O CASO BOATE KISS: DISCUSSÕES SOBRE NULIDADES NO TRIBUNAL DO JÚRI E A INFLUÊNCIA DA MÍDIA EM CASOS DE REPERCUSSÃO

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11070039


Júlia de Medeiros Garcez1
Lucas Rocha Andrade2


RESUMO
O presente feito acadêmico tem como objetivo analisar e discutir a atuação do Tribunal do Júri no caso da Boate Kiss e como a mídia interfere em casos de grande porte. Para tanto, apresenta-se inicialmente o processo penal e seus princípios, bem como, o Tribunal do Júri. Em seguida, a fim de contextualizar o caso concreto, é apresentada a história fática e processual do caso da Boate Kiss, apresentando as causas que ensejaram a nulidade do júri. Encaminhando-me para o fim, apresento uma discussão acerca da mídia e como os meios de notícia podem influenciar em casos de grande comoção social. Em sede de considerações finais conclui-se que o desrespeito do rito especial e da não observância dos princípios norteadores do processo penal e do Tribunal do Júri, bem como, a suscetibilidade dos jurados em ceder à pressão feita pela mídia e a insegurança jurídica revelada, causam à sociedade as sensações de injustiça e impunidade constantes. Fora utilizada a metodologia de pesquisa bibliográfica e documental.
Palavras-chave: Boate Kiss; Dolo Eventual, tribunal do júri, princípios, nulidade.

ABSTRACT
This academic achievement aims to analyze and discuss the role of the Jury Court in the Kiss Nightclub case and how the media interferes in large-scale cases. To this end, the criminal process and its principles are initially presented, as well as the Jury Court. Next, in order to contextualize the specific case, the factual and procedural history of the Kiss Nightclub case is presented, presenting the causes that led to the nullity of the jury. Moving towards the end, I present a discussion about the media and how the news media can influence cases of great social commotion. In final considerations, it is concluded that the disrespect of the special rite and the non- observance of the guiding principles of the criminal process and the Jury Court, as well as the susceptibility of jurors to give in to pressure from the media and the legal uncertainty revealed, cause society feelings of constant injustice and impunity. The bibliographic and documentary research methodology was used.
Keywords: Kiss Nightclub; intentional intent, jury trial, principles, nullity.

INTRODUÇÃO

Em janeiro de 2013, durante a festa universitária “Agromerados” que ocorria na Boate Kiss, a banda Gurizada Fandangueira realizava sua apresentação musical. A banda era conhecida pelo público pelos artigos pirotécnicos utilizados durante suas apresentações, e naquela noite não foi diferente. Marcelo, o vocalista da banda, segurava em suas mãos o “Sputnik” uma espécie de fogo de artifício, o qual atingiu o forro que servia como isolamento acústico e alastrou fogo em toda a sua extensão.

A fatídica noite vitimou 878 pessoas, 242 fatalmente. Foram indiciados por homicídio na modalidade tentada e consumada quatro pessoas, Elissandro, Mauro, Marcelo e Luciano. Denunciados pelo Ministério Público, os réus foram pronunciados e levados ao Tribunal do Júri.

O Tribunal do Júri é instituto constitucional previsto no art. 5º, inciso XXXVIII, sendo a materialização da democracia no poder judiciário. Tal procedimento tem um rito especial a ser seguido, bem como, princípios particulares.

O julgamento dos quatro acusados ocorreu em 2021 e culminou na condenação dos mesmos. Oportunamente, a defesa protocolou recurso em face da decisão prolatada, oportunidade em que alegaram uma série de nulidades. Com o provimento do recurso deu-se por anulado o júri que condenou os réus. Tal anulação foi confirmada em instância superior de maneira que o processo continua em trâmites até o presente momento.

É forçoso concluir que a demora no julgamento e a anulação do júri, emergiram diversas questões acerca da legitimidade do processo penal brasileiro, surgindo dúvidas acerca de possíveis inobservâncias do devido processo legal e dos princípios norteadores que embasam e norteiam o processo penal e o tribunal do júri.

Ademais, é válido ressaltar que trazer à baila como a atuação midiática desprovida de ética pode e, de fato influencia no processo penal, além disso, essa interferência traz à tona uma sensação de insegurança jurídica para o poder judiciário. O presente feito tem por objetivo analisar por meio do caso concreto como ocorreu o tribunal do júri e como o clamor popular e as notícias sensacionalistas recaíram sobre os jurados e influenciaram nas decisões proferidas pelos órgãos do poder judiciário em nível estadual e federal.

A fim de analisar como correu todo o processo penal e como a mídia foi capaz de interferir no procedimento do Tribunal do Júri, foram realizadas pesquisas bibliográficas e documentais.

1. DO PROCESSO PENAL

O Direito Penal é para o Estado considerado ultima ratio, ou seja, a última saída, tendo como objetivo principal a proteção dos bens jurídicos predeterminados pelo Estado. Assim, o processo penal é “o conjunto de princípios e normas que disciplinam a composição das lides penais, por meio da aplicação do Direito Penal objetivo” (Capez, 2016. p. 76).

Nessa toada, o processo penal tem como finalidade promover a adequada solução jurisdicional através de um procedimento composto de várias fases, são elas: a acusação, a produção de provas, a defesa e o julgamento. Todo o procedimento é disciplinado pelo Código de Processo Penal de 1941 e dividido em comum e especial. Importante ressaltar que o processo penal é constituído por princípios constitucionais além dos seus próprios. Destarte, por se tratar de um poder limitador, o qual lida com a liberdade individual, mister se faz a observância do devido processo legal já que este é fator capaz de validar a atuação individual estatal. Os princípios, para muitos doutrinadores, são normas equivalentes a todas as outras.

Nesse sentido, alguns dos princípios que nos serão úteis são:

a) Princípio da Presunção de Inocência

A presunção de inocência está prevista na Constituição Federal, sendo este o princípio regente do processo penal. O dito princípio tem característica fundamental, haja vista ser uma garantia da tutela da proteção dos inocentes.

Nessa toada, conclui-se que a formação do convencimento do julgador deve ser embasada no contraditório, orientado pelo processo e pelos fatos nele contidos. Acerca da presunção de inocência Aury Lopes Júnior (2014) acrescenta que

A presunção de inocência afeta, diretamente, a carga da prova (inteiramente do acusador, diante da imposição do in dubio pro reo); a limitação à publicidade abusiva (para redução dos danos decorrentes da estigmatização prematura do sujeito passivo); e, principalmente, a vedação ao uso abusivo das prisões cautelares. Voltaremos a essas questões quando tratarmos desses institutos. (Lopes, 2014, p. 122)

b) Princípio da Imparcialidade

A imparcialidade se trata da capacidade subjetiva do órgão jurisdicional, sendo inclusive, requisito indispensável para a validade da relação processual. Dessa maneira, como forma de garantir a imparcialidade a CF fixou vedações e garantias para garantir o devido processo legal. Assim, o juiz não pode ao longo do processo deixar prevalecer suas ideias e julgamento pessoais em detrimento das provas dos autos, ou seja, o juiz deve se ater ao que consta no processo.

Avena (2022) ainda acrescenta:

Significa que o magistrado, situando-se no vértice da relação processual triangulada entre ele, a acusação e a defesa, deve possuir capacidade objetiva e subjetiva para solucionar a demanda, vale dizer, julgar de forma absolutamente neutra, vinculando-se apenas às regras legais e ao resultado da análise das provas do processo (Avena, 2022, p. 24).

c) Princípio da Publicidade

Via de regra, todos os atos processuais são públicos, permitindo que seja feito o controle do poder Judiciário. Entretanto, ante situações específicas a CF prevê a restrição da publicidade (art. 5.º, LX, CF). Quando houver interesse social ou a intimidade exigir, o juiz pode limitar o acesso à prática dos atos processuais, ou mesmo aos autos do processo, apenas às partes envolvidas

d) Princípio da Persuasão Racional do Juiz

O juiz deve decidir com base nos elementos fáticos e probatórios contidos nos autos, avaliando-os com base em critérios críticos e racionais. Dessa forma, é o sistema que vale como regra. Assim, deve o juiz observar as normas legais existentes, bem como, as máximas de experiência.

e) Princípio do Contraditório

O contraditório é princípio imprescindível para a legitimidade do processo, dispondo que o juiz deve dar às partes a oportunidade de serem ouvidas de forma equitativa. Para Aury Lopes Jr (2014), o contraditório, além das partes participarem igualmente no processo, o juiz deve participar ativamente de tal etapa respondendo às petições e requerimentos.

Assim, o contraditório pode ser representado por duas palavras: informação e reação. Destarte, o contraditório é, em tese, o direito de ser informado e de participar do processo.

2. O TRIBUNAL DO JÚRI

O Tribunal do Júri é garantia individual do acusado efetivamente prevista na Constituição Federal, contudo, sua competência é restrita aos crimes dolosos contra a vida. A referida instituição é amparada constitucionalmente pelo princípio do devido processo legal, da presunção de inocência, da ampla defesa e do contraditório, os quais são aplicados em todos os procedimentos judiciais.

Insta salientar que além dos princípios supramencionados, o Tribunal do Júri conta com princípios específicos estabelecidos pela CF, in verbis:

Art. 5º [...]
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

a) A plenitude da defesa:

Para a doutrina, a plenitude da defesa, diferente da ampla defesa, compreende além da atuação técnica, assim, o advogado pode utilizar de uma argumentação extrajurídica, valendo-se inclusive da matéria emocional e dos valores da sociedade para realizar a defesa do réu e obter sua absolvição.

Nucci (2023) acrescenta que:

Enquanto aos réus em processos criminais comuns assegura-se a ampla defesa, aos acusados e julgados pelo Tribunal do Júri garante-se a plenitude de defesa. Os vocábulos são diversos e, também, o seu sentido. Amplo quer dizer vasto, largo, muito grande, rico, abundante, copioso; pleno significa repleto, completo, absoluto, cabal, perfeito. O segundo é, evidentemente, mais forte que o primeiro (Nucci, 2023, p.73)

b) O sigilo das votações:

No momento em que será realizada a votação, os jurados são conduzidos a uma sala onde votam por meio de cédulas, as quais são depositadas em uma espécie de urna de maneira que os jurados não possam acessar o voto dos demais.

c) A soberania dos vereditos:

Tal princípio tem o fito de salvaguardar a decisão tomada pelo conselho de sentença. Logo, a decisão somente pode ser modificada por uma Revisão Criminal ou por interposição de recurso de apelação em caso de modificação do mérito da decisão a fim de que seja julgado novamente por um novo Conselho de Sentença.

d) A competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida:

A competência foi determinada de forma taxativa no art. 74, §1º do CPP, assim, ficou fixada a competência para julgamento dos crimes de homicídio, de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, de infanticídio e aborto. Também é competência do tribunal do júri os crimes conexos ao doloso contra a vida.

2.1 Do procedimento especial do Tribunal do Júri

O procedimento do Tribunal do Júri está previsto e positivado no Código de Processo Penal nos artigos 406 a 497, iniciando-se com recebimento da denúncia pelo juiz togado, momento em que são reunidas as provas por meio da audiência de instrução e julgamento, interrogatório e oitiva de testemunhas, havendo ainda apresentação das alegações finais das partes. Posteriormente, o juiz profere a decisão que poderá absolver o acusado sumariamente, desclassificar o crime, impronunciar ou pronunciar o acusado.

Seguidamente, não havendo recursos acerca da decisão de pronúncia, dá-se início a segunda fase do júri, onde os autos são remetidos ao juiz presidente. Conforme previsto no art. 447 do CPP, o tribunal do júri é composto por um juiz togado, nomeado juiz-presidente, e 7 jurados que serão o Conselho de Sentença daquela sessão de julgamento.

No dito rito, os acusados são julgados pelos seus, ou seja, pelo povo, pela sociedade, ao invés de um juiz togado. Acerca disto, Walfredo (2018) comenta que:

O Júri se coloca, ao lado do plebiscito e do referendo, como instrumento de participação direta do povo nas decisões políticas, a caracterizar, em conjunto com tais instrumentos participativos, nossa democracia como semidireta (que, em regra, se exerce através de representantes eleitos e, por exceção, sem intermediários, pelo próprio povo). Daí a enorme importância do Júri para o despertar e o amadurecimento da consciência cívica, chamando o povo agora não apenas para criticar, olhando de fora, mas para assumir, ele próprio uma fatia do poder de decisão, passando-lhe a responsabilidade de parte da política criminal (Campos, 2018, p.4).

Desta maneira, os jurados são selecionados por meio de listas disponibilizadas pelos Tribunais de Justiça, sendo realizado posteriormente um sorteio de 25 nomes, cerca de 10 a 15 dias antes da sessão. Dos 25 indivíduos, serão sorteados 7 nomes dentre os jurados presentes para compor o conselho de sentença. Vale ressaltar que a defesa e o Ministério Público podem vetar três jurados sorteados, sendo estes substituídos por novos.

Ao decorrer da sessão, os jurados farão juramento solene e posteriormente haverá a oitiva e inquirição das testemunhas das partes, interrogatório do réu, que poderá responder às perguntas formuladas pelos jurados conforme positivado no CPP. É imperioso destacar que os jurados devem ficar incomunicáveis entre si, entre as testemunhas e o mundo exterior ao julgamento.

Ulterior às alegações das partes e os debates, os jurados são conduzidos à sala secreta para a votação dos quesitos, em seguida, o juiz-presidente proferirá sentença em plenário nos exatos termos das decisões dos jurados. Somente o juiz togado realiza a dosimetria da pena em casos de condenação.

Todo o processo do Tribunal do Júri deve obedecer estritamente ao devido processo legal, ou seja, todos os atos processuais devem seguir as formas previstas em lei.Consequentemente, eventual inobservância das regras e do rito previsto pode ensejar a nulidade do processo penal. Tais nulidades estão previstas no CPP nos artigos 563 a 573. Todavia, o CPP prevê que um ato somente será anulado se causar prejuízo para uma das partes, ou seja, que seja capaz de alterar o resultado útil do processo.

2.1 Das nulidades do júri

O processo como um todo deve seguir as formas previstas em lei, mas também, os princípios pré determinados e estabelecidos na legislação processual a fim de que se possa assegurar o devido processo legal.

O rito do Tribunal do Júri é complexo, e seus atos e etapas processuais são cobertos de formalidade que visa garantir e proteger o processo e seus valores. Outrossim, existem vícios que, se atingirem elementos constitutivos para a prática limpa do processo, violam o devido processo legal.

Desta maneira, as nulidades emergem como ferramentas usadas para garantir e preservar os princípios e valores do Tribunal do Júri, a fim de evitar excessos e desordem no judiciário, assegurando que se atinja o resultado mais justo no processo. As nulidades no domínio do processo penal estão previstas nos artigos 563 a 573, divididas em nulidade absoluta que também pode ser denominada de pleno direito e nulidade relativa ou anulabilidade.A nulidade relativa é tida como a transgressão de um interesse particular, inexistindo lesão ao interesse público. Assim, qualquer ato eivado de vício irá produzir efeitos até ser anulado pelo juiz. Tal nulidade deve ser requerida pela parte interessada, não havendo que se falar em reconhecimento de ofício.

Noutro tanto, a nulidade absoluta envolve matéria de ordem pública, dispensando decisão judicial e sendo passíveis de reconhecimento de ofício em qualquer momento do processo. Neste sentido, não há que se falar em reparo para sanar o vício, já que é inválido e não produz efeitos.

No processo penal temos o chamado Princípio do Prejuízo, que previsto no art. 563 do CPP define que “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”. Ainda no dispositivo supramencionado, há a disposição de que “nenhuma das partes poderá arguir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido, ou referente a formalidade cuja observância só à parte contrária interesse”.

Neste ponto, insta salientar que as nulidades somente podem ser arguidas até as alegações finais, haja vista que com o trânsito em julgado da decisão de pronúncia eventuais nulidades relativas serão consideradas sanadas.

As nulidades relativas posteriores à pronúncia devem ser arguidas logo após o pregão (CPP, art. 463, § 1º), nos termos do art. 571, V, do CPP. Não arguida nesse momento, a nulidade estará sanada, pois não se concebe que, presente ao ato, guarde o recorrente em segredo a falha nele ocorrida, para alegá-la mais tarde como motivo para anular o julgamento (Capez, 2023, p. 242)

Noutro tanto, o artigo 364/CPP apresenta um rol meramente exemplificativo de situação que efetivamente dão causas a nulidades. Ressalte-se que outras nulidades podem e devem ser reconhecidas com base nos princípios constitucionais e processuais implícitos na lei processual penal.

3. O CASO BOATE KISS

Na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria – Rio Grande do Sul, ocorria na Boate Kiss a festa denominada “Agromerados” promovida pelos alunos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde a banda Gurizada Fandangueira iria se apresentar.

Durante a apresentação da banda, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos acendeu um dispositivo pirotécnico de nome “Sputnik”, o qual fora fornecido e acionado por Luciano, produtor de palco da banda. Segundo o laudo pericial, o fogo de artifício soltava faíscas que, por consectário lógico atingiram o revestimento de espuma acústica que revestia o teto do clube. Neste ponto, cumpre anotar que o isolamento foi instalado com auxílio de cola de sapateiro por funcionários da boate cerca de seis meses antes da data.

O segurança que trabalhava naquela noite, tentou, com cinco extintores diferentes cessar o fogo, contudo, sem sucesso. O fogo se alastrou e logo se tornou um incêndio de proporções grandiosas. O episódio fora espantosamente agravado pelas características da espuma que era inapropriada para aquele tipo de ambiente, visto que era altamente inflamável e em contato com o fogo, produz uma fumaça tóxica.

Demora certo tempo para que as pessoas que assistiam a apresentação da banda perceberem que o fogo tinha tomado conta do revestimento acústico e iniciassem a evacuação do local. Neste ponto, é importante ressaltar que o local estava em superlotação, sem a sinalização correta para saída de emergência, além de contar tão somente com uma porta que funcionava como entrada e saída.

O pânico tomou conta dos ocupantes que tentavam desesperadamente deixar o local. Na época, sobreviventes afirmaram que os seguranças que protegiam o local impediram a saída dos clientes, visto que estes não haviam pago suas comandas, e só liberaram a passagem após perceberem a fumaça. Insta salientar que além da imposição dos seguranças, havia também grades instaladas na saída da boate (guarda-corpo), o que dificultou ainda mais a saída das pessoas.

Os bombeiros foram acionados pela primeira vez por volta das 03h20 da manhã, oportunidade em que lhes fora informado que havia um princípio de incêndio na casa noturna. Relatam as vítimas e testemunhas ali presentes que os bombeiros conseguiram adentrar à boate por volta das 04h30 da manhã, cerca de 1h após o primeiro chamado. Os populares ali presentes, bem como, os sobreviventes, quebraram paredes do estabelecimento para facilitar o resgate das vítimas que ainda estavam lá dentro.

Naquela noite, mais de 200 corpos foram retirados do estabelecimento, mais da metade deles encontrados no banheiro, tal fato tem explicação. As pessoas que tentavam escapar do incêndio viram uma luz de led brilhando em meio à densa fumaça, e por não conseguirem distinguir, adentram ao banheiro confundindo-o com a saída de emergência. Tratando-se de local com pouca ventilação e muita gente, as pessoas que entraram no banheiro morreram por asfixia, visto que a fumaça tóxica tomou conta do cômodo.

A tragédia mobilizou toda a cidade de Santa Maria e também cidades próximas que receberam vítimas quase que inteiramente queimadas e/ou com seus pulmões prejudicados pela fumaça tóxica. Táxis, ambulâncias, viaturas, e até helicópteros, realizavam o transporte dessas pessoas. O fatídico dia vitimou 242 pessoas fatalmente, além de deixar 636 feridos.

A presidente à época, Dilma Rousseff, estava em viagem a Santiago, emitiu nota oficial nas primeiras horas do dia 27 de janeiro de 2013 e decretou ali 3 dias de luto no país inteiro. Dilma também ordenou que as equipes de técnicos e peritos federais fossem até Santa Maria para auxiliar na identificação das vítimas. No mesmo dia 27, a presidenta cancelou seus compromissos no Chile e foi até Santa Maria, no ginásio onde era realizado o reconhecimento de corpos e nos hospitais prestar apoio e solidariedade às vítimas sobreviventes e aos familiares.

3.1 O PROCESSO

Para além do processo principal, o qual tratava de apurar a responsabilidade no que concernia ao incêndio em si, corriam em paralelo mais seis processos. O inquérito policial que pormenorizou os fatos e responsáveis indiciou 16 pessoas e durou quase dois meses. Ademais, foram protocolados dezenas de ações indenizatórias por parte das vítimas e suas famílias. Nesse período, foram arquivados inquéritos que apuravam a responsabilidade do prefeito e servidores municipais por crimes correlatos.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) ofertou denúncia por homicídio doloso tentado e consumado proposta em desfavor de Elissandro Callegaro Spohr (sócio-proprietário da boate), Mauro Londeiro Hoffman (sócio-proprietário da boate), Marcelo de Jesus dos Santos (cantor da banda Gurizada Fandangueira) e Luciano Augusto Bonilha Leão (produtor da banda Gurizada Fandangueira) nos seguintes termos:

Os denunciados ELISSANDRO, MAURO, MARCELO e LUCIANO AUGUSTO assumiram o risco de produzir mortes das pessoas que estavam na boate, revelando total indiferença e desprezo pela segurança e pela vida das vítimas, pois, mesmo prevendo a possibilidade de matar pessoas em razão da falta de segurança, não tinham qualquer controle sobre o risco criado pelas diversas condições letais da cadeia causal” (MPRS, 2013. pg. 8)

O MP ainda aponta a qualificadora de meio cruel, visto que houve o emprego de fogo e a produção de asfixia, bem como, de motivo torpe e ganância, por parte dos sócios-proprietários, pois economizaram com os meios de proteção do local, e do cantor e produtor da banda por adquirirem o fogo de artifício indicado para uso externo por ser mais barato que o indicado para uso em ambientes internos.

Durante o processo de investigação no inquérito policial foi apurado que a ambientação do local foi fator contribuinte para a tragédia, explico melhor, tratava-se de local fechado, demasiadamente escuro que não contava com as sinalizações corretas, além de contar com cortinas de tecido e madeira. Reitero que a espuma usada como revestimento acústico era de material inflamável e tóxico, sem tratamento antichama.

Pontuou-se ainda que havia somente uma saída que não contava com a devida sinalização de emergência, bem como, que o artigo pirotécnico usado era para uso externo. Restou comprovado ainda que o local estava em superlotação e os exaustores estavam obstruídos, o que impossibilitou a dispersão da fumaça tóxica.

O processo tramitou na 1ª Vara Criminal da Comarca de Santa Maria, e em 2020, foi distribuído para a comarca de Porto Alegre para que fosse realizado o júri. Em março de 2013, fora decretada a prisão preventiva dos quatro acusados, sendo essa revogada posteriormente pelo TJRS mediante habeas corpus impetrado pela defesa de Marcelo e, estendido para os demais réus. No mês de abril, o juiz acolheu a denúncia apresentada pelo MPRS e, em maio de 2016 foi prolatada a sentença de pronúncia dos réus, ficando assim determinado que estes fossem julgados pelo Tribunal do Júri.

Posterior à decisão de pronúncia, a defesa protocolou um Recurso em Sentido Estrito, a fim de reverter a decisão de pronúncia. Contudo, a 1ª Câmara Criminal do TJRS acolheu o recurso tão somente para afastar as qualificadoras, mantendo a decisão de pronúncia por dois votos a um. Com base no voto vencido do Desembargador Manuel José Martinez Lucas, que concedeu parcialmente o recurso no sentido de desclassificar os fatos da denúncia para crime diverso da competência do tribunal. A defesa então interpôs embargos infringentes, tendo esses acolhidos e determinada a incompetência do júri.

Outrossim, o MP interpôs Recurso Especial (Resp) a fim de reverter a decisão prolatada em sede de embargos. Acerca do mérito, o excelentíssimo desembargador relator do recurso interposto, Des. Manuel José Martinez Lucas, sustentou não caber juízo de mérito diante daquele momento processual, tampouco, naquela jurisdição. Aduzindo ainda que a matéria a ser analisada e julgada dizia respeito à admissibilidade da imputação de crime doloso contra a vida. Consignou que as provas contidas nos autos foram suficientes para comprovar o dolo eventual dos agentes. Revogando, portanto, a decisão do TJRS que desclassificava o tipo doloso, determinando a remessa dos autos para o Tribunal do Júri.

O júri ocorrido em 2021 com duração de 10 dias resultou na oitiva de 215 pessoas – entre sobreviventes, testemunhas, peritos e o interrogatório dos réus – que, juntamente com as sustentações orais, réplicas e tréplicas, culminou na condenação dos acusados nas seguintes penas: Elissandro: 22 anos e 6 meses de reclusão; Mauro: 19 anos e 6 meses; Marcelo e Luciano: 18 anos de reclusão; devendo elas serem cumpridas inicialmente em regime fechado.

Posterior a votação do conselho de sentença, e da leitura do decisum o douto magistrado determinou que os acusados cumprissem pena em regime fechado, contudo, a defesa apresentou Habeas Corpus preventivo o qual foi concedido pelo TJRS.

O Habeas Corpus preventivo é um remédio constitucional e processual que tem como objetico evitar a coação ilegal da liberdade do réu, estabelecendo dessa maneira um limite ao poder punitivo do Estado e garantindo os diretos individuais das partes. O habeas corpus tem previsão nos arts. 647 e 648 do CPP, in verbis:

Art. 647. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.

Art. 648. A coação considerar-se-á ilegal: 

I - quando não houver justa causa;
II - quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei; 
III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo; 
IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação;
V - quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza;
VI - quando o processo for manifestamente nulo; 
VII - quando extinta a punibilidade

Não obstante, tal medida foi revogada pelo Ministro Luiz Fux que acolheu o pedido descabido do MP e determinou a prisão imediata dos réus. A ação tomada pelo ministro foi classificada como abusiva, visto que sequer possui previsão legal para tanto. Ressalta-se que a fundamentação utilizada é descabida já que a lei 8.437/92 prevê a aplicação de tal medida para ações contra o poder público, todavia, tratava-se de liberdade individual.

O sobredito Ministro na decisão exarada considerou a reprovabilidade das condutas tomadas pelos réus, bem como, a dimensão tomada pelos fatos e seus impactos na comunidade local, nacional e internacional. Ainda, alegou que a decisão questionada causou grave lesão à ordem pública. Agregou também que “ao arrepio da lei e da jurisprudência, a decisão impugnada abala a confiança da população na credibilidade das instituições públicas, bem como o necessário senso coletivo de cumprimento da lei e de ordenação social” (STJ, MEDIDA CAUTELAR NA SUSPENSÃO DE LIMINAR 1.504. DECISÃO PROLATADA PELO MIN. LUIZ FUX. JULGADO EM 14/12/2021).

A aplicação desta medida para cassar a liberdade é, além de ilegal, desumana. Há a violação de direitos humanos básicos, transgredindo os limites jurisdicionais da CF e da legislação processual penal. Nesse mesmo sentido, Benedito Carezzo e João Pedro Mello (2020) acrescentam que

O segundo ponto obscuro é que a ação de Habeas Corpus não se amolda ao conceito de "ação movida contra o Poder Público e seus agentes", também exigido pelo artigo 4º da Lei nº 8.437 de 1992. No Processo Civil, as decisões possuem repercussão sobre a esfera jurídica dos dois polos da relação processual; no Processo Penal, apenas sobre a esfera jurídica do réu. A Fazenda Pública pode perder uma ação cível e sofrer prejuízos; o Ministério Público e o assistente de acusação, em rigor, não perdem, nem ganham — a sorte da ação penal é indiferente para suas próprias esferas jurídicas. Por isso, o Processo Penal se caracteriza por uma assimetria estrutural entre polo ativo e passivo. Daí que não se possa dizer que a ação penal é "contra o Poder Público". Se isso vale para a ação penal, tanto mais vale para o Habeas Corpus. Nele, o acusador não é sequer parte. A ação de Habeas Corpus é apenas em favor de alguém, e pede a ordem prevista pelo artigo 5º, LXVIII, da Constituição. Não há contraditório, não há acusação. Tanto é que o Enunciado nº 208 da súmula do STF veda o recurso extraordinário interposto pelo assistente de acusação da decisão concessiva de Habeas Corpus, justamente porque se trata se procedimento exclusivo da defesa. (Carezzo; Mello, 2020,p.n)

Neste ponto cumpre consignar que as decisões exaradas fora da sistemática do processo penal comprometem de forma grotesca a segurança jurídica, sabe-se que a condução do processo penal deve seguir o rito de maneira diligente. O fato é que decisões equivocadas como esta abrem precedentes para que situações atípicas e fora das previsões legais ocorram mais frequentemente e desrespeitem as garantias e princípios processuais.

De tal maneira, é forçoso concluir que o presidente do STF extrapolou os limites de seu poder e competência, não obstante ter alegado se tratar de situação excepcionalíssima vê-se que não existiu ali quaisquer riscos ao processo ou à ordem e à segurança nacional, tratando-se de uma decisão tomada a fim de atender à súplica social por “Justiça”, que naquele momento reivindicava por punição sem se ater aos princípios norteadores do processo penal. Assim, o Ministro se desviou total e completamente da função estatal de decidir e proteger de forma coerente ao sistema de leis do país.

Posteriormente, com o julgamento das ADC’s 43, 44, e 54, o STF decidiu pelo respeito ao Princípio da Presunção de Inocência, no sentido de permitir a execução da pena somente depois do trânsito em julgado da sentença condenatória. Vale ressaltar que o STJ vem exarando decisões no mesmo sentido, ou seja, contrária à execução provisória da pena.

Após todo o imbróglio, a defesa protocolou recurso perante o TJRS a fim de conseguir a anulação do júri, alegando cerca de 19 irregularidades, as quais serão esmiuçadas mais à frente. O recurso fora provido pelo tribunal regional, motivo pelo qual o MPRS interpôs recurso ao STJ a fim de reverter a decisão de anulação do júri, sustentando pela regularidade de todo o procedimento. Todavia, o recurso foi julgado improcedente, de forma que o órgão manteve a decisão.

Assim, o presente caso aguarda julgamento até o presente momento.

3.2 Dolo eventual ou Culpa consciente?

3.2.1 Do conceito de dolo

Na forma prelecionada no art.18 do Código Penal Brasileiro: 

Art. 18. Diz-se o crime:

1 – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.

Destarte, diz crime doloso quando o agente tem consciência e vontade dirigidas a realizar conduta tipificada, contudo, tal consciência não implica que o agente conheça o tipo penal correspondente à sua conduta, visto que a alegação de ignorância não exime o indivíduo de responder nos termos da lei.

Acerca do dolo, pode-se destacar quatro teorias a respeito do dolo: a) teoria da vontade: na qual somente a vontade livre e consciente de almejar praticar o tipo penal.

b) teoria do assentimento: nesta é preceituado que o agente atua com dolo quando prevê o resultado lesivo, e mesmo que não o queira diretamente assume o risco de produzir. c) teoria da representação: por outro lado, na teoria da representação entende-se como dolo quando o agente prevê o resultado antijurídico, e mesmo assim, dá continuidade à ação. d) teoria da probabilidade: neste caso, o dolo seria caracterizado quando o indivíduo considerava provável o resultado, e não somente possível.

Assim, conforme redação dada pelo artigo transcrito acima, é possível concluir que o Código Penal Brasileiro adotou as teorias da vontade e do assentimento. Dessa maneira, o agente deve ao menos aceitar o resultado, não se importando com a ocorrência.

3.2.2 Dolo Direto

O dolo direto, como leciona Greco (2015):

Diz-se direto o dolo quando o agente quer, efetivamente, cometer a conduta descrita no tipo, conforme preceitua a primeira parte do art. 18, 1, do Código Penal. O agente, nesta espécie de dolo, pratica sua conduta dirigindo-a finalisticamente à produção do resultado por ele pretendido inicialmente. (Greco, 2015, p. 243)

Ou seja, no dolo, conforme explanado acima, o autor quer praticar a conduta descrita no tipo, de maneira integral e literal. Há que se falar ainda na existência do dolo direto de primeiro grau e dolo direto de segundo grau.

Quando se fala em dolo direto de primeiro grau, é a intenção do autor voltada para um resultado de fato perseguido, incluindo até mesmo os meios usados para tanto. Já no dolo direto de segundo grau, é a intenção do agente voltada para um resultado de fato almejado sem, contudo, incluir os possíveis danos colaterais que são previsíveis.

3.2.3 Dolo Indireto

O dolo indireto consiste na vontade do agente de obter determinado resultado, contudo, prevendo a ocorrência de um segundo resultado que embora não almejado, é admitido e unido ao primeiro. Desta maneira, o dolo indireto é identificado pelas circunstâncias do caso concreto, já que impossível extrair a vontade do agente.

3.2.3.1 Dolo indireto alternativo

O dolo indireto alternativo se apresenta quando a vontade do agente se encontra direcionada de maneira alternativa, seja em relação ao resultado ou à vítima.

3.2.3.2 Dolo eventual

O dolo eventual caracteriza-se quando o agente, embora não querendo praticar a infração penal, não se abstém de agir, assumindo o risco de produzir o resultado previsto por ele e aceito.

Ainda nesse sentido a lição de Muñoz Conde (2004):

"No dolo eventual, o sujeito representa o resultado como de produção provável e, embora não queira produzi-lo, continua agindo e admitindo a sua eventual produção. O sujeito não quer o resultado, mas conta com ele, admite sua produção, assume o risco etc." (Munoz Conde, 2004, p. 60).

A utilização do dolo eventual é demasiadamente tortuosa, uma vez que não se pode detectar a vontade do agente, uma vez que mesmo prevendo a possibilidade do resultado, não se espera que este venha a acontecer. Ou seja, inobstante possa escolher entre desistir da conduta ou praticá-la e causar o resultado, prefere que se produza.

3.3 DO CONCEITO DE CULPA

Nos termos do inciso II do art. 18 do Código Penal,

Diz-se o crime: 1 - [ . . . ];

II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Parágrafo único. Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.

Para que seja caracterizado o delito culposo são necessários alguns requisitos, a saber: Conduta voluntária, comissiva ou omissiva; descumprimento de dever objetivo de cuidado (negligência, imperícia ou imprudência); resultado antijurídico não previsto, muito menos assumido pelo agente; nexo de causalidade entre a conduta e o resultado; previsibilidade; e tipicidade.

Assim, a conduta culposa é conceituada por ação ou omissão que produz resultado antijurídico não almejado, mas previsível, que poderia ser evitado com a atenção do agente. Assim, inexiste neste ponto conduta destinada a obter o resultado danoso.

Diante do artigo colacionado acima, infere-se que a culpa surge de três tipos diferentes de conduta, a imprudência, a negligência e a imperícia.

a) Imprudência: A conduta imprudente é aquela praticada pelo indivíduo que não observa seu dever de cuidado. A imprudência, portanto, consiste numa conduta positiva.

b) Negligência: Diferente da imprudência, a negligência consiste no fato do agente deixar de fazer aquilo que deveria. A negligência, portanto, é uma omissão ou uma conduta negativa.

c) Imperícia: Na imperícia, o agente incorre em inaptidão, seja ela momentânea ou não, no exercício de sua profissão ou arte. Assim, a imperícia pode ser considerada como falta de qualificação, destreza ou habilidade necessária para determinada ação.

3.3.1 Culpa Consciente

A culpa consciente é aquela em que o agente prevê o resultado, contudo, não deixa de praticar a conduta. Tem como principal requisito a confiança quanto à inexistência do resultado obtido acreditando veementemente que o resultado não viria a acontecer, inexistindo o desejo pelo resultado antijurídico.

Dessa maneira, Ênio Luiz Rossetto explica que “O agente prevê o resultado, mas supõe levianamente que não se realizará ou que podia evitá-lo” (Luiz Rosseto, 2015, p.176-195.).

3.4 Da distinção entre culpa consciente e dolo eventual

Seguindo o que fora apresentado anteriormente, podemos dizer que a culpa consciente é quando o agente prevê o resultado, todavia, não o quer e não o almeja. Já no dolo eventual, o autor prevê o resultado e, mesmo podendo, não o evita e o aceita. Ou seja, o ponto crucial para a tipificação do delito é margeado pelo elemento volitivo do agente, elemento este que se mostra completamente subjetivo.

Dada a proximidade dos conceitos entre o dolo eventual e a culpa consciente – diga-se criações doutrinárias -, bem como a inexistência de critérios objetivos para a aplicação dos institutos, doutrinadores como Guilherme Nucci (2020) discorrem acerca da extinção da culpa consciente, restando, portanto, a aplicação do dolo eventual em condutas com potencialidade lesiva.

“Essa mudança deve advir de lei, pois, do contrário, a simples eliminação da figura da culpa consciente (a bem da verdade, criação doutrinária) seria prejudicial ao réu. Enquanto não se der, continua-se o drama para descobrir, nas condutas de risco, o que figura culpa consciente e o que representa dolo eventual”. (Nucci, 2020, p. 319)

Seguindo a linha de pensamento do Supremo Tribunal Federal,

“O dolo eventual compreende a hipótese em que o sujeito não quer diretamente a realização do tipo penal, mas a aceita como possível ou provável (assume o risco da produção do resultado, na redação do art. 18, I, in fine, do CP). Das várias teorias que buscam justificar o dolo eventual, sobressai a teoria do consentimento (ou da assunção), consoante a qual o dolo exige que o 11 agente consinta em causar o resultado, além de considerá-lo como possível. A questão central diz respeito à distinção entre dolo eventual e culpa consciente que, como se sabe, apresentam aspecto comum: a previsão do resultado ilícito. No caso concreto, a narração contida na denúncia dá conta de que o paciente e o co-réu conduziam seus respectivos veículos, realizando aquilo que coloquialmente se denominou "pega" ou "racha", em alta velocidade, em plena rodovia, atingindo um terceiro veículo (onde estavam as vítimas). Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente” (STF, HC 91159/MG, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 02.09.2008).

Ainda, cumpre esclarecer que o maior ponto de distinção entre as modalidades apresentadas é a pena, haja vista que a pena culminada para homicídio culposo é detenção de 1 a 3 anos (art. 121, §3º do CP), enquanto no homicídio doloso a pena determinada é de 6 a 20 anos (art. 121, caput, do CP). Vale ressaltar ainda que eventual desclassificação do dolo eventual implicará na imediata incompetência do Tribunal do Júri, já que esse possui competência mínima para julgar crimes dolosos contra a vida.

No caso sob análise, os réus foram pronunciados por homicídio doloso simples nas formas tentada e consumada. No homicídio, o tipo penal é constituído de critérios objetivos e subjetivos. No caso do art. 121 o elemento objetivo é “matar alguém”, já o elemento subjetivo, está diretamente ligado à vontade do agente, do animus, sendo, portanto, fator imprescindível para a tipificação da conduta. Desta forma, precisa haver a análise detalhada do caso concreto para que se possa determinar se houve ou não, animus necandi, vontade de matar, ou se trata de conduta culposa.

Para tanto, deve haver uma análise técnica e crítica dos elementos probatórios do caso concreto com base no princípio da persuasão racional do juiz, que prevê que o “juiz só decide com base nos elementos existentes no processo, mas os avalia segundo critérios críticos e racionais, devendo observar, na sua apreciação, as regras legais porventura existentes e as máximas de experiência” (Capez, 2016, p.102)

4. A ANULAÇÃO DO JÚRI DA BOATE KISS

Sabe-se que o tribunal do júri tem competência somente para processar e julgar crimes dolosos contra a vida, no caso sob análise surgiram dúvidas acerca da imputação do dolo eventual aos acusados já que poderia ser aplicada também, a culpa consciente, gerando uma série de questionamentos acerca do tema e da competência do júri.

Dito isso, conclui-se que a diferenciação conceitual entre os institutos é uma linha tênue, sendo o elemento volitivo do agente o ponto de análise para a imputação do tipo penal, não havendo mecanismos que possibilitam ter a plena certeza da vontade do agente no momento do delito.

No tempo atual, os principais teóricos adotam os critérios de teoria da probabilidade do resultado, na qual é necessário provar o conhecimento dos réus da probabilidade do resultado, a teoria da aceitação do resultado ou conformação com a possível ocorrência (onde é necessária a comprovação da aceitação e conformidade dos agentes com relação ao resultado); e a fórmula hipotética da previsibilidade de Frank (onde se faz necessário provar que os réus praticariam a mesma conduta se tivessem certeza da ocorrência do resultado), sendo assim, as referidas teorias encaminham-se para a imputação por dolo eventual.

Os réus foram condenados pelo Conselho de Sentença pela prática de homicídios consumados e tentados, com execução imediata das sanções. No Recurso em Sentido Estrito interposto pelo MP, o Des. Jayme Weingartner Neto que reconheceu a presença de dolo eventual com base na narrativa sustentada pelo Ministério Público, que alega que os réus assumiram o risco de produzir o resultado morte das pessoas ali presentes. Ademais, sustentou que ao tribunal do júri incumbia fazer o juízo de valor “pautado normativamente pelo cotejo do conjunto da obra e ponderar se o réu foi ou não, paulatinamente, assumindo o risco sobre os fatores encadeados” (TJRS. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº70071739239. REL. DES. MANUEL JOSÉ MARTINEZ LUCAS, JAYME WEINGARTNER NETO. JULGADO EM 22/03/2017)

Capez (2014, p.630) sustenta que a soberania dos veredictos implica a impossibilidade de o tribunal técnico modificar a decisão dos jurados pelo mérito. Trata-se de princípio relativo, pois no caso da apelação das decisões do Júri pelo mérito (art. 593, III, CPP), o Tribunal pode anular o julgamento e determinar a realização de um novo, se entender que a decisão dos jurados afrontou manifestamente a prova dos autos. Além disso, na revisão criminal, a mitigação desse princípio é ainda maior, porque o réu condenado definitivamente pode ser absolvido pelo tribunal revisor, caso a decisão seja arbitrária. Nesse caso, não há anulação, mas absolvição, isto é, modificação direta do mérito da decisão dos jurados.

O Código de Processo Penal Brasileiro traz, em seu artigo 593, inciso III, ‘c’ e ‘d’ que:

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: 
III - das decisões do Tribunal do Júri, quando:
c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança;
d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

Desta maneira, as defesas interpuseram apelação com fundamento no art. 593, III, ‘a’, ‘c’ e ‘d’, do CPP arguindo uma série de nulidades. A defesa sustentou pontos de extrema relevância - embora naquele momento os desembargadores tivessem se limitando a analisar as preliminares de nulidade levantadas, afastando-se do mérito em si - como a irregularidade dos sorteios que via de regra, é único, bem como, a conversa particular do juiz presidente com o conselho de sentença, e o fato de haver questões para o jurado acerca das partes ausentes no processo.

Houve ainda a utilização do silêncio constitucional dos réus como argumento incriminador pela acusação. Importante constar ainda que foi consolidado o entendimento de que houve a quebra da paridade de armas, já que o MP fez uso de sistemas de órgãos de segurança pública para pesquisa dos jurados quando a defesa não possuía acesso a sistemas iguais ou equivalentes.

A nulidade dos sorteios foi reconhecida pela inobservância do rito previsto, uma vez que, via de regra ocorre um único sorteio com prazo de 10 a 15 dias antes da sessão de julgamento. Não obstante, ocorreram 3 sorteios, o último deles realizado 5 dias úteis antes do júri, ou seja, um prazo curto e o vultuoso número de jurados causou prejuízo às defesas impossibilitando-as de exercerem a plena defesa.

A reunião reservada do juiz com o conselho de sentença ocorreu durante o julgamento sem a presença do Ministério Público e/ou das defesas, ressaltando-se que tal ato não fora registrado em mídia ou em ata, por isso, o órgão entendeu que houve violação da transparência e da plena defesa.

Já a nulidade por quesitação se deu por violação do princípio entre a denúncia, a pronúncia e a sentença. Ainda, há que se falar que houve excesso acusatório no segundo quesito, já que os elementos fáticos que o embasaram foram desconstituídos e excluídos por recurso interposto, consequentemente, o quesito de número quatro foi declarado nulo, uma vez que estabelecia conexão como o segundo quesito. A redação medíocre dos quesitos, principalmente no que concerne ao dolo eventual, gerou prejuízo às defesas. Por dois votos a um, o júri foi anulado.

As nulidades explanadas acima foram capazes de anular o julgamento, motivo pelo qual haverá novo julgamento dos réus, contudo, não há data definida para o feito até o presente momento. Em que pese a anulação represente mais desgaste e sofrimento para as partes (réus, vítimas e respectivas famílias), tal decisão se mostrou a mais coerente defronte a tantas violações processuais, uma vez que a observância do devido processo legal é substancial para que se garanta os direitos e garantias fundamentais dos acusados.

Diante dos fatos, mostra-se ponderoso reproduzir a explicação de Aury Lopes Jr (2020).:

[...] há de compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal) (Lopes Júnior, 2020, p. 136).

Todavia, embora a anulação se mostre a decisão mais acertada ante a série de nulidades e vícios contidos no processo, a decisão que confirmou a anulação foi motivo de crítica e maledicência.

5. A ATUAÇÃO DA MÍDIA

Podemos conceituar a mídia como meios que propagam notícias de forma rápida e exponencial, sendo inclusive capaz de influenciar e moldar opiniões públicas que, em conjunto com as redes sociais e a facilidade para compartilhamento e difusão proporcionada pela internet, culminam no aumento da repercussão e da comoção social.

A liberdade de imprensa é assegurada no art. 1º da Lei 2.063/1953 que garante a liberdade de publicação e circulação de jornais e/ou meios similares, dentro do território nacional. Contudo há que se ter discricionariedade no momento de exercer tal liberdade, tomando cautela a fim de manter a ética e a justiça.

Não obstante, normalizou-se a publicação e compartilhamento de notícias ofensivas e sensacionalistas que, além de serem antiéticas, infringem princípios constitucionais, tal como o Princípio da Presunção de Inocência, o qual está previsto no art. 5º, LVII da CF no qual está descrito que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", ou mais popularmente tido como “ninguém é culpado até que se prove o contrário”.

No procedimento do júri, para que possamos atingir um julgamento justo e corra de acordo com o devido processo legal, devemos seguir os princípios que regem o processo penal tendo como um dos principais, o princípio da presunção de inocência para garantir que os acusados não adentrem ao tribunal já com seus destinos definidos, e tenham a real chance de defesa plena.

Neste cenário, os jornalistas e jornais atuando no âmbito criminal/penal devem transmitir as notícias de maneira imparcial, sem sensacionalismo. Todavia, a grande mídia apela para o sensacionalismo e para o populismo, a fim de conseguir um número maior de cliques e adesão do público. Desta maneira, muitas vezes os réus já são considerados culpados antes mesmo de haver sequer a conclusão do inquérito. Sobre o tema, Mario Rocha (2008) considera que o “processo e julgamento público que não presta satisfações à Constituição e às leis, porém produzem efeitos reais. Especialmente no caso de réus ainda não julgados, a presunção de inocência e o direito de um julgamento justo viram pó’’ (Nilo, S.d., apud Lopes Filho, 2008, p. 83).

Na época dos fatos, os jornalistas passaram a televisionar toda a vida de cada um dos participantes, incluindo a polícia, os acusados e suas respectivas defesas, bem como, a acusação, a fim de noticiar cada passo dado quase que simultaneamente. Dessa maneira, foi desenhada a vida e personalidade dos condenados. Não obstante ainda se fale em predomínio e soberania da presunção de inocência, a mídia conseguiu transcender tal garantia constitucional e escolheu condenar, perpetuamente, indivíduos que por livre convencimento entenderam ser culpados.

Em que pese o juiz presidente do júri, Orlando Faccini Neto, ter afirmado em entrevistas na época não ter havido sensacionalismo na condução do julgamento, não é crível desconsiderar toda a movimentação social ocorrida desde o acontecimento até o último dia de júri. Desde o início, toda a mídia - nacional e internacional - se dedicou a esquadrinhar e tornar público cada detalhe do caso. Mesmo que tenha havido o maior dos cuidados dos magistrados na condução do tribunal, certamente houve interferência das notícias e opiniões sensacionalistas propagadas nas mídias. Ademais, não é segredo que tragédias seduzem as pessoas, despertam seus interesses e curiosidades, gerando portanto grande cobertura midiática sobre eles, a exemplo disso temos os casos de Suzane Von Richthofen, Isabela Nardoni, Elize Matsunaga, maníaco do parque, Eliza Samúdio, e vários outros que mobilizaram quase que a sociedade toda, todavia, isso não classifica a todos que procuram informações desses casos como sádicos ou maníacos, pelo contrário, tais situações fazem florescer a face humana da população, já que, concomitantemente com a solidariedade e a empatia, temos o lado animal, onde é cultivada a sede de vingança e justiça.

Em decorrência de todo o entusiasmo e interesse da sociedade em casos como esses, a mídia usa de suas plataformas para explorar essas tragédias como forma de conseguir mais visibilidade e, consequentemente, mais lucro e engajamento. Com a tragédia aqui estudada, não foi diferente.

5.1 A influência midiática no julgamento de casos de grande repercussão

Há uma espécie de julgamento paralelo operado pela grande mídia de forma que os grandes veículos de notícias disseminam em jornais e páginas online ideias capazes de manipular as convicções de toda uma sociedade.

Nessa toada, essas matérias tendenciosas causam um grande impacto nos casos de grande disseminação, uma vez que há uma espécie de bombardeio de informações o que gera uma absorção de convencimentos e ideias que não pertencem aos jurados componentes do conselho de sentença, impedindo que os réus possam exercer o contraditório com chances reais de absolvição.

Nucci (2010) considera que tal massividade

pode proporcionar que os jurados cheguem a convicções preconcebidas em relação à culpabilidade ou não dos processados por meio de informações extraprocessuais, com a consequente violação das garantias necessárias para a reta administração da justiça, onde o processo se leva a cabo por meio do contraditório entre acusação e a defesa. (Nucci, 2010, p. 207)

Outrossim, no caso da Boate Kiss na época do acontecimento a notícia do incêndio foi manchete principal em meios de informação de grandes e renomados veículos de notícias nacionais e internacionais tais como British Broadcasting Corporation – BBC da Inglaterra, Cable News Network – CNN dos Estados Unidos, tendo grande repercussão internacionalmente. No Brasil, as maiores revistas e jornais optaram por compartilhar e divulgar capas extremamente tendenciosas e apelativas, a imprensa utilizou do apelo em demasia, tentando de alguma forma culpabilizar alguém, fazendo uso de palavras e expressões chamativas e capazes de despertar a pena e ira das pessoas.

Há uma cobrança feita pela mídia de forma implícita através dos títulos e imagens, - que por si só já eram capazes de causar impacto -, utilizados de forma tendenciosa, e apelativa a fim de aumentar ainda mais o sentimento de revolta provocado ao público. Ante toda a reverberação, sucede então um ativismo do Poder Judiciário, que para atender o anseio dos populares e grande mídia que pressionavam todo o sistema, acaba desafiando e transgredindo grandes normas do direito penal e processual penal.

Por isso, há uma grande dúvida acerca da imputação do tipo penal. Especula- se que a imputação do tipo doloso se deu tão somente para satisfazer o ímpeto social por justiça ignorando as provas nos autos. Em que pese naquela altura ainda haver ambiguidade jurídica acerca da tipificação do delito, em julho de 2016 fora prolatada sentença de pronúncia.

Acerca dos apelos midiáticos, Vítor Bulgarelli (2021) entende que

A magistratura não apenas ouve os apelos da sociedade, mas também faz parte da classe média-alta que se dirige o pânico moral do discurso midiático. […] Naturalmente reducionista, esse pânico clama pela resposta ao crime pela via da repressão penal o mais rígida possível. A situação se agrava quando se aborda a sistemática do tribunal do júri, ponto também digno de nota, em que o juiz delega seu protagonismo ao conselho de sentença (Bulgarelli, 2021, p. 142).

Já em 2021 há o dito julgamento pelo Tribunal do Júri. Os jurados ali presentes e constituintes do conselho de sentença conheciam dos fatos sob a ótica sensacionalista e tendenciosa da mídia. Inobstante se faça necessária determinada sensibilidade para o trato com o processo, bem como, com as testemunhas. Ao adentrar ao tribunal, os jurados devem deixar de fora suas convicções morais pessoais e ater-se às provas fáticas do processo.

Ao tratar da influência da mídia, Paulo Freitas (2018) dispunha que

Os meios de comunicação de massa – a televisão, os jornais, a revista, a internet, o rádio – exercem grande influência na formação e na conformação da opinião pública. O indivíduo tem a tendência natural de se calar diante de um grupo por temer opinar fora do contexto da ideia majoritária que impera naquele âmbito sobre determinado assunto de interesse geral (espiral do silêncio). O comportamento que dele se espera é que vá em busca da opinião que mais se aproxime daquela que tende a prevalecer no grupo. E a fonte por excelência, na qual irá se abeberar, para tanto, não há dúvida, é a mídia (Freitas, 2018, p. 251).

Destarte, defronte à demasiada retumbância dos fatos e das opiniões formadas e disseminadas pela grande mídia os jurados entraram naquele julgamento com convicções formadas e pré-determinadas pela mídia, assim, a imparcialidade que lhes era devida estava definitivamente comprometida.

O caso sob análise culminou em inúmeros questionamentos, o que fez com que os estudiosos do Direito se dedicaram a estudar e analisar juridicamente os elementos que embasaram as decisões. Não obstante, fácil concluir que em casos de grande repercussão e comoção pública, o processo nasce já eivado de vícios, já que, na maioria dos casos os réus adentram ao fórum com seus destinos decididos com base em achismos pessoais dos membros do conselho de sentença e factóides explanados pela grande mídia como verdades absolutas tomando para si as indignações da coletividade como um todo.

O sistema midiático maneja as notícias acerca do fato – verdadeiras ou não – de forma a preestabelecer um prejulgamento com base em senso comum e sensacionalismo, objetivando, sempre, a punição do réu, sendo ele efetivamente culpado ou não, como se o tamanho da pena medisse o grau de eficácia da justiça brasileira.

Em casos de repercussão, a mídia abusa do sensacionalismo ao tornar os fatos e fases processuais um verdadeiro reality show, trazendo até a casa das pessoas todo o processo até o julgamento dos acusados. Usando de forma descomedida de opiniões prefixadas, embebidas em preconceitos e estereótipos sociais, sem ter o mínimo de base jurídica.

Nessa toada, Aury Lopes Jr (2014).

Argumenta-se, ainda, em torno da independência dos jurados. Grave equívoco. Os jurados estão muito mais suscetíveis a pressões e influências políticas, econômicas e, principalmente, midiática, na medida em que carecem das garantias orgânicas da magistratura (Lopes Júnior, 2014, n.p)

Noutro tanto, o caso perscrutado mostra que o clamor social, o desencontro das notícias veiculadas com os fatos ocorridos, provocam um choque com os princípios processuais penais e o devido processo legal, inobstante estes devam ser sobrepostos a quaisquer outras ponderações feitas ao decorrer do júri. A contenda aqui explorada reside na insegurança jurídica desenhada em frente aos acusados ao terem seus futuros nas mãos de pessoas que tiveram suas opiniões formadas, em sua maioria, por notícias tendenciosas.

Importante ainda destacar que passamos por períodos tortuosos, no qual o apelo popular por “justiça” tem maior relevância que as provas arroladas no processo. Desta forma, se faz necessário reafirmar o dever do Estado, que existe como parte racional e técnica para resolver a lide de maneira jurídica e imparcial, de maneira a não permitir que a comoção pública se sobreponha às normas e princípios legais.

No que se refere à condenação dos acusados e a relação com a mídia, Marcela (2021) e outros descreveram que

A injusta condenação dos quatro acusados pelo júri da Boate Kiss não pode ser colocada apenas na conta dos jurados, sob o argumento de que eles — e apenas eles, em razão de sua falta de experiência técnica — seriam suscetíveis aos clamores sociais e apelos midiáticos. De fato, a influência que sofreram é inequívoca, ainda mais diante de alguns aspectos próprios da configuração do procedimento brasileiro de júri, que pouco contribuem para a racionalidade das decisões dos cidadãos. Seria verdadeiramente surpreendente se outro fosse o resultado, pois tudo parece ser desenhado para que as influências midiáticas entrem em cena e a racionalidade sobre os fatos mantenhase ausente. No entanto, para o que queremos chamar atenção é que aqueles de quem não se esperava tamanha permeabilidade ao clamor público foram justamente os que mais tiveram suas atuações pautadas pelos apelos midiáticos — a julgar pela aludida suspensão abusiva dos efeitos do habeas corpus em prol de um suposto interesse público, mas também pela própria decisão que convenientemente submeteu o julgamento do caso ao tribunal do júri. (Nardelli et al., 2021, n.p)

Ainda nesse sentido, é possível afirmar que o Supremo Tribunal de Justiça agiu em desalinho com a função do órgão a partir do momento em que o seu Ministro utilizou de medida equivocada para cercear o direito de liberdade dos réus, inobstante este direito estivesse garantido por meio de habeas corpus. Houve então, a supressão da competência do TJRS o que caracterizou medida política utilizada para manutenção da aparência do órgão em face da sociedade que desesperada, clamava pelo o que nomearam de “justiça”.

Flagrante é que a intervenção equivocada do Ministro, bem como, as decisões enviesadas tomadas no decorrer do processo, deixa para os juristas, ainda mais aparente a insegurança jurídica que permeia o país e seu poder judiciário, haja vista que deixa clara a suscetibilidade do Estado em ceder à comoção popular em casos de grande repercussão, não podendo ser admitida a superioridade dos costumes e/ou manifestação social em detrimento ao ordenamento jurídico pátrio.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O instituto do tribunal do júri é referência quando falamos em democracia, já que o povo é quem constitui o conselho de sentença, além disso, o júri representa também a garantia do direito constitucional fundamental do indivíduo.

Com base no que fora ulteriormente discutido no presente feito, o procedimento do júri é regido e ordenado por princípios próprios e constitucionais que, se não obedecidos acarretam na nulidade do procedimento, seja ela parcial ou integral. Por ser constituído de juízes leigos, pode-se afirmar que o Tribunal do Júri está suscetível a nulidades, como ocorreu no caso sob estudo.

Quando se fala no caso da Boate Kiss, logo levanta-se o questionamento acerca da utilização do dolo eventual, já que alguns juristas e doutrinadores entendem a imputação do dolo como “castigo” para os acusados dada a proporção dos fatos. Ainda hoje há dúvidas acerca da assertividade na aplicação do dolo eventual em detrimento da culpa consciente.

Conforme visto, as decisões exaradas ao longo do processo transgrediram os princípios fundamentais do Tribunal do Júri. Outrossim, a atuação do poder judiciário frente a casos midiáticos como este é de alto nível de complexidade, já que além de todo o procedimento do júri, há sobre o judiciário e as partes integrantes da relação processual uma pressão massiva feita pela mídia e pelos populares.

Ademais, eventuais motivações externas aos autos, como repercussão e clamor público, não podem servir de subterfúgios para que se admita transgressões de princípios e regras processuais. O processo penal deve correr conforme previsto na constituição e nas leis penais a fim de garantir o melhor resultado possível dentro dos parâmetros estipulados pelas leis e jurisprudências.

Além de conduzir o processo como fixado em lei, é imprescindível que todo o procedimento seja aplicado com base em seus princípios, a exemplo da decisão que reconheceu as nulidades arguidas pela defesa e, desta forma, anulou o júri. Não obstante a anulação de um julgamento do porte e comoção como o da Boate Kiss seja prejudicial à família das vítimas, visto que fica para a sociedade a imagem de um sistema judiciário fraco e errôneo. Nesse caso, a anulação mostra que o poder judiciário brasileiro, na verdade, preza pela justiça e pelo devido processo legal.

Pode-se dizer que, se o júri tivesse sido conduzido com a devida observâncias das normas e princípios, os acusados, populares, o judiciário, as vítimas e seus pais, já não estariam aguardando um julgamento mesmo após 10 anos do ocorrido.

Em tempo, oportuno trazer à tona que a mídia aproveita de situações catastróficas para obter seu lucro usando muitas vezes de notícias falsas e/ou tendenciosas e apelativas a fim de obter a adesão da maior parte do público. Ademais, cabe ressaltar que tal comportamento extrapola os limites da ética profissional.

É inegável que as matérias apelativas em todos os sites e jornais por dias inteiros, inclusive durante os dias de sessão em conjunto com as manifestações em frente ao local do fato e no fórum, exerceram influência sobre os jurados que adentraram no tribunal. Dessa forma, os réus julgados naquele dia entraram no tribunal com seus destinos selados, sem o pleno direito de defesa. Importante frisar que não se defende a impunidade, mas sim, a aplicação correta da lei penal, processual e constitucional.

Portanto, ao fim, a anulação daquele júri foi a decisão mais acertada de um processo eivado de vícios, promovendo para os réus enfim uma chance de exercerem suas defesas de maneira plena e terem uma condenação justa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARBEX, Daniela. Todo dia a mesma noite: a história não contada da boate Kiss. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.

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1 Projeto de pesquisa vinculado à disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II da Faculdade de Direito do Centro Universitário Alves Faria, como requisito para obtenção de aprovação na disciplina.

2 Professor-orientador


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CP – Código Penal
CPP – Código de Processo Penal
CF – Constituição Federal
MPRS – Ministério Público do Rio Grande do Sul MP – Ministério Público
TJRS – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul STJ – Superior Tribunal de Justiça
STF – Superior Tribunal Federal
ADC – Ação Declaratória de Constitucionalidade