SEPSE E CHOQUE SÉPTICO: ABORDAGEM IMUNOMETABÓLICA MODERNA E O PARADIGMA DA MEDICINA DE PRECISÃO EM TERAPIA INTENSIVA

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17982080


Fernanda Cristina Galerani Gualtieri Parpinelli


RESUMO
A sepse e o choque séptico representam condições críticas de elevada mortalidade, resultantes de uma resposta desregulada do hospedeiro a infecções. Avanços recentes em imunometabolismo têm revelado que o estado séptico não é linear, mas composto por fases dinâmicas de hiper-inflamação, imunossupressão e disfunção bioenergética, influenciadas por fenótipos celulares específicos e endótipos moleculares. A compreensão desses mecanismos permitiu ampliar o paradigma da medicina de precisão em terapia intensiva, integrando biomarcadores imunológicos, assinaturas transcriptômicas, perfil mitocondrial e ferramentas de inteligência artificial para estratificação prognóstica e direcionamento terapêutico. Esta revisão sintetiza as evidências contemporâneas sobre imunometabolismo da sepse, discute potenciais alvos terapêuticos emergentes — como imunoadjuvantes, moduladores metabólicos e terapias personalizadas — e analisa desafios para implementação clínica, incluindo heterogeneidade dos pacientes, validação de biomarcadores e limitações operacionais em UTIs. Conclui-se que a incorporação de uma abordagem personalizada, sustentada por evidências imunometabólicas robustas, é fundamental para aprimorar o manejo da sepse e reduzir mortalidade, embora ainda dependa de estudos translacionais e ensaios clínicos estritamente delineados.
Palavras-chave: Sepse; Choque séptico; Imunometabolismo; Medicina de precisão; Terapia intensiva; Biomarcadores; Imunoparalisia.

ABSTRACT
Sepsis and septic shock remain critical conditions associated with high mortality, driven by a dysregulated host response to infection. Recent advances in immunometabolism reveal that sepsis is not a linear process but a dynamic syndrome encompassing phases of hyperinflammation, immunosuppression, and bioenergetic dysfunction, shaped by specific cellular phenotypes and molecular endotypes. This evolving understanding has expanded the precision medicine paradigm in critical care, incorporating immunological biomarkers, transcriptomic signatures, mitochondrial profiling, and artificial intelligence–based tools for prognostic stratification and targeted therapy. This review synthesizes contemporary evidence on the immunometabolic foundations of sepsis, highlights emerging therapeutic strategies — including immunoadjuvants, metabolic modulators, and personalized treatment approaches — and discusses challenges for clinical implementation, such as patient heterogeneity, biomarker validation, and operational limitations within intensive care units. We conclude that personalized, immunometabolism-informed management represents a promising avenue to improve outcomes in sepsis; however, its widespread adoption requires robust translational research and rigorously designed clinical trials.
Keywords: Sepsis; Septic shock; Immunometabolism; Precision medicine; Critical care; Biomarkers; Immunosuppression.

1. INTRODUÇÃO

A sepse e o choque séptico permanecem entre as principais causas de mortalidade em unidades de terapia intensiva (UTI), representando um desafio global de saúde pública. Tradicionalmente definidos como uma resposta inflamatória exacerbada frente a uma infecção, esses quadros são hoje compreendidos como síndromes complexas, marcadas por profunda heterogeneidade biológica e clínica. A definição atual da Sepsis-3 descreve a sepse como uma disfunção orgânica decorrente de uma resposta desregulada do hospedeiro, ressaltando que o dano tecidual deriva tanto do patógeno quanto das alterações imunometabólicas do próprio organismo.

Nos últimos anos, avanços substanciais em imunologia, biologia celular e biologia de sistemas revelaram que a sepse não evolui de forma linear, mas sim através de múltiplos estágios caracterizados por hiper-inflamação inicial, seguida por imunossupressão persistente e disfunção bioenergética, especialmente mitocondrial. A transição entre esses estágios varia entre indivíduos, sendo influenciada por fatores genéticos, comorbidades, microbioma, idade e carga inflamatória basal. Esse entendimento reforça que a sepse não é uma única doença, mas um conjunto de endótipos imunometabólicosdistintos, cada um com trajetória clínica, prognóstico e resposta terapêutica próprios.

Paralelamente, o conceito de medicina de precisão tornou-se especialmente relevante na sepse, uma vez que terapias uniformes têm se mostrado limitadas diante da grande variabilidade entre os pacientes. Ferramentas como análise transcriptômica, perfil metabólico, avaliação funcional de células imunes, quantificação de biomarcadores plasmáticos e modelos preditivos baseados em inteligência artificial (IA) têm ampliado a capacidade de estratificação prognóstica e possibilitam identificar pacientes que, por exemplo, se beneficiam de imunomodulação, reposição metabólica ou terapias de suporte avançado.

A integração entre imunologia, metabolismo celular e tecnologia aplicada à saúde inaugurou um novo paradigma: o da sepse como uma entidade imunometabólica complexa, em que a compreensão da disfunção energética, da reprogramação celular e da exaustão imune é essencial para nortear decisões terapêuticas. Este artigo tem como objetivo revisar os principais avanços nesse campo, discutir o impacto da medicina personalizada no manejo de pacientes sépticos e analisar as perspectivas e limitações atuais dessa abordagem.

ressaltando que o dano tecidual deriva tanto do patógeno quanto das alterações imunometabólicas do próprio organismo.

2. METODOLOGIA

Este estudo consiste em uma revisão narrativa da literatura, com características de revisão integrativa, desenvolvida com o objetivo de sintetizar as evidências recentes sobre imunometabolismo da sepse, estratificação imunológica personalizada, biomarcadores prognósticos e implicações terapêuticas no contexto da medicina de precisão em terapia intensiva.

2.1. Fontes de Dados e Estratégia de Busca

A busca bibliográfica foi realizada entre janeiro de 2015 e janeiro de 2025 nas seguintes bases de dados:

  • PubMed/MEDLINE

  • Scopus

  • Web of Science

  • Embase

  • SciELO

  • Google Scholar (busca complementar)

Foram utilizados descritores MeSH e termos livres, combinados com operadores booleanos:

  • “sepsis”, “septic shock”, “immune dysfunction”,

  • “immunometabolism”, “bioenergetics”, “mitochondrial dysfunction”,

  • “precision medicine”, “endotypes”, “biomarkers”,

  • “transcriptomics”, “immunotherapy”, “machine learning”.

Exemplo de estratégia combinada:
(“sepsis” AND “immunometabolism”) AND (“precision medicine” OR “endotypes”)

2.2. Critérios de Inclusão

Foram incluídos estudos que:

  1. Abordassem mecanismos imunometabólicos na sepse ou choque séptico.

  2. Avaliassem biomarcadores imunológicos, transcriptômicos ou bioenergéticos.

  3. Investigassem medicina de precisão, estratificação fenotípica ou endótipos.

  4. Descrevessem abordagens terapêuticas direcionadas ou emergentes.

  5. Fossem artigos originais, revisões sistemáticas, diretrizes internacionais ou ensaios clínicos.

  6. Estivessem publicados em inglês ou português.

2.3. Critérios de Exclusão

Foram excluídos:

  • Relatos de caso isolados.

  • Estudos exclusivamente experimentais in vitro sem correlação translacional.

  • Trabalhos cujo foco não estivesse relacionado à imunologia, metabolismo celular ou medicina de precisão em sepse.

  • Artigos com metodologia insuficientemente descrita.

2.4. Processo de Seleção e Extração dos Dados

A seleção ocorreu em etapas:

  1. Triagem de títulos e resumos para identificar relevância.

  2. Leitura integral dos artigos elegíveis.

  3. Extração padronizada contendo:

    • tipo de estudo,

    • população analisada,

    • biomarcadores avaliados,

    • mecanismos imunometabólicos envolvidos,

    • potenciais alvos terapêuticos,

    • implicações para medicina de precisão.

2.5. Síntese dos Achados

Os estudos foram organizados em quatro categorias temáticas:

  1. Mecanismos imunometabólicos da sepse

  2. Endótipos e fenótipos imunológicos

  3. Biomarcadores diagnósticos e prognósticos

  4. Imunomodulação e terapias personalizadas

A análise seguiu abordagem crítica e interpretativa, enfatizando avanços conceituais, lacunas de conhecimento e perspectivas terapêuticas.

3. DESENVOLVIMENTO

A sepse é uma síndrome biologicamente complexa, marcada por alterações profundas no sistema imune e no metabolismo celular, que se manifestam de maneira altamente heterogênea entre indivíduos. Os avanços recentes em imunologia, biologia de sistemas e tecnologias ômicas possibilitaram compreender que a resposta séptica envolve uma interação dinâmica entre inflamação, imunossupressão, disfunção bioenergética e falência orgânica. A seguir, são descritos os principais mecanismos imunometabólicos envolvidos, os endótipos emergentes, biomarcadores relevantes e as perspectivas terapêuticas personalizadas.

3.1. Imunometabolismo na Sepse: Reprogramação Celular e Disfunção Energética

A resposta imune na sepse é sustentada por reprogramação metabólica profunda, caracterizada por:

a) Glicólise acelerada (metabolismo tipo Warburg)

Macrófagos, monócitos e células T ativadas passam a depender de glicólise aeróbica para produção rápida de energia e metabólitos inflamatórios (succinato, lactato).

b) Disfunção mitocondrial

As mitocôndrias sofrem queda da atividade da cadeia respiratória, diminuição do potencial de membrana e redução da síntese de ATP, contribuindo para:

  • disfunção orgânica,

  • incapacidade fagocitária,

  • imunoparalisia persistente.

c) Alteração de vias bioenergéticas adaptativas

Vias como mTOR, HIF-1α, AMPK e SIRTUINAS modulam a resposta inflamatória e a sobrevivência celular, influenciando diretamente prognóstico e evolução clínica.

A compreensão dessa reprogramação metabólica permitiu identificar potenciais alvos terapêuticos, como reposição de cofatores mitocondriais (tiamina), moduladores de glicólise e estratégias de restauração bioenergética.

3.2. Dinâmica Imunológica: Hiperinflamação, Imunossupressão e Imunoparalisia

A sepse não se limita a um estado de hiper-inflamação sistêmica. Estudos transcriptômicos mostram que, desde fases iniciais, muitos pacientes apresentam sinais simultâneos de:

1. Hiperinflamação:

  • Elevação de IL-6, TNF-α e IL-1β

  • Ativação generalizada de neutrófilos e monócitos

  • Formação de NETs e estresse oxidativo

2. Imunossupressão:

  • Queda de HLA-DR monocitário

  • Linfopenia profunda (principalmente T CD4+ e CD8+)

  • Apoptose linfocitária acelerada

  • Aumento de vias inibitórias (PD-1/PD-L1)

3. Imunoparalisia Prolongada:

Associada a risco elevado de:

  • infecções oportunistas,

  • reativação viral (HSV, CMV),

  • mortalidade tardia na UTI.

A magnitude de cada fase varia entre indivíduos, reforçando a necessidade de estratificação fenotípica personalizada.

3.3. Endótipos e Fenótipos na Sepse: Um Novo Paradigma

Os avanços em transcriptômica, proteômica e análises de alta dimensionalidade têm permitido identificar endótipos imunometabólicos distintos na sepse, cada um com características biológicas próprias, trajetórias clínicas específicas e potenciais respostas terapêuticas diferenciadas. Esses endótipos representam um marco na compreensão contemporânea da sepse e constituem a base conceitual da medicina de precisão aplicada ao paciente crítico.

  • Endótipo Hiperinflamatório (H1):
    Caracteriza-se por expressão elevada de genes pró-inflamatórios, intensa produção de citocinas e maior gravidade clínica inicial. Pacientes desse grupo podem apresentar melhor resposta a terapias anti-inflamatórias direcionadas, atualmente em investigação.

  • Endótipo Imunossuprimido (M1):
    Apresenta redução da expressão de HLA-DR, linfopenia acentuada e marcadores de exaustão imune, como PD-1/PD-L1. Tais indivíduos parecem se beneficiar de estratégias imunoadjuvantes, como IL-7, GM-CSF ou interferon-γ.

  • Endótipo Metabólico/Mitocondrial (B1):
    Caracterizado por disfunção bioenergética profunda, com queda de ATP, elevação persistente de lactato e acúmulo de metabólitos como succinato. Esse perfil sugere maior benefício com terapias voltadas à restauração do metabolismo oxidativo e suporte mitocondrial.

  • Endótipos Mistos (híbridos):
    Apresentam simultaneamente marcadores de inflamação exacerbada e imunossupressão, configurando um fenótipo de maior heterogeneidade e pior prognóstico. O tratamento desses pacientes tende a exigir combinações terapêuticas mais complexas e abordagem dinâmica.

Essa classificação molecular reforça que a sepse não é uma condição homogênea, mas um conjunto de estados biológicos distintos. O reconhecimento desses endótipos aproxima a prática clínica da medicina de precisão, permitindo que intervenções futuras sejam direcionadas conforme o perfil imunometabólico de cada paciente.

Tabela 1 – Principais Endótipos Imunometabólicos da Sepse

EndótipoCaracterísticas ImunológicasAlterações MetabólicasPrognósticoTerapias Potenciais
Hiperinflamatório (H1)↑ IL-6, TNF-α, IL-1β; neutrófilos hiperativados↑ glicólise; ↑ lactato; metabolismo tipo WarburgChoque mais graveTerapias anti-inflamatórias direcionadas
Imunossuprimido (M1)↓ HLA-DR; linfopenia; ↑ PD-1/PD-L1Metabolismo pobreInfecções oportunistasIL-7, GM-CSF, IFN-γ
Metabólico / Mitocondrial (B1)Ativação imune reduzidaDisfunção mitocondrial; ↓ ATP; ↑ succinatoFalência orgânica precoceTiamina, moduladores metabólicos
Endótipos MistosInflamação + imunossupressão coexistentesPerfis híbridosPior prognósticoTerapias combinadas adaptativas

3.4. Biomarcadores Diagnósticos, Prognósticos e Guiadores de Terapia

A utilização de biomarcadores imunológicos, inflamatórios e metabólicos tornou-se fundamental para diferenciar os estágios evolutivos da sepse e orientar intervenções terapêuticas personalizadas. Esses marcadores permitem identificar, de forma dinâmica, pacientes em hiper-inflamação, imunossupressão ou disfunção bioenergética, possibilitando decisões mais precisas e prognósticos mais acurados.

  • Biomarcadores inflamatórios
    Incluem IL-6, IL-8, TNF-α, procalcitonina (PCT), proteína C reativa (PCR) e presepsina. Esses marcadores refletem a magnitude da resposta inflamatória inicial e auxiliam tanto no diagnóstico quanto na avaliação de gravidade.

  • Biomarcadores de imunossupressão
    Destacam-se o HLA-DR monocitário — cujo valor <8000 moléculas indica imunoparalisia —, a expressão das vias inibitórias PD-1/PD-L1 e os marcadores de exaustão linfocitária, como TIM-3 e LAG-3. Esses parâmetros ajudam a identificar pacientes com falência da resposta imune adaptativa.

  • Biomarcadores metabólicos
    O lactato persistente, o acúmulo de succinato e alterações na razão NAD+/NADH refletem disfunção mitocondrial e falha na produção de energia, frequentemente associadas a pior prognóstico.

  • Biomarcadores de estratificação molecular
    Assinaturas transcriptômicas (como os endótipos SRS e MARS), análises de single-cell RNA sequencing e perfis proteômicos permitem caracterizar de forma aprofundada o estado imunometabólico do paciente, sendo essenciais para a definição de endótipos e para a medicina de precisão.

Em conjunto, esses biomarcadores sustentam decisões terapêuticas personalizadas e permitem reconhecer precocemente indivíduos com risco elevado de deterioração clínica.

BiomarcadorO que medeInterpretação ClínicaAplicação Prática
IL-6Intensidade inflamatóriaNíveis altos → pior prognósticoIdentificação de hiper-inflamação
ProcalcitoninaInflamação induzida por infecçãoApoia diagnóstico; auxilia em retirada de ATBMonitorização terapêutica
HLA-DR monocitárioFunção imune inataApoia diagnóstico; auxilia em retirada de ATBSeleção para imunoterapia
PD-1/PD-L1Exaustão linfocitáriaImunossupressão persistenteCandidatos a bloqueadores PD-1
LactatoPerfusão e metabolismo energéticoElevado persistente = prognóstico ruimAvaliação de resposta a ressuscitação
SuccinatoEstresse metabólicoElevação sugere metabolismo tipo WarburgIdentificação de endótipo hiper-inflamatório
Assinatura gênicaFenótipo molecularElevação sugere metabolismo tipo WarburgMedicina de precisão

3.5. Terapias Imunomoduladoras e Estratégias Baseadas em Medicina de Precisão

Os ensaios clínicos recentes têm investigado terapias direcionadas aos mecanismos imunometabólicos da sepse, refletindo a transição do tratamento convencional para abordagens personalizadas baseadas em endótipos.

1. Imunoadjuvantes

Essas terapias buscam reverter a imunossupressão profunda observada em muitos pacientes sépticos.

  • Interleucina-7 (IL-7): promove proliferação e restauração funcional de linfócitos T, com melhora da resposta adaptativa.

  • GM-CSF: aumenta a expressão de HLA-DR em monócitos e restaura a capacidade fagocitária.

  • Interferon-γ: estimula a ativação macrofágica e potencia a capacidade microbicida.

2. Bloqueadores de vias inibitórias
Inspirados em terapias oncológicas, os inibidores de PD-1/PD-L1 visam reverter a exaustão linfocitária. Embora apresentem forte racional biológico, permanecem em fase experimental, exigindo estudos adicionais de segurança e eficácia.

3. Terapias metabólicas

Voltadas para corrigir a disfunção bioenergética característica da sepse.

  • Tiamina: co-fator da piruvato desidrogenase, favorece metabolismo oxidativo sobre glicólise.

  • Vitamina C associada a corticosteroides: investigada em múltiplos ensaios, com resultados heterogêneos.

  • Moduladores metabólicos (AMPK/mTOR): buscam restaurar função mitocondrial e reduzir inflamação sistêmica; ainda em fases pré-clínicas.

4. Inteligência artificial e modelos preditivos

Ferramentas de machine learning têm sido empregadas para:

  • prever deterioração clínica,

  • identificar endótipos imunometabólicos,

  • orientar decisões terapêuticas personalizadas,

  • estimar mortalidade em tempo real.

A incorporação de big data às UTIs fortalece o paradigma da medicina intensiva personalizada, permitindo intervenções mais precoces e precisas.

3.6 Limitações Atuais e Desafios Translacionais

Apesar dos avanços, há barreiras importantes:

  • falta de padronização e validação dos biomarcadores;

  • heterogeneidade entre UTIs e populações;

  • alto custo de tecnologias ômicas;

  • ausência de ensaios clínicos robustos específicos para cada endótipo;

  • necessidade de integração real entre IA, laboratório e leito

4. DISCUSSÃO

compreensão contemporânea da sepse como uma síndrome imunometabólica complexa, heterogênea e dinâmico-evolutiva rompe com o paradigma tradicional baseado exclusivamente em hiper-inflamação. Evidências robustas demonstram que a coexistência de inflamação exacerbada, imunossupressão profunda e disfunção bioenergética varia significativamente entre indivíduos, influenciando a resposta terapêutica, a progressão da doença e o prognóstico. Tal heterogeneidade explica, em parte, por que intervenções uniformes e “tamanho único” falharam sistematicamente em ensaios clínicos ao longo das últimas décadas.

Os achados revisados sugerem que a identificação de endótipos biológicos — definidos por assinaturas transcriptômicas, perfil metabólico e expressão de biomarcadores — representa um avanço conceitual fundamental. Endótipos como o hiper-inflamatório, o imunossuprimido e o metabólico/mitocondrial exibem diferenças substanciais na evolução clínica e nas potenciais respostas terapêuticas. Estudos mostram, por exemplo, que pacientes com imunossupressão precoce apresentam maior mortalidade tardia e podem se beneficiar de imunoadjuvantes, enquanto indivíduos com disfunção mitocondrial predominante podem responder melhor a estratégias que restauram bioenergética celular. Entretanto, apesar desses avanços promissores, a incorporação rotineira de endotipagem na prática clínica ainda é limitada por questões metodológicas, falta de padronização e custos.

Outro ponto crítico evidenciado na literatura é o papel dos biomarcadores imunológicos e metabólicos na estratificação prognóstica e no direcionamento terapêutico. Marcadores como IL-6, PCT, HLA-DR, PD-1/PD-L1 e parâmetros mitocondriais fornecem informações complementares sobre o estado imunológico, porém nenhum deles isoladamente possui sensibilidade e especificidade suficientes para guiamento terapêutico definitivo. A combinação de biomarcadores, aliada a análises de machine learning, tem demonstrado maior acurácia na predição de desfechos, mas carece de validação multicêntrica e ensaios prospectivos robustos.

A literatura também reforça que a medicina de precisão aplicada à sepse ainda se encontra em transição entre a pesquisa translacional e a implementação clínica. Embora estratégias imunomodulatórias como IL-7, GM-CSF e bloqueadores de PD-1/PD-L1 apresentem forte racional biológico, seus resultados clínicos têm sido heterogêneos, em parte devido à ausência de seleção adequada de pacientes baseada em endótipos. Isso ressalta a necessidade de ensaios clínicos adaptativos, que estratifiquem participantes conforme sua imunofenotipagem — abordagem que tem potencial para revolucionar o tratamento da sepse, mas ainda enfrenta desafios logísticos e regulatórios.

Além disso, a utilização de ferramentas digitais e algoritmos de inteligência artificial contribui para ampliar a capacidade de estratificação e predição, especialmente em ambientes de terapia intensiva. Contudo, questões de interpretabilidade, viés algorítmico e integração com sistemas hospitalares permanecem como barreiras para adoção ampla.

Finalmente, um ponto central evidenciado é que o manejo da sepse ainda é dominado por estratégias de suporte hemodinâmico e antimicrobiano — pilares essenciais, mas insuficientes para modificar profundamente o curso da doença nos casos graves. A incorporação de terapias personalizadas exige não apenas inovação científica, mas também mudanças estruturais no cuidado em UTI, investimentos em tecnologia e treinamento especializado de equipes multiprofissionais.

Assim, a discussão sugere que a medicina de precisão aplicada à sepse está em plena fase de consolidação, sustentada por avanços científicos robustos, mas ainda limitada pela necessidade de validação, padronização e viabilidade operacional. A evolução desse campo dependerá da integração entre imunologia, biologia de sistemas, ciência de dados e prática clínica, permitindo que o futuro do tratamento da sepse seja verdadeiramente individualizado

5. CONCLUSÃO

A sepse e o choque séptico constituem síndromes altamente heterogêneas e de grande complexidade biológica, nas quais a interação entre inflamação, imunossupressão e disfunção metabólica determina o curso clínico e os desfechos dos pacientes. Os avanços em imunometabolismo, biologia de sistemas e tecnologias ômicas transformaram a compreensão da doença, revelando que os mecanismos fisiopatológicos variam substancialmente entre indivíduos, caracterizando endótipos distintos com implicações prognósticas e terapêuticas específicas.

A partir dessa nova perspectiva, fica evidente que abordagens terapêuticas uniformes são insuficientes para modificar de forma significativa a evolução da sepse grave. O futuro do manejo da sepse depende da capacidade de integrar medicina de precisão, estratificação imunológica, biomarcadores clínicos e moleculares, e algoritmos de inteligência artificial que permitam identificar, em tempo real, o perfil biológico de cada paciente. Estratégias imunomodulatórias e terapias metabólicas direcionadas representam caminhos promissores, mas sua plena incorporação à prática clínica ainda exige ensaios clínicos adaptativos, validação multicêntrica e protocolos que considerem a heterogeneidade interindividual.

Apesar dos desafios, o avanço contínuo do conhecimento imunometabólico e o desenvolvimento de tecnologias de alto desempenho indicam que estamos cada vez mais próximos de uma abordagem verdadeiramente personalizada para sepse. A transição para esse novo paradigma demanda esforços colaborativos entre pesquisadores, clínicos, intensivistas, imunologistas e cientistas de dados, além de investimentos em infraestrutura diagnóstica e integração digital das unidades de terapia intensiva.

Em síntese, a medicina de precisão aplicada à sepse não deve ser vista como um conceito futurista, mas como um caminho necessário e inevitável para reduzir mortalidade, otimizar o tratamento e transformar a experiência do paciente crítico. O entendimento da sepse como uma síndrome imunometabólica complexa é, portanto, o alicerce sobre o qual serão construídas as terapias individualizadas da próxima geração.

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