autonomia e responsabilidade. No entanto, essa parresia também era privilégio de poucos, reservada aos iniciados no logos legítimo e aos reconhecidos como cidadãos de pleno direito. Formar seres humanos completos, segundo a Grécia Antiga, não significa promover um desenvolvimento universal e ilimitado da subjetividade, mas configurar sujeitos segundo os moldes da cidade, através de práticas discursivas, corporais e morais. O sujeito consciente de seu papel social é aquele que internaliza o regime de verdade da polis e se posiciona dentro de seus limites, ao mesmo tempo em que participa da sua manutenção.

Em breve síntese, a leitura foucaultiana do ideal educativo grego permite deslocar a compreensão da paideia como um ideal universal de formação para entendê-la como um dispositivo histórico de constituição do sujeito. Tal compreensão nos obriga a rever os discursos pedagógicos contemporâneos que ainda se sustentam sobre a promessa de uma formação plena e autônoma. Em uma era marcada pela gestão tecnocrática da vida e pela segmentação do saber, retomar criticamente a genealogia da formação humana é um gesto filosófico e político urgente.

A EXCLUSÃO DE MULHERES, ESCRAVIZADOS E METECOS

Apesar dos ideais democráticos que caracterizavam a pólis ateniense, o sistema educacional dessa cidade-estado era altamente excludente, com a educação formal sendo restrita a uma camada muito específica da população: os cidadãos do sexo masculino. Esse modelo educacional, baseado na ideia de que apenas os homens livres, filhos de pais atenienses, eram dignos de uma educação completa e de uma participação ativa na vida política, reflete as profundas desigualdades sociais da época. Mulheres, metecos (estrangeiros residentes em Atenas, que não possuíam cidadania) e escravizados eram sistematicamente excluídos desse processo educacional formal (Rancière, 1995). Rancière analisa essa exclusão como uma das principais contradições entre os ideais democráticos proclamados pela Atenas clássica e a realidade social da cidade. Embora os atenienses proclamassem que a educação deveria ser voltada para a formação de cidadãos ativos na política, essa ideologia não se refletia na prática. A exclusão de grandes segmentos da população, como mulheres e metecos, da educação formal, é vista por Rancière como uma crítica à falácia democrática, que contradizia a igualdade política proclamada pela teoria democrática ateniense (Rancière, 1995).

No contexto de Esparta, embora as mulheres tivessem mais liberdade em relação às suas contrapartes atenienses, sua educação também era fortemente orientada pela estrutura militarista da cidade-estado. Em Esparta, as meninas recebiam uma educação voltada para fortalecer o corpo e a mente, com o objetivo de se tornarem mães de guerreiros fortes e resilientes, e, assim, contribuir para a perpetuação do sistema militar. Pomeroy (2002) aponta que, apesar dessa aparente liberdade relativa em relação ao papel da mulher, a educação das espartanas estava completamente subordinada à lógica de reprodução da ordem militar, e não à promoção de uma liberdade individual ou à participação no processo político (Pomeroy, 2002). Essa marginalização de mulheres, metecos e escravizados evidencia as barreiras estruturais que estavam enraizadas no sistema educacional grego, onde, apesar de se falar em liberdade e igualdade política, as oportunidades educacionais eram limitadas a um grupo seleto de indivíduos. Além disso, as ideias de liberdade e participação política, que são frequentemente associadas à democracia ateniense, eram contraditas pela exclusão de grandes porções da população da educação formal e, por conseguinte, da plena participação na vida política e cívica. Essa dinâmica revela a complexidade das ideologias educacionais e políticas da Grécia Antiga, onde, apesar de alguns avanços, as desigualdades estruturais estavam profundamente imbricadas nos sistemas educacionais e nas próprias noções de cidadania e democracia.

A FUNÇÃO DA RETÓRICA E DA FILOSOFIA

Na democracia ateniense, a retórica era essencial para a participação cívica. Sofistas e filósofos preparavam os cidadãos para falar em assembleias e tribunais. Contudo, essa valorização da persuasão também foi criticada. Platão, em Górgias, diferencia o discurso verdadeiro do discurso apenas persuasivo, advertindo contra o uso manipulativo da retórica (Platão, 1993). Aristóteles, embora reconhecesse o valor da retórica, alertava para os riscos de seu uso desprovido de ética (Aristóteles, 2004). Na Grécia Antiga, a educação não era conduzida por instituições estatais centralizadas, como ocorre nas sociedades modernas, mas sim por educadores que atuavam em diferentes esferas da vida pública. Sofistas, filósofos e instrutores públicos assumiam funções pedagógicas fundamentais, moldando não apenas o intelecto, mas também o ethos dos jovens cidadãos. Esses educadores formavam uma elite do saber que, ao mesmo tempo que promovia a reflexão e o domínio da linguagem, operava dentro das tensões entre o ideal democrático e as estruturas excludentes da pólis. Os sofistas foram os primeiros a sistematizar o ensino da retórica, da argumentação e da relatividade dos valores morais. Considerados por muitos como os fundadores da pedagogia prática, eles defendiam que a excelência (areté) podia ser ensinada e adaptada às exigências da vida política. Seu ensino itinerante, pago e acessível a um público mais amplo, representava uma tentativa de democratizar o saber, embora tenham sido duramente criticados por Platão e Aristóteles por supostamente corromperem a juventude e desvalorizarem a busca da verdade objetiva. Como observa Jaeger (2013), os sofistas desempenharam um papel crucial na difusão da paideia entre os cidadãos comuns, oferecendo uma formação voltada para a eficácia no discurso público e na deliberação política. A pedagogia socrática, por sua vez, rompe com os métodos tradicionais e inaugura uma revolução no pensamento educativo. Sócrates rejeitava tanto a transmissão dogmática de saberes quanto a retórica meramente persuasiva. Em vez disso, desenvolveu um método dialógico, conhecido como maiêutica, que consistia em interrogar seus interlocutores, conduzindo-os a reconhecer suas próprias ignorâncias e, a partir daí, construir um conhecimento autêntico. Para Sócrates, a educação era um processo interior de descoberta da verdade, e o papel do educador não era o de fornecer respostas prontas, mas o de provocar a reflexão crítica e o autoconhecimento. Essa abordagem socrática fundamentava-se na ética, na liberdade interior e na responsabilidade moral. A educação, para Sócrates, não visava formar oradores hábeis ou técnicos eficientes, mas seres humanos virtuosos e conscientes de seu papel na comunidade. Embora não tenha deixado obras escritas, sua influência foi decisiva sobre Platão, que o transformou em personagem central de seus diálogos filosóficos. Platão, especialmente em obras como A República, sistematiza o legado socrático em um modelo educacional que visa a ascensão da alma ao conhecimento do Bem. A educação, nesse sentido, é um processo de purificação e elevação espiritual, organizado em estágios que levam do mundo sensível ao mundo inteligível. A formação dos governantes filósofos, segundo Platão, exige décadas de estudo em disciplinas como matemática, dialética e filosofia, culminando na contemplação do Bem como forma suprema de conhecimento e justiça.

Aristóteles, discípulo de Platão, oferece uma perspectiva mais pragmática e ética sobre a educação. Em obras como Ética a Nicômaco e Política, ele defende que a finalidade da educação é a formação da virtude por meio do hábito racional. A educação deve preparar o cidadão para viver bem em comunidade, promovendo a eudaimonia, ou seja, uma vida plena de sentido, realizada na prática da razão e da justiça. Diferente de Platão, Aristóteles reconhece a importância da experiência sensível e da polis como espaço de formação ética e política. Tanto Platão quanto Aristóteles reconheciam o papel central da educação na constituição do sujeito moral e do cidadão. A influência de seus modelos educativos se estende até hoje, inspirando teorias pedagógicas contemporâneas baseadas no desenvolvimento integral do ser humano, na autonomia da razão e na formação crítica. A pedagogia moderna, ao valorizar o pensamento reflexivo, a ética e o diálogo, resgata a herança socrático-platônica e reafirma o papel da educação como prática emancipatória e transformadora. As diversas pólis gregas apresentavam modelos distintos de educação. Atenas valorizava a formação filosófica e cívica; Esparta, por outro lado, priorizava o treinamento militar e disciplinar. Essas diferenças refletiam as estruturas políticas e sociais de cada pólis. A educação era usada como instrumento de coesão interna e perpetuação do status quo (Jaeger, 2013). Mesmo em pólis como Corinto e Tebas, embora houvesse traços comuns com Atenas, as ênfases variavam conforme o contexto local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise comparativa dos modelos educacionais de Esparta e Atenas oferece, a meu ver, uma compreensão profunda e reveladora das formas como a educação era concebida e praticada na Grécia Antiga, evidenciando como ela se articulava diretamente com a organização social, política e militar de cada cidade-Estado. Ao longo da pesquisa, foi inevitável perceber como esses modelos distintos de educação revelam não apenas diferentes prioridades pedagógicas, mas concepções opostas sobre o papel do indivíduo na sociedade. Em Atenas, a educação estava centrada na formação do cidadão ideal, fundamentada na retórica, na filosofia, na arte e na vivência das virtudes cívicas, cruciais para a participação ativa na vida pública. Esse ideal buscava desenvolver o ser humano de forma integral, unindo treinamento físico e instrução intelectual, e promovendo valores como a liberdade, a justiça e o respeito pelas leis. A filosofia, especialmente a partir de Sócrates, Platão e Aristóteles, teve papel essencial ao moldar uma visão de educação voltada não apenas à instrução técnica, mas à formação ética e moral do indivíduo.

Por outro lado, ao me debruçar sobre Esparta, o contraste tornou-se evidente. Seu sistema educacional, a agogé, era rigidamente voltado à formação de guerreiros disciplinados, leais e obedientes à pólis. Desde a infância, os jovens eram submetidos a um regime intenso de treinamento físico e à interiorização de valores como obediência, coragem e austeridade. Foucault me ajudou a compreender esse sistema como uma verdadeira tecnologia política de controle dos corpos, onde o indivíduo era moldado para cumprir sua função no coletivo sem espaço para a autonomia ou a reflexão crítica. Ao contrário de Atenas, em que a formação cívica incluía o debate e o uso da razão, Esparta buscava a manutenção da ordem através da homogeneização e da força. Além disso, chamou-me atenção o papel ambíguo das mulheres nas duas cidades: enquanto as atenienses eram excluídas da vida pública e da educação formal, as espartanas, embora também subordinadas ao sistema, possuíam relativa autonomia, inclusive no âmbito físico e econômico, uma exceção notável na Antiguidade. Ambos os modelos, apesar de suas diferenças radicais, atribuíam à educação um papel central na constituição do sujeito e da sociedade. A diferença fundamental reside na finalidade: Atenas aspirava formar um cidadão autônomo e participativo; Esparta, um soldado disciplinado e funcional. Essa constatação me levou a uma pergunta central: a educação deve formar sujeitos livres e críticos ou indivíduos úteis à manutenção de determinada ordem social? Perceber essa tensão entre emancipação e subordinação foi, para mim, um ponto de virada na forma de entender a história da educação.

Não obstante, a reflexão sobre a paideia, enquanto ideal de formação integral do ser humano, também me fez reconhecer suas contradições. Ainda que formulada como um caminho rumo à excelência humana (areté), a paideia era acessível apenas a uma elite restrita: homens livres e nascidos na pólis. Mulheres, estrangeiros e escravizados estavam à margem desse projeto educacional. Mesmo Atenas, tida como berço da democracia, excluía vastos setores sociais da educação e da cidadania. Em Esparta, por sua vez, apesar de o sistema formativo atingir todos os cidadãos homens, seu foco era a eficiência militar, e não a formação ética ou política. Essas exclusões revelam que a educação na Grécia Antiga não era um campo neutro nem plenamente libertador, mas um instrumento de reprodução de hierarquias sociais e de poder.

Ao confrontar essas constatações com leituras contemporâneas, especialmente de autores como Jacques Rancière, Paul Veyne e Michel Foucault —, senti-me provocado a revisar concepções idealizadas sobre a educação. Rancière, por exemplo, questiona a própria noção de emancipação vinculada ao saber pedagógico tradicional, defendendo que a verdadeira emancipação está na capacidade de aprender por si mesmo. Já Foucault evidencia os modos pelos quais a educação opera como um dispositivo de poder, que disciplina corpos e regula subjetividades. Essas abordagens ampliaram meu olhar e fortaleceram minha compreensão de que a educação não é apenas um processo de transmissão de conhecimento, mas uma prática política, marcada por disputas, exclusões e possibilidades de resistência.

Hoje, ao pensar sobre os sistemas educacionais da Grécia Antiga, vejo mais do que um legado histórico; vejo um espelho das tensões que ainda enfrentamos. A busca por uma educação verdadeiramente inclusiva, crítica e emancipadora permanece um desafio urgente. Em tempos de profundas desigualdades sociais, econômicas e políticas, acredito que refletir sobre os fundamentos da paideia, com suas virtudes e suas limitações, nos ajuda a repensar o papel que a educação pode e deve desempenhar na construção de sociedades mais justas e democráticas. Para mim, a grande lição que a Grécia Antiga nos deixa não é um modelo a ser seguido, mas uma interrogação permanente: que tipo de ser humano queremos formar? Que sociedade queremos construir a partir da escola? Ao trazer essas questões para o presente, reafirmo a importância da educação como um campo de luta, de criação e de transformação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Discente do curso de Pedagogia da Universidade Estácio de Sá (Unesa), Campus Teresópolis, RJ.

2 Docente dos Cursos de Pedagogia, Análise e Desenvolvimento de Sistemas e Ciências da Computação (UNESA-RJ). Doutorando em Educação pela Universidade Nacional de Rosário (UNR-ARG). Mestrado em Educação (UNESA-RJ). MBA em Data Warehouse e Business Intelligence (FI - PR). Pós-Graduado em Engenharia de Software, Antropologia, Psicopedagogia, Neuropsicopedagogia, Educação no Campo, Filosofia e Ciência da Religião (FAVENI-MG). Historiador pela Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU-SP).